Feminilidade, lesbianidade e lugar de mulher
Feminilidade, lesbianidade e lugar de mulher

Tudo bem ser mulher, mas só se for do jeito patriarcal.

Eu precisava de um par de chinelas. Saí com minha mãe pra comprar. Entrei na loja da marca famosa e um par específico temático do filme “Fantasia”, da Disney, me chamou a atenção. Eu escolhi meu número e entreguei à vendedora, e ela me disse que, infelizmente, não tinham esse tema no modelo feminino.

Eu fiquei tipo — quê?

Eu não sou assídua consumidora/compradora de chinelas, não vejo muita televisão (pra ver propagandas) e também não recebo muitas propagandas disso nas minhas redes sociais, então — por increça que parível — eu havia me esquecido completamente de que, sim!, existem chinelas femininas.

E é impressionante como é fácil fazer um modelo feminino de qualquer coisa: é só você basicamente tirar sua funcionalidade ou deixá-lo desconfortável. O modelo feminino das chinelas consiste em uma modelagem reduzida e com tirinhas mais finas.

Porque até nossos pés precisam ser femininos.

Porque tudo que nós usamos precisa demarcar, de alguma forma, que somos mulheres. Essa é a função primordial da feminilidade.


Nós, feministas radicais e materialistas, dizemos que a opressão da mulher é sexual — ou seja, que somos historicamente oprimidas e exploradas por conta de nossas capacidades sexuais e reprodutivas. Mais especificamente: pela presunção de nossas capacidades sexuais e reprodutivas — porque o patriarcado não nos faