O que a naturalização da violência e a naturalização dos papéis sexuais têm em comum?

Quando eu estudava jornalismo policial e criminalização da pobreza, costumava dizer que a Violência é uma Linguagem. Dizia isso porque é muito evidente que alguns acontecimentos impactam mais a alguns que a outros: enquanto parte da população fica impressionada com as fotos noticiadas de pessoas encontradas mortas, outra parte diariamente pula cadáveres deixados em seus portões de casa, para conseguir chegar na escola e no trabalho. Enquanto parte das crianças jogam videogame para brincar de matarem uns aos outros, outra parte é submetida à violência policial em ruas e vielas de periferias e favelas, e perde filhos, primos, irmãos, amigos, nessa “brincadeira” institucional de bangue-bangue promovida pelo Estado — ora carregados para prisões, ora assassinados.

Eu chamava de linguagem porque era o que era: pessoas que são afetadas cotidianamente por violência entendem que esta é a forma de ser e estar no mundo. A violência educa, a violência é a língua-mãe, a violência comunica. Ela faz sentir, e depois ela é naturalizada, absorvida e reproduzida no nosso dia a dia, a ponto de não sabermos mais que somos afetadas por ela, a ponto de esquecermos e naturalizarmos essa forma de nos comunicar.

A partir do momento que comecei a estudar Feminismo e Teoria Feminista, compreendi que meu incômodo sobre a linguagem da violência era um incômodo com a forma que somos socializadas, nesta sociedade que transforma crianças em Homens ou Mulheres, dependendo se você nasce menino, ou menina. A socialização é a nossa educação para o cumprimento dos papéis sexuais; a socialização é a própria violência. Foi aí que entendi que esta é a tal da “linguagem violenta de mundo”, que eu começava a compreender anos atrás, colocando a responsabilidade no discurso, mas sem entender de onde ele vinha, onde ele tinha se originado.

É assim que as crianças são criadas; é assim que as mulheres são submetidas a relacionamentos abusivos; é assim que policiais matam gente e mandam pessoas para a prisão, sem remorsos: por meio do discurso violento da Socialização. Talvez em alguns momentos a gente até ganhe consciência que vivemos numa dinâmica de violência, mas, mesmo que de vez em quando consigamos realizar que estamos dando círculos em meio a situações agressivas, é muito, muito difícil sair. É difícil escolher sair. Porque não conhecemos os caminhos, porque não nos são dadas opções ou variações de como viver: ou somos agressivos, ou passivos; ou criativos, ou inertes; ou bons ou maus. A socialização se constrói em meio a este discurso militarizante sobre disciplina e sobre mérito: e era aí que eu queria chegar.

O discurso militarizante, este mesmo que é reproduzido em prisões, por policiais e presos; em instituições como escolas, hospitais, igrejas e famílias, é o próprio discurso da violência, masculinista, da educação por meio da disciplina que, para ser conseguida, precisa ser imposta via punição, em casos de descumprimento de regras. Por isso, quando homens encarcerados estabelecem uma norma social interna para conseguir sobreviver e organizar o cotidiano nas prisões, eles escolhem o mesmo tipo de dinâmica que as próprias organizações que os punem: a militar. Ou seja, quem descumpre, recebe uma sanção e precisa pagar o preço por ter desafiado as autoridades. Agimos assim porque a violência é essa linguagem, presente na nossa socialização, que acreditamos ser a única forma possível de educar.

Da mesma forma que homens reproduzem e naturalizam a linguagem da violência, nós, mulheres, também a reproduzimos, e vivemos o tempo todo escolhendo quando e em quais situações seremos dóceis e servis, ou autoritárias e impositivas. Aprendemos que a linguagem militarista, masculinista, da violência, é a melhor forma de educar crianças. Que elas, e nós, precisamos ser punidas em caso de descumprimento da ordem. O que não pensamos é que ser consideradas “agressivas” é diferente para nós, mulheres.

