Chamado urgente pela unidade entre movimentos africanos pela soberania alimentar e movimentos feministas radicais no continente
Foto: Linzi Lewis

JOANESBURGO, 08/03/2019 (IPS) — A África vem enfrentando tempos sombrios. A mudança climática está provocando imensos impactos sobre a região e particularmente a agricultura, fazendo com que agricultores familiares, em especial as mulheres, enfrentem estiagem, escassez geral de água, flutuações nas estações e enchentes em algumas áreas.

As pequenas agricultoras vivem de perto a erosão da agrobiodiversidade, o desmatamento, o declínio da saúde e da fertilidade do solo, a grilagem de terras e das águas pelos poderosos, a perda de acesso à terra, a marginalização e a perda do conhecimento indígena, e a falta generalizada de serviços e apoio essenciais.

Ao mesmo tempo, as economias estão enfraquecendo e seguem com forte dependência da ajuda externa, com as intervenções extrativistas vindas de fora. Há forte orientação autoritária nos governos da região, com falta de transparência e responsabilidade pública, organização fraca e fragmentada da sociedade civil, e intervenções de desenvolvimento de cima para baixo.

As corporações vêm capturando as principais instituições estatais, os processos e as funções de formulação de políticas públicas, com a privatização dos processos decisórios e a exclusão da população, e a ocupação e apropriação de sementes e sistemas alimentares em prol dos lucros das corporações multinacionais.

No presente, o poder corporativo está quase descontrolado no fornecimento de insumos agrícolas. A narrativa dominante do agronegócio como indispensável para alimentar o mundo exerce grande influência no continente, em que as corporações capturaram os processos de formulação de políticas públicas do nível continental até nacional de vários países.

Embora a fonte da maioria das sementes do continente seja da guarda e partilha das agricultoras, e mercados locais, esse sistema não é reconhecido pelas políticas públicas e leis da maioria dos países.

As práticas das agricultoras em torno das sementes são marginalizadas e em geral menosprezadas como de baixa qualidade e retrógradas. O impulso predominante da política e da programação agrícola e de sementes no continente é a busca por substituir sistemas dos agricultores por intervenções de cima para baixo, com base no uso de tecnologias de propriedade privada, bem como mercados comerciais em grande escala que são capazes de integrar apenas um estrato superior relativamente pequeno de produtores, quando não os afastam por completo.

Esse impulso é dado pelos interesses corporativos multinacionais com apoio de instituições e agências-chave estatais em nível nacional, regional e continental. Isso acontece seja por meio de incentivo à industrialização comercial em larga escala liderado por uma poderosa coalizão global do agronegócio, ou por meio de uma estratégia de pequenos produtores para a Revolução Verde, para integrar uma camada de pequenos agricultores nas cadeias de valor corporativas, a fim de exportar os cultivos a granel de commodities, tais como milho e soja.

As mulheres possuem um papel essencial na seleção, guarda e partilha das sementes, como parte de uma rede mais ampla no interior dos sistemas de sementes gerenciados por agricultores, moldando a agrodiversidade que atende às necessidades das populações locais. Isso se aplica tanto à colheita de alimentos básicos, como a outros cultivos alimentares. De várias maneiras, esse conjunto de recursos genéticos, que as mulheres seguem desenvolvendo e mantendo, é a espinha dorsal da sociedade humana.

As restrições postas sobre materiais reprodutivos, ou seja, sementes (inclusive todos os materiais de cultivo), e o processo decisório centralizado em torno da reprodução em direção à uniformidade, homogeneidade, direito de propriedade, cria maior desigualdade, amplifica a vulnerabilidade e a dependência sobre insumos externos, o que coloca a futuro da produção alimentar em maior risco.

As restrições crescentes sobre o uso, a falta de apoio para essas atividades e até mesmo a sua criminalização tornam as condições de produção mais desafiadoras para todos os pequenos agricultores, mas em particular as mulheres em sua maioria. Na divisão de trabalho vigente, as mulheres são em geral as responsáveis pela aquisição de alimentos e pelo preparo da comida.

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Foto: Linzi Lewis

As restrições sobre o uso de sementes, o que pode e não pode ser produzido e como produzir, traduzem-se em limites sobre a diversidade alimentar em nível domiciliar, que é elemento chave da nutrição.

Como a maioria das sementes cultivadas no continente é guardada nas fazendas, trocadas e comercializadas localmente por agricultores, isso fornece uma base sólida para que sistemas alternativas de soberania da semente possam prosperar fora do mercado de crédito e corporativo. Para pequenos agricultores na África, a importância dos sistemas de sementes de agricultores como central para a conservação da biodiversidade, garantir a diversidade nutricional e manter os meios de subsistência tem sido destacada em um imenso conjunto de trabalhos ao longo dos últimos 30 ou 40 anos.

Entretanto, esses sistemas podem se beneficiar do apoio externo. Uma prioridade chave para os pequenos agricultores da África é a resiliência diante dos eventos climáticos adversos. Isso requer a adaptação das variedades de sementes e uma maior diversidade agrícola. As mulheres são guardiãs primordiais da nossa diversidade de sementes, as guardiãs da reprodução e da vida. Isso destaca as lutas pelos direitos dos agricultores, dos direitos reprodutivos, do direito à autodeterminação, e para manter sistemas que sustentam a vida. Nesse dia que homenageamos as mulheres, homenageamos nossa herança e nosso futuro.

Uma coalizão de transição em direção a sistemas alimentares ecológicos, fundada sobre a agroecologia e a soberania alimentar, vem ganhando força na África e em todo o globo, mas permanece relativamente fraca, fragmentada e subfinanciada.

Os agricultores, em especial as mulheres, e a sociedade civil estão realizando um importante trabalho em cima com base na agroecologia e na agricultura sustentável nos territórios, mas muitas vezes não conseguem ir além das suas práticas localizadas. Esses atores precisam com urgência se conectar com outros da continente para formar um movimento maior e mais coerente pela transformação, em especial os movimentos feministas radicais do continente. Juntas, somos capazes de resistir e contestar a hegemonia da agricultura comercial em grande escala e do agronegócio corporativo. Devemos, juntas, reconstruir e fortalecer em cada local os sistemas alimentares e de sementes para todos os africanos.

Por Mariam Mayet, Stephen Greenberg e Linzi Lewis do Centro Africano pela Biodiversidade (African Centre for Biodiversity)

Centro Africano pela Biodiversidade (African Centre for Biodiversity — ACB) é uma organização sem fins lucrativas, liderada em grande parte por mulheres, sediada na África do Sul e com membros na Tanzânia. Realiza pesquisas, análises, aprendizagens e intercâmbios, construção de competências e movimentos, e campanhas para ampliar consciência, catalisar ação coletiva e influenciar processos decisórios nas questões de biossegurança, transgenia e novas tecnologias, leis de sementes, sistemas de sementes dos agricultores, agrobiodiversidade, agroecologia, expansão corporativa sobre a agricultura africana, e soberania alimentar na África.