Vednita Carter, sobrevivente do sistema de prostituição, fala sobre prostituição, racismo e escravidão

Abolicionismo vs regulacionismo

A maioria de nós ouviu falar de “abolicionismo” não no contexto da escravidão sexual feminina, mas como uma filosofia e prática pela eliminação da escravidão racial.

Assim como na escravidão racial, aquelas que trabalham para abolir a prostituição a entendem como escravidão sexual — nem sempre a escravidão daquelas pessoas em correntes físicas que foram brutalmente forçadas à prostituição, mas uma forma mais complexa de escravidão na qual mulheres são subjugadas à prostituição através de engano, fraude, abuso das suas vulnerabilidades, ou abuso de poder. O Grupo de Trabalho das Nações Unidas, criado para monitorar a Convenção pela Supressão do Tráfico Humano e da Exploração da Prostituição de Terceiros, de 1949, declarava que a prostituição é uma forma contemporânea de escravidão. Nós tendemos a esquecer que levou séculos para as pessoas reconhecerem e agirem contra a opressão racial da escravidão.

Algumas das mesmas questões que nós estamos agora debatendo no contexto da prostituição foram historicamente debatidas no contexto da escravidão racial. Mais contenciosa era a questão do abolicionismo versus regulacionismo.

O debate histórico sobre a escravidão racial incluía propostas para administrá-la como um negócio e torná-la “melhor” para aqueles que foram escravizados. Ao invés de abolir o sistema de escravidão, os defensores regulacionistas propunham regular a escravidão como um “setor econômico” sancionado pelo estado. Da mesma forma, no debate sobre prostituição, um relatório controverso publicado em 1998 publicado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), a agência trabalhista oficial das Nações Unidas, chamou pelo reconhecimento econômico da indústria do sexo. O relatório recomendava que quatro países do Sudeste Aisático taxassem e regulassem a prostituição como um trabalho legítimo de modo a aproveitarem a explosão lucrativa da indústria do sexo.

No início, a legislação britânica contra a escravidão racial era regulacionista, baseada no princípio de que “o Comércio era justo, mas tinha sido mal utilizado”. Os adversários britânicos da escravidão racial na maioria limitavam os seus ataques ao comércio de escravos, não à escravidão por si, assim como os defensores modernos da prostituição limitam suas críticas ao tráfico sexual ou à prostituição forçada, não à própria prostituição.

As primeiras medidas anti-escravidão propostas na Britânia eram comparáveis aos esquemas de redução de danos propostos pelos atuais defensores da prostituição, que querem treinar as mulheres em práticas de “sexo seguro”, incluindo auto-defesa para afastar compradores perigosos e exigindo que empresários prostituidores coloquem “botões de pânico” nos quartos de bordeis, alegadamente para prevenir a violência — um reconhecimento disfarçado de que prostituição é violência contra as mulheres.

Alguns países pró-escravidão queriam regular a escravidão racial através com inspeções oficiais aos navios de escravos, e alguns até mesmo promoveram padrões de higiene nos veleiros que traziam pessoas escravizadas da África. Outros argumentavam uma variação da distinção forçado/livre, agora prevalente no debate sobre prostituição, afirmando que escravos deveriam ser devolvidos à África apenas se tivessem sido sequestrados, e não legalmente comprados. Para regular as condições do comércio eslavagista, Portugal restringiu a duração das viagens dos navios de escravos. A França optou por tirar lucro da escravidão, abrindo seus portos no Caribe a comerciantes estrangeiros de escravos, desde que pagassem um imposto. E muitos argumentaram, assim como Cotton Mather, que os escravos na América do Norte “viviam melhor [como escravos] do que como homens livres na África”.

Nos Estados Unidos, havia argumentos a justificarem a escravidão na base de que nem todos os escravos eram “escravizados”, como os serviças domésticos, e que outros eram agentes livres nalgum ponto do espectro da escravidão. Por exemplo, alguns pesquisadores sustentam que Sally Hemings, que pertencia a Thomas Jefferson e que “provavelmente era a mãe de seus quatro filhos”, era privilegiada. Eles dizem que apesar de Hemings ter começado a sua vida como uma escrava, posteriormente ela levou uma vida de mulher livre e escolheu ficar com Jefferson quando ele voltou para os Estados Unidos. Eles apontam para evidências de que Hemings aprendeu Francês em Paris com Jefferson, quando ele foi colocado na França como embaixador das novas nações, que ele comprou roupas finas para ela, que o relacionamento deles era muito íntimo e que ela poderia ter ficado em Paris como uma mulher livre quando Jefferson retornasse aos Estados Unidos, mas optou por voltar com ele.