Enquanto os homens são “desviantes”, nós somos “loucas”, e isto demonstra as diferenças com que as instituições nos julgam e visualizam nossa transgressão. Transgressão porque nós, definitivamente, não fomos criadas para impor, mas para servir. Prisões são para homens; manicômios são para mulheres. Somos loucas, histéricas, precisamos nos tratar. Eles são meliantes, bandidos, criminosos. Mesmo o destino dado às mulheres criminosas são distintas. No início dos anos 1980, mulheres foram aceitas e incorporadas nas prisões masculinas como forma de pacificar estas instituições: é isso que esperam de nós, que tragamos civilidade e bons modos aos homens que desviam das normas, e isto deveria explicar muita coisa no sistema prisional masculino.

No caso do encarceramento das mulheres, nos são impostas atividades que corroboram com a socialização: bordado, pintura, maquiagem, cabelo, e muita, muita medicalização. Mesmo em unidades socioeducativas, as adolescentes do sexo feminino são mais medicalizadas que os meninos. Enquanto mulheres que visitam homens presos, somos presas sexuais entregues nas mãos de homens que viveriam na barbárie, se não fossem os corpos femininos servindo-os na “visita íntima”; equanto mulheres encarceradas, somos consideradas vítimas, incapazes, loucas, que precisam ser ressocializadas — para serem esposas ou empregadas domésticas mais eficientes. Os nossos crimes são morais, os deles, decorrência do desvio natural do curso.

Com tudo isso, e toda uma teoria que destrincha a Socialização, o que me incomoda mais, nas pesquisas sobre prisão e cárcere de uma forma geral, é a busca por explicações pouco materiais para o que acontece dentro do sistema prisional. Os debates ficam girando em torno de “desejo”, “performance”, “escolha”, “fetiche”. Os pesquisadores usam Foucault, Deleuze, e um milhão de filósofos da subjetividade. Entendemos todos que a prisão é a própria suspensão da subjetividade e da individualidade mas, na hora de fazer as análises, nos faltam ferramentas materiais para tal. A teoria feminista traz resposta para tudo que há de mais assombroso no universo do encarceramento, e nada tem a ver com subjetividade.

Pouco importa os motivos pessoais que levam cada pessoa a cometer crime, todos sabemos disso, porque a análise material de classe e raça nos permite fazer essa afirmação. O sistema penal não busca acabar com a criminalidade, mas busca criminalizar condutas, busca a criminalização, que pesa mais, dependendo da classe e da cor de quem cometeu esses crimes. Este é um fato sociológico corroborado por muitos pesquisadores da Criminologia crítica: é material e é afirmativo. Mas, na hora de estudar violência masculinista e por que homens cometem a maior parte das violências?; por que as filas de prisões masculinas estão cheias e das femininas vazias?; por que várias mulheres trocam de parceiros dentro das prisões, e nunca abandonam seus postos? Nada disso é respondido na materialidade: os pesquisadores querem falar de subjetividade, e desejo, e fetiche.

A teoria feminista explica tudo isso: a linguagem que nos educa, a meninos e meninas, homens e mulheres, é a Socialização. Ela, por si só, é a própria e primeira violência sofrida por todas e todos nós. Fugir da nossa própria socialização é o nosso principal desafio, porque nós educamos como fomos educados. Nós reproduzimos as merdas que nos ensinaram e chamamos de tradição, para evitar críticas. Homens matam homens e mulheres porque educamos meninos para serem predadores. Mulheres educam meninas e meninos, porque as educamos para educar e cuidar, e sob elas recai toda a lógica de reproduzir a socialização que receberam: militarista, masculinista, violenta. Precisamos acabar com a socialização para o cumprimento dos papéis sexuais. Paremos de criar meninas para serem Mulheres (dóceis, boas esposas, vítimas, mães, passivas); paremos de criar meninos para serem Homens (agressores, predadores sexuais, militares, infantis). A violência patriarcal faz este mundo rodar, e a maior parte de nós está se dando muito, muito mal com tamanha violência.

1 COMENTÁRIO

Comentários estão fechados.