A imprensa protagoniza o seu Black Mirror misógino

“Eu sou muito otimista, né. Eu espero que isso termine em pizza, em um casamento futuro entre ele e a namorada apaixonada dele. Ele tá passando por uma fase momentânea, ele tem motivação de viver. Um rapaz jovem, quando se apaixona, muitas vezes ele se desequilibra, mas isso vai terminar realmente em final feliz, graças a Deus, tenho plena certeza e convicção disso”

O trecho acima foi extraído de uma entrevista dada por um advogado à jornalista Sônia Abraão, em rede nacional e ao vivo, em seu programa “A tarde é sua”. O tema sobre o qual falavam? O sequestro, que naquele momento se desenrolava, de uma adolescente de 15 anos, Eloá Cristina Pimentel, comandado pelo ex-namorado dela, Lindemberg Alves, de 21. Após invadir o apartamento de Eloá, em Santo André, na região metropolitana de São Paulo, Lindemberg a transformou em refém, junto a uma amiga dela, Nayara, da mesma idade. No final, como se sabe, ele matou Eloá com um tiro na cabeça e outro na virilha.

O sequestro e consequente cárcere privado de Eloá, em 13 de outubro de 2008, é considerado o mais longo da história da polícia de São Paulo: durou mais de 100 horas. Outro fato que transformou o episódio em um caso célebre foi o tratamento dado pela imprensa ao crime, do qual a cobertura citada acima é apenas um exemplo. Enquanto o sequestro ocorria, inúmeras emissoras de televisão, de rádio e jornalistas de veículos impressos travaram contato com Lindemberg para entrevistá-lo, atrapalhando as negociações.

Profissionais de imprensa praticamente acamparam em frente ao prédio da família de Eloá para acompanhar em tempo real a movimentação da polícia (tanto a negociação quanto o “estouro do cativeiro”, que poderia ocorrer a qualquer momento) e também para filmar vítima e agressor quando estes apareciam na janela do apartamento — Eloá muitas vezes aparecia gritando, angustiada, pedindo socorro e ao mesmo tempo calma para os policiais e demais pessoas que se encontravam nas imediações.

Essa cobertura em tempo real e o tratamento dado pela mídia à violência sofrida por Eloá — com frequência chamada de “crime passional’ — são o tema do documentário “Quem matou Eloá?”, da diretora Lívia Perez. A pergunta do título busca provocar a reflexão sobre a responsabilidade da mídia na reprodução, reiteração, banalização e naturalização da violência contra a mulher, e também discutir quais são os limites impostos aos e às jornalistas que cobrem crimes de grande repercussão.

Ao final, é impossível não se questionar: o quanto a imprensa contribuiu para o desfecho do crime, ou, ao menos, o quanto ela contribuiu para que o episódio se arrastasse por dias (além do tempo padrão observado neste tipo de crime que envolve a negociação direta entre sequestrador e polícia), e o quanto o feminicídio de Eloá foi banalizado e até romanceado pelo tom dado às notícias que tratavam do episódio?

Diante do show de horrores e misoginia protagonizado pela imprensa brasileira neste caso, também é impossível não se lembrar da série Black Mirror, em que a tecnologia é apenas o instrumento pelo qual o horror se manifesta. O problema é a tecnologia ou como nós a utilizamos para dar vazão ao que temos de pior?

No documentário, Lívia Perez assume uma posição: a de crítica da imprensa. Numa tentativa de subverter/equilibrar o jogo de forças e dar voz a um pensamento em geral não visibilizado pelo Jornalismo (justamente porque é um pensamento crítico desse mesmo Jornalismo), a diretora agora oferece espaço para duas militantes feministas, uma professora de Jornalismo, uma defensora pública que atua na área de defesa dos direitos das mulheres e o promotor de justiça envolvido no caso à época, que inclusive fez críticas públicas à imprensa logo após a morte de Eloá.