Defensores da indústria do sexo montaram uma similar desconstrução do tráfico sexual como uma situação coerciva temporária, que depois, de alguma forma, desenvolve para uma existência livre e escolhida na indústria do sexo. Como afirma um relatório de 2011 do Conselho da UNAIDS,

“As pessoas que (…) uma vez se veem enganadas ou coagidas na indústria do sexo podem sair de situações de coerção, mas permanecem no trabalho sexual operando de forma mais independente e geralmente com o apoio de colegas profissionais do sexo, clientes, parceiros íntimos e seus gerentes ou agentes.”

É duvidoso, contudo, que a maioria das mulheres traficadas iludam a si próprias a acreditar que clientes, gerentes e agentes — mais conhecidos como compradores, operadores de bordéis e cafetões — são sua futura rede de segurança.

A Grã-Bretanha e os Estados Unidos criminalizaram o comércio internacional de escravos antes de criminalizarem a própria escravidão racial. Em 1808, o Congresso dos Estados Unidos baniu a importação de mais escravos para o país. Em outras palavras, baniu o tráfico humano internal para propósito de escravidão, mas não baniu o comércio esclavagista doméstico. Essa legislação fez pouco para obstruir a escravidão internacional: na verdade, ajudou a aumentá-la.

O mercado esclavagista doméstico sozinho fez das mulheres afro-americanas mercadorias sexuais e reprodutivas para produzir a próxima geração de escravos. Economicamente, esse mercado doméstico expandiu tanto o lucro dos senhores que no começo da Guerra Civil, “o valor em dólar dos escravos era maior que o valor do dólar de todos os bancos americanos, ferrovias e fábricas juntos”. A escravidão doméstica não foi abolida nos Estados Unidos até 1865, quando o Congresso dos Estados Unidos ratificou a 13ª Emenda, apenas para serem acompanhadas das leis de segregação racial de Jim Crow.

Semelhantemente, sob a lei federal anti-tráfico dos Estados Unidos, a prostituição doméstica, que é largamente [composta de] tráfico doméstico, não é ilegal, mas foi deixada para decisão dos estados regular ou determinar as penas para proxenetismo, solicitação, e manutenção de bordeis. Uma mulher romena traficada para o país e forçada à prostituição recebe proteção sob a Lei Federal de Proteção às Vítimas de Tráfico (TVPA), mas uma mulher norte-americana forçada à prostituição é tratada como criminal e presa. O cafetão dela, se for pego, recebe uma sentença menor que um traficante que importa mulheres estrangeiras para a prostituição nos Estados Unidos. Também sob o TVPA, todas as crianças traficadas, forçadas ou não, recebem proteção. Contudo, crianças norte-americanas, muitas fugindo de lares abusovs, que terminam vendendo seus corpos nas ruas das maiores cidades dos Estados Unidos, podem ser presas por prostituição, consideradas como criminais, e mandadas aos centros de detenção juvenil. Meninas de apenas 11 anos de idade, tendo sido exploradas sexualmente desde cedo, são tratadas como criminais.

Um argumento egoísta usado para manter a escravidão racial no século XIX era que se a Grã-Bretanha desistisse do comércio escravo, a França e outros países assumiriam o controle. Da mesma forma, os opositores à legislação abolicionista para criminalizar a demanda por prostituição, aprovada em países como Suécia, Islândia e Noruega, argumentam que esses países estão simplesmente exportando seus problemas de prostituição e que penalizar usuários de prostituição apenas os envia para outros lugares.

No século XIX, o Comitê Britânico das Índias Ocidentais estava dedicado a preservar a escravidão nas suas plantações caribenhas. Quando sua indústria esclavagista ficou gradualmente sob ataque, o comitê empregou lobistas para lançar uma campanha propagandística contra aqueles que se opunham à escravidão nas plantações. Hoje, a indústria do sexo e seus apologistas não só usam táticas cada vez mais maliciosas para desacreditar abolicionistas da prostituição, mas também trocaram favores com políticos para promover leis que favoreçam a normalização da compra, proxenetismo e bordeis. Muitos capitães da indústria do sexo se tornaram generosos contribuintes e conselheiros de políticos, incluindo aqueles que votaram pela regulamentação e descriminalização do comércio sexual nos Estados Unidos, Austrália, Alemanha e Holanda.

