a amnésia é do Patriarcado; mas como estamos usando nossa memória?
a amnésia é do Patriarcado; mas como estamos usando nossa memória?

esses dias me peguei olhando tuítes antigos, fui até 2009, para ver se encontrava algum motivo para ataques, caso alguém resolvesse me queimar em algum momento. felizmente me deparei com muitas postagens de uma jovem-eu tricolor de coração, xingando uns técnicos e jogadores, reclamando de janela de contratação e interagindo com outros torcedores durante os jogos que assistia em casa, sem alguém por perto para comentar comigo.

resolvi fazer essa busca não por curiosidade sobre a minha evolução, mas porque não raro tenho visto jovens mulheres divulgando imagens, de mulheres mais jovens ainda, falando umas asneiras no decorrer da vida cibernética. normal, não? costumo dizer que preciso acreditar que as pessoas crescem, caminham para a frente, alcançam inúmeros despertares críticos, embora a humanidade insista em me provar que evolução é um termo difícil demais para ser usado de qualquer forma.

eu preciso acreditar porque disso depende qualquer luta contra-estrutural; e preciso acreditar porque eu estive e estou lá: na busca constante por falar cada vez menos merda, por incrível que pareça. dito isto, queria fazer um pedido: deixa as menina errarem; parem de expor mulheres; e, caso você não esteja nem aí para a saúde mental delas, lembre-se que essa água de cocô também pode resvalar na sua bunda, minha consagrada. a gente costuma ouvir uma frase por esses cantos de internet feminista, que é mexeu com uma, mexeu com todas, mas, será mesmo? pense: é realmente essencial punir jovens meninas por seus deslizes infantis online? se a resposta ainda for sim, eu tendo a achar que essa ação diz mais sobre você do que sobre a criança que escreveu.

passado o processo eleitoral, agora posso dizer que minha principal crítica a respeito das nossas estratégias de diálogo com possíveis eleitores de Jair Bolsonaro, especialmente no primeiro turno, foi a utilização de fatos antigos para mostrar como o candidato era perigoso — disseminava misoginia, racismo, elitismo. vejam, eu fui uma dessas pessoas, mas estou reavaliando o plano como equivocado. por dois motivos:

1) estava evidente que seus apoiadores, mesmo que de maneira silenciosa, concordavam com ele, ou, pelo menos, reproduziam discursos ultrajantes sobre mulheres, população negra, comunidade homossexual, e pobres. era de se esperar, tendo em vista a sociedade que estamos construindo. não acho que esses eleitores sejam ruins, bons, fascistas, ou qualquer outra etiqueta fácil, só acho que estamos tão acostumados a não pensarmos em nós, que desejamos massacrar nossos próximos. além disso, temos dificuldade de entender o que consideramos o Outro. então, não adiantava usar esses argumentos com quem reproduz racismo e não assume (prisão tem que ser ruim mesmobandido bom é bandido morto); reproduz misoginia e não assume (minha filha nasceu mulher por uma fraquejada); reproduz homofobia e não assume (filho viado é falta de porrada); e por aí vai. essas são características da nossa sociedade e uma sociedade racista, classista e sexista só pode formar filhos com essa escolaridade. estranho é quem consegue se desviar desse padrão.

mas, principalmente, 2)  as pessoas mudam. por isso, lançar mão de antigas falas, de 1990, para atacar o então candidato, não só é mau uso da nossa Memória como parece desonesto. então, as pessoas não podem errar e depois se arrepender? as pessoas não se transformam, não mudam de ideia?

o Brasil tem mesmo um problema sério no que diz respeito a como tratamos nossos massacres, genocídios, fatos históricos envolvendo desaparecimentos e tortura. mas, justamente por não sabermos como trabalhar Memória e Verdade é que temos figuras como o nosso presidente eleito, ou o seu tio que diz odiar comunistas e que a ditadura não existiu no Brasil.

na verdade, o que esses dois caras têm em comum é justamente o fato do Brasil ter medo de falar de suas feridas e responsabilidades históricas. é porque ignoramos o debate sobre o genocídio de jovens negros em comunidades e prisões que temos essas figuras tão diferentes, mas parecidas, no nosso cotidiano — presidente e familiar alienado. é porque criamos leis sobre violência doméstica, mas não debatemos a sério quais os tipos de violência existem, e fingimos não ver o que acontece ao nosso redor. é porque criminalizamos o aborto e depois, quando essas crianças nascem e crescem, criminalizamos suas liberdades, suas escolhas, e os mandamos para o caixão ou camburão, fechando nossos olhos para a nossa própria realidade, mas que julgamos ser a realidade dos Outros.

não estou dizendo que temos que esquecer o que os políticos falam, mas precisamos retrabalhar nossa Memória, lembrar nossa história, falar das nossas prisões e hospícios, para que não se criem novos políticos sem condições de governar, que reproduzam merda atrás de merda, e que nossas únicas armas acabem sendo compartilhar conteúdo velho e caducado, achando que somos porta-vozes da verdade, punindo um babaca qualquer mas, na verdade, reforçando seus discursos venenosos e populistas.

somos tão punitivistas, queremos tanto maltratar quem consideramos inimigos públicos, demandamos isso das instituições e reproduzimos isso nas nossas vidas pessoais de tal maneira, que não percebemos que nos colocamos a nós mesmos numa furada imensurável. queremos expor o candidato sujo, mas também, através da mesma ferramenta, expomos meninas mulheres quando elas parecem não saber o que dizem. não podemos perder de vista quão populista é o boato, o drama, o apelo. a quem estamos querendo agradar?

sem nos darmos conta, nosso mau uso da Memória e da Verdade, saberes pilares de qualquer sociedade, nos puxa o tapete todos os dias, enquanto ajudamos um hipócrita despreparado a se eleger, mas também quando queremos sair por cima, humilhando jovens mulheres em praça pública.

Tirinha de Andre Dahmer