Ao longo de quase 25 minutos, são recuperadas imagens, situações, diálogos e análises feitas pelos jornalistas e apresentadores de TV que cobriram o crime, tais como:

  • “Alô, Eloá? Eu queria que você mandasse uma nova mensagem para os teus pais, até para a mãe e irmãs do Lindemberg, também, que estão sofrendo muito” — Sônia Abraão, em conversa telefônica com a vítima, em que pede a Eloá que acalme sua família e a de seu agressor.
  • “Nós estamos falando em nome da tua família. Tua mãe está desesperada e quer saber se está tudo bem, só isso” — jornalista assume o papel de “representante” da família do agressor e diz a ele que sua mãe está desesperada.
  • “Lindemberg, se você estiver assistindo a gente, por favor, faça esse gesto, peça para uma das meninas simplesmente acenar, qualquer sinal, só para mostrar que está tudo bem” — Ana Hickmann assume o papel de apaziguadora e tenta se comunicar com o agressor, ciente de que ele estava assistindo ao programa, interferindo, assim, nas negociações.
  • “São imagens exclusivas, angulo que ninguém tem, você não viu essas imagens em nenhum outro canal” — anúncio do jornalista a respeito do “furo” dado por sua emissora, mesmo que isso significasse prejudicar a negociação caso o agressor soubesse, pelas imagens, qual era a estratégia da polícia para entrar no apartamento.
A militante feminista Elisa Gargiulo

Jornalista é policial ou negociador? A imprensa está acima dos “cidadãos comuns”?

Um argumento coringa que sempre aparece para impedir qualquer discussão a respeito da responsabilidade da mídia e do estabelecimento de limites à cobertura é o da “censura”. De alguma forma, os jornalistas não se submeteriam às mesmas condições e regras impostas aos demais cidadãos, e qualquer tentativa de estabelecer protocolos e direcionamentos seria um silenciamento da imprensa. Será? Quem decide isso?

Um “cidadão comum”, alguém que estivesse passando no local e que se oferecesse para ajudar nas negociações seria ouvido e a ele seria permitido que falasse com vítima e agressor, mesmo que com a melhor das intenções? Por que aos jornalistas, sem preparo algum (como um psicólogo, negociador ou assistente social), é dada a liberdade de interferir no diálogo entre agressor e polícia, permitindo-se que assumam o papel de negociadores?

Fala-se a respeito do direito à informação, constitucionalmente previsto, de ouvintes, telespectadores, leitores e internautas diante de tal situação. O direito à informação é absoluto? Seria ele mais importante, naquele contexto, do que o direito à integridade física e psicológica, à segurança e à vida das vítimas?

Vale lembrar que o interesse do jornalista não é apenas o interesse do jornalista enquanto profissional e ser humano, mas também o da empresa de comunicação para a qual ele trabalha. Essa informação, no entanto, em geral não é visibilizada, e muitas vezes é esquecida, como se o jornalismo se pautasse apenas pelo interesse público, e não, igualmente, por interesses econômicos e financeiros.

Audiência é sinônimo de mais publicidade, e publicidade é sinônimo de mais dinheiro para aquele veículo. O interesse não é somente público — o bem-estar da vítima e a informação dos telespectadores.

É questionável a ideia de que ali se estava apenas prestando um serviço público ao telespectador. A audiência era um componente relevante. Como coloca o promotor de justiça Augusto Rossoni, a polícia invadiu o apartamento no momento em que havia maior audiência.

Além disso, a atitude dos jornalistas não apenas expôs e banalizou a violência — ela de fato colocou em risco a operação. Enquanto conversava com Lindemberg, Sônia Abraão bloqueou a linha que servia para a comunicação entre polícia e agressor. Além disso, foram filmadas ações estratégicas da polícia, como quando ela tentava entrar no apartamento por uma escada colocada próxima à janela do apartamento — mesmo que a mesma imprensa soubesse que Lindemberg estava assistindo à operação pela televisão.

Tratamento do feminicídio e santificação da vítima

Em 2008, quando ocorreu o sequestro e morte e Eloá, o Brasil ainda não havia aprovado a Lei n.º 13.104/2015, que criminaliza o feminicídio e o considera uma circunstância qualificadora do crime de homicídio. Entre as situações previstas pela lei está a morte de mulheres no contexto doméstico e familiar, ou seja, a morte de mulheres por parceiros e ex-parceiros íntimos e familiares, que foi o que ocorreu com Eloá.

Embora ainda não existisse essa forma de homicídio qualificado na legislação penal brasileira e o termo feminicídio não fosse muito conhecido pela população, em 2008 não seria possível alegar desconhecimento em relação ao fato de que mulheres mortas por seus ex-namorados não são vítimas de crimes passionais. Desde a morte de Ângela Diniz, em 1976, por seu ex-companheiro Doca Street, sabe-se que tais mortes não são fruto de amor e de paixão — o slogan “Quem ama não mata” não foi criado por acaso.