Josephine Butler

Quando a abolicionista britânica Josephine Butler começou sua campanha contra o sistema de prostituição, durante o útlimo terço do século XIX, a regulamentação da prostituição era a tendência dominante, especialmente na Europa. Esse sistema prevaleceu até a metade do século XX. Mulheres eram mantidas em bordeis mandatados pelo estado, submetidas ao assédio da polícia e presas se fossem encontradas fora dos bordeis, e forçadas a passarem por exames médicos a tal ponto que eram simplesmente descartadas se encontrassem alguma doença. Em 1949, a maré legal virou e a campanha abolicionista de Josephine Butler criou raízes numa convenção das Nações Unidas que reforçava a abolição — não a regulamentação — da prostituição.

A Convenção de 1949 para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Terceiros foi um passo a frente na legislação dos direitos humanos. Ela descriminalizava as vítimas, mas não os perpetradores, diferentemente do que acontece nos sistemas de prostituição sancionados pelos Estados. Após a aprovação da Convenção de 1949, a prostituição era vista como mais próxima da escravidão do que do trabalho, e a linguagem do “trabalho sexual” teria sido um anátema para aqueles que redigiram essa legislação. Nas décadas de 1970 e 1980, no entanto, houve um movimento para abolir o abolicionismo e sua principal convenção da ONU e substituí-los por uma política pública que distinguisse entre prostituição forçada e prostituição livre, e entre tráfico sexual e prostituição. Esse movimento fez do consentimento, invés da exploração e dos danos, a fundação e o foco das leis e políticas nacionais e internacionais. O abolicionismo foi atacado como ultrapassado e moralista.

A posição anti-abolicionista é baseada em um modelo de trabalho de prostituição e tráfico internacional de sexo, onde ambos são redefinidos como trabalho sexual ou como migração para trabalho sexual. O modelo trabalhista renomeou todo o sistema de prostituição, transformando cafetões em agentes de negócio, donos de bordéis em empreendedores do sexo, usuários de prostituição em consumidores e mulheres prostituídas em profissionais do sexo. Esse discurso é remanescente de um estrategista pró-escravidão nas Índias Ocidentais que escreveu:

“Em vez de ESCRAVOS, que os negros sejam chamados PLANTADORES ASSISTENTES; e então não ouviremos protestos tão violentos contra o comércio de escravos por parte de teólogos piedosos, poetas de coração mole e políticos míopes.”

Um desafio essencial dos abolicionistas britânicos era convencer os cidadãos de que a escravidão racial era de fato uma forma de escravidão, não uma forma de trabalho a ser aceita como tal, apesar de todos os esforços pró-escravidão para humanizá-la. É preocupante lembrar que para muitas pessoas comuns nesses séculos passados, a escravidão racial parecia tão normal e natural quanto muitos consideram a prostituição hoje. No século do Iluminismo, com seus ideais emergentes das possibilidades da razão para moldar os destinos humanos da vida, da liberdade e da busca da felicidade, poucos viam as contrações entre a liberdade dos homens brancos e a supressão dos negros. Os que pregavam idéias seculares e religiosas progressistas — John Locke, Voltaire, George Whitefield — concordaram com a escravidão de várias maneiras. Para os primeiros abolicionistas, a tarefa de eliminar a escravidão racial era tão difícil quanto a eliminação da prostituição é para as abolicionistas que vêem o longo caminho pela frente, sem mencionar as extensas campanhas contra a escravidão sexual que já ocorreram.

Isso não significa que a prostituição é inevitável. Assim como a escravidão racial, a escravidão sexual é socialmente e politicamente construída “a partir da dominação masculina e da subordinação feminina. Uma “idéia de prostituição” precisa existir na cabeça de homens individuais para permitir que eles concebam a compra de mulheres para o sexo. Essa é a idéia de que as mulheres existem para serem usadas, que é uma maneira possível e apropriada de usá-las”.

O sistema de prostituição não acabará até que muitos homens sejam desiludidos dessa idéia, até que muitas pessoas reconheçam que a escravidão sexual, como a escravidão racial, é a compra e venda de seres humanos, e até que mais pessoas entendam que a prostituição é tão resolvível quanto qualquer outro tipo de opressão.

De várias maneiras, este livro [Não é uma escolha, não é um trabalho] trata da falta de determinação política para abordar o que de fato se tornou uma crise documentada de direitos humanos — o abuso comercial contínuo de mulheres e crianças na maioria dos países do mundo. Para não deixar os leitores com essa imagem, é também um testemunho das mudanças que o abolicionismo feminista fez nas políticas e programas que combatem essa crise.

Capa do livro “Not a choice, not a job”

Vednita Carter, sobrevivente do sistema de prostituição, fala sobre prostituição, racismo e escravidão

Esta é a tradução de uma seção do livro “Not a choice, not a Job” (Não uma escolha, não um trabalho), lançado em 2013, da pesquisadora e autora feminista radical Janice Raymond.