As Mulheres e a Ciência

Quem gosta de ler artigos científicos, estudar a história da ciência ou ler sobre novas descobertas sabe que a ciência é predominantemente masculina. As mulheres cientistas aparecem como as raras e iluminadas exceções de seu sexo. E não é de hoje que os próprios cientistas tentam encontrar em argumentos biológicos o porquê de as mulheres não buscarem carreiras científicas.

Por muito tempo, atribuiu-se ao componente genético uma suposta preferência, para de alguma forma justificar que homens são mais inteligentes que as mulheres. No entanto, não são as mulheres que estão fracassando em ciência, é a ciência que vem fracassando com as mulheres, como bem coloca Angela Saini¹.

Se por um lado foi refutada a ideia de que há diferença nas capacidades cerebrais de homens e mulheres, por outro é verdade que há menos mulheres cientistas de forma geral e menos ainda nas ciências exatas. Por exemplo, de todos os prêmios Nobel de ciências entregues até 2018, apenas 5% foram para mulheres² (claro que também devemos levar em consideração que são homens, em sua maioria, selecionando qual tipo de pesquisa merece um prêmio tão importante).

Um dos motivos para que isso aconteça é o fato de o mundo das ciências ser hostil às mulheres. Mais da metade das mulheres cientistas dos EUA foram vítimas de assédio³, o que acaba por afastá-las desse mundo. O preconceito contra as mulheres nas ciências também persiste⁴. Na sua própria formação, houve um esforço dos homens para excluir as mulheres da ciência como a conhecemos hoje. Isso foi feito tanto formalmente, com a perseguição de mulheres que faziam experimentos (como o caso de acusações de bruxaria na Europa do início dos tempos modernos), como idealmente, com a difusão de estereótipos que relegavam às mulheres o campo da emoção e da superstição, deixando a razão para os homens.

A propagação desse preconceito é tão eficaz porque já é enraizado nas crianças desde bem pequenas. Em janeiro de 2017, a revista Science publicou um artigo⁵ que pretendia encontrar quando as crianças começam a interiorizar os estereótipos que associam a inteligência a algo propriamente masculino. Embora haja muitos estudos relatando a existência da construção social desse conceito, poucos se preocupam em estudar quando isso começa.

Um dos testes descritos pela revista consistia em contar a crianças uma história em que a personagem principal era uma pessoa “muito, muito inteligente”⁶, sem mencionar o sexo dessa pessoa. Depois, pediam às crianças que supusessem qual das pessoas mostradas (dois homens e duas mulheres desconhecidos) era a personagem da história. As crianças de 5 anos associaram majoritariamente a personagem ao próprio sexo. Contudo, o estudo constatou que, já a partir dos 6 anos, as crianças começam a associar a pessoa “muito, muito inteligente” a alguém do sexo masculino.

De forma similar, associações sobre alguém “muito, muito agradável”⁷ resultaram em crianças de 5 anos associando a alguém do próprio sexo, mas a partir dos 6 anos a associação tende ao sexo feminino. Assim, a revista conclui que os estereótipos de gênero começam a ser assimilados pelas crianças já no fim da primeira infância e muito rapidamente.

A ideia de que as mulheres são mais passionais e menos racionais que os homens é muito reforçada na sociedade e acaba afastando meninas de buscarem uma carreira nas ciências. O reforço aos estereótipos de gênero influencia na escolha das profissões que os jovens querem seguir.

A ideia também de que mulheres são mais agradáveis, ou seja, de que devem ser boas e delicadas com os outros também é prejudicial para elas, pois coloca que devem se esforçar para agradar aos outros e não questionar o que acham errado, ao mesmo tempo em que reforçam um comportamento mais agressivo nos meninos, visto que associam ser gentil com algo próprio de mulheres.

As mulheres estão fora da ciência de maneira geral e isso é um perigo para nós. Devemos nos lembrar de que a ciência não é neutra. Ela é feita por pessoas, que têm seus preconceitos e prioridades. Excluir as mulheres da ciência tem um papel fundamental na manutenção do patriarcado, porque privilegia a visão masculina sobre o que é importante pesquisar. Um exemplo bizarro disso pode ser visto na programação de inteligência artificial dos telefones celulares, em que é possível pedir ao assistente que encomende uma mulher prostituída, mas ele não consegue responder a um pedido de ajuda em caso de estupro. Outros exemplos mais comuns podem ser encontrados na medicina, em que o corpo padrão é de um homem, e poucas pesquisas são direcionadas exclusivamente ao corpo feminino, fazendo mulheres ingerirem medicamentos inadequados, ou na tecnologia de automóveis, em que até hoje não há cintos de seguranças para mulheres grávidas (os equipamentos atuais, em caso de acidente, causam dano em 75% dos fetos).⁸

A assimilação dos preconceitos em pessoas ainda tão jovens mostra como o sistema de opressão sexual está extremamente arraigado na sociedade, que continua a ensiná-lo às crianças. Ainda hoje, é perceptível a aceitação da ideia errônea de que mulheres têm menos aptidões científicas que os homens. Nós precisamos de meninas se interessando por ciência e de mais mulheres cientistas, por isso é preciso sempre desconstruir os preconceitos, e parar de ensinar às crianças que há atributos psicológicos inatos a cada um dos sexos.

Foto por RawPixel

Notas:

1. SAINI, Angela. Inferior: How Science Got Women Wrong-and the New Research That’s Rewriting the Story. Boston: Beacon Press, 2017.
2. CONSTENLA, Tereixa. O papel das mulheres na história da ciência. El País, 17/09/2017. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/14/cultura/1505400027_400435.html> Acesso em: 19/03/2020.
3. COMMITTEE ON WOMEN IN SCIENCE, ENGINEERING, AND MEDICINE. Sexual Harassment of Women: Climate, Culture, and Consequences in Academic Science, Engineering, and Medicine. 2018.
4. Ilustrativamente, podemos ver o comentário de Tim Hunt, um importante cientista britânico, em conferência na Coreia: Três coisas acontecem quando há mulheres no laboratório: você se apaixona por elas; elas se apaixonam por você e elas choram quando são criticadas.
5. BIAN, Lin et al. Gender stereotypes about intellectual ability emerge early and influence children’s interests. Science, 2017. Disponível em: <https://science.sciencemag.org/content/355/6323/389.full> Acesso em: 19/03/2020.
6. “Really, really smart” no original.
7. “Really, really nice” no original. A palavra “nice” em inglês é um adjetivo que pode ser entendido ao mesmo tempo como gentil e bonito.
8. MÜZELL, Lúcia. Sexismo na ciência leva a diagnósticos e tratamentos piores para as mulheres. RFI, 13/03/2019. Disponível em: <http://www.rfi.fr/br/ciencias/20190313-sexismo-na-ciencia-leva-diagnosticos-e-tratamentos-piores-para-mulheres> Acesso em: 19/03/2020.