Desde pelo menos essa época, o movimento feminista e de mulheres tem pautado que relacionamentos abusivos que terminam com a morte da mulher pelas mãos de seus parceiros íntimos são fruto de uma cultura em que o homem entende que sua companheira é sua propriedade e que ele pode decidir se ela vive ou morre quando o relacionamento chega ao fim por vontade dela.

Em 2008, a Lei Maria da Penha, que combate esse tipo de violência, já estava em vigor há 1 ano e oito meses. Já em 1991–92, uma Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados havia debatido a questão e chegado à conclusão de que a violência cometida contra a mulher nas relações íntimas era fruto do machismo e da misoginia. No entanto, a imprensa, tão afoita por informar, parecia não estar informada sobre a legislação e o que produz este tipo de crime.

A professora Esther Hamburger

Em muitas abordagens, não há qualquer menção à violência contra a mulher, ao fato de que crimes como esses não ocorrem aleatoriamente e de forma desconectada, mas sim como resultado de uma cultura que preza a dominação da mulher pelo homem, principalmente dentro de relacionamentos íntimos. O fato de Eloá ser uma adolescente já submetida a um relacionamento abusivo não parece chamar a atenção dos jornalistas.

Em muitos momentos, tem-se, como mostra Lívia Perez, a naturalização do comportamento masculino violento e possessivo, assim como o argumento de que as mortes ocorrem por “ciúmes”. Na análise da militante feminista Elisa Gargiulo, os desdobramentos do caso são mostrados tais quais capítulos de uma novela. A fronteira entre fato e ficção, entre jornalismo e entretenimento, é implodida. No velório de Eloá estiveram presentes cerca de 40 mil pessoas. Não eram familiares ou amigos, mas desconhecidos.

“Por que 40 mil pessoas querem ver o cadáver de uma mulher? O que elas acham que vão encontrar lá? Não estou falando da família, conhecidas e conhecidos. Estou falando de espectadores, que foram instigados pelas televisões. Eles estão vendo o final do capítulo da novela, dentro de um caixão, o corpo de uma mulher, o corpo de uma menina assassinada?” — Elisa Gargiulo, militante feminista.

Na novela criada pelos apresentadores de TV e também pelos telejornais, essa é a história do mocinho trabalhador, bom jogador de futebol, sem antecedentes criminais e apaixonado que comete uma loucura em nome do amor e após ser injustamente desprezado pela mocinha.

O bom moço matou uma mulher, logo, as pessoas querem entender por que isso ocorreu. Se ele era um bom moço e ainda assim foi capaz de uma atrocidade como essa, então a responsabilidade é de outra pessoa. Quem será esta pessoa?

“Agora, querido, por que você tomou essa atitude? Foi desespero, ciúmes, o que foi?” — pergunta de um repórter a Lindemberg, enquanto o entrevistava ao vivo.

A polícia, inclusive, evita a todo custo invadir o apartamento sob o argumento de que, segundo o comandante da operação, Lindemberg era“um garoto de 22 anos de idade, sem antecedentes criminais, em uma crise amorosa”. Mas o fato de Eloá ser a vítima, de de ter apenas 15 anos, não foi levado em conta.

Embora Lindemberg seja descrito pela imprensa como um homem desequilibrado, o agressor mostra ser perfeitamente saudável do ponto de vista mental e psicológico, sendo capaz de premeditar o crime e de calcular ganhos e perdas em relação a cada passo que dá. Negocia com os policiais, exige a presença de jornalistas, faz exigências, manipula os envolvidos.

Um entrevistado, ex-comandante do BOPE, chega a afirmar: “O tomador de refém passional não é economicamente motivado, ele é mentalmente perturbado, logo, ele é imprevisível, não se espera algo razoável e lúcido de uma pessoa que esteja sofrendo de paixão, de amor”. Lindemberg, porém, era conhecido por ser, justamente, um rapaz “normal”. Não agredia os pais, os vizinhos, os colegas de trabalho. Por que, quando agride sua ex-namorada, a explicação para isso é a loucura?

A diretora Lívia Perez

Após a morte cerebral de Eloá, atingida na cabeça e na virilha — em muitos crimes de feminicídio, é infelizmente comum que a mulher seja atingida em áreas associadas à feminilidade, como a área genital, os seios e o rosto — , a vítima então é transformada em santa. Milhares querem acompanhar seu enterro. A família permite a doação de seus órgãos e um apresentador chega a dizer: “Houve esse lado, dentro dessa tragédia, esse lado bonito, a conscientização da doação de órgãos”.

Porém, como coloca a militante feminista e integrante da ONG SOS Corpo, Analba Teixeira: “ Eloá passou a ser vista como a santa, mas tenho certeza de que ela não queria ser santa, ela queria estar viva”.

A mesma sociedade que ignora a violência contra a mulher e que minimiza os atos do agressor é aquela que, depois, irá santificar a vítima, como num ato de mea-culpa pelo que não fez à vítima quando ela ainda estava viva.

Exposição de menores de idade

No Brasil, o direito de crianças e adolescentes é tão vilipendiado diariamente, e a violência contra a mulher é tão banalizada desde a mais tenra idade dessa mulher, que não houve sequer questionamento a respeito da exposição de duas garotas de apenas 15 anos em rede nacional. Logo após a morte de Eloá, Nayara chegou a ser entrevistada pelo Fantástico, um programa de grande audiência, a respeito das últimas horas da amiga.

Diálogo entre Nayara e a repórter Renata Ceribelli:

“ — Ele pedia beijo pra ela, fazia ela beijar ele.

 Só?

— Só.

— E ela beijava?

— Beijava. Às vezes ela não queria e tal, aí ele começava a ficar nervoso e eu falava ‘Vai Eloá, faz um esforço, né?”

Naquele momento, a uma menina de 15 anos é pedido que narre os últimos momentos de sua amiga antes de ela ser assassinada, em que uma repórter pede detalhes do que a vítima teve de fazer enquanto estava sob a mira da arma do agressor. A repórter até pergunta se foi “só” aquilo. O que ela esperava tirar de Nayara? A informação bombástica de que Eloá tivesse ido além e feito algo a mais além de beijar seu agressor?

Onde está o interesse público dessa informação? No que o telespectador ficou mais bem informado a respeito da violência contra a mulher quando uma adolescente passou a dar detalhes para todo o Brasil sobre o terror que ela e sua amiga da mesma idade, agora morta, passaram?

Uma questão que se coloca é o fato de que Eloá e Nayara são meninas pertencentes a famílias de classe baixa, moradoras de bairros pobres, sem acesso a advogados e sem condições de exigirem da polícia e da mídia que não exponham suas filhas. Se Eloá e Nayara fossem garotas ricas, a exposição seria a mesma? No caso da entrevista posterior de Nayara ao Fantástico, será que seus pais foram bem orientados e alertados a respeito do impacto de tal entrevista na vida de sua filha?

Logo no início do documentário, Lívia Perez compõe a cena intercalando sons de helicópteros com imagens de abutres. Nada mais emblemático para descrever, em som e imagem, o que foi a atuação da imprensa neste caso.

Para pensar:

— Jornalista é negociador? É super-homem ou está acima da lei?

— O direito à informação está acima do direito à vida?

— A imprensa cometeu algum ilícito penal? E o que é legal é necessariamente ético?

— Cabia à polícia limitar o trabalho da imprensa ou a imprensa poderia, por si mesma, agir de forma ética e não entrevistar o agressor? Para que a imprensa atue com ética, é preciso que a polícia aja?

— Sem a atuação da imprensa, o caso teria tal desfecho? Ou, então, teria durado tantas horas?

— Em uma época na qual as redes sociais e os aparelhos tecnológicos estão por toda parte e são praticamente uma extensão do nosso corpo, como seria a cobertura da mídia hoje? Seria ainda mais invasiva e sensacionalista, numa tentativa de não se deixar suplantar pelos furos dados pelo “cidadão comum”?


Para saber mais

A montanha dos sete abutres, de Billy Wilder (1951) — Repórter decadente prevê a chance de um grande furo que irá salvar sua carreira quando homem fica preso numa mina por acidente. Com a cumplicidade do xerife e da mulher da vítima, explora o fato e trabalha para que o resgate se estenda por vários dias, visando a manter o interesse do leitor e se tornar famoso.

Discussão sobre o caso Eloá no Observatório da Imprensa — Parte 1 e Parte 2

Código de Ética dos Jornalistas, artigo 7. º:

O jornalista não pode:

IV — expor pessoas ameaçadas, exploradas ou sob risco de vida, sendo vedada a sua identificação, mesmo que parcial, pela voz, traços físicos, indicação de locais de trabalho ou residência, ou quaisquer outros sinais;

V — usar o jornalismo para incitar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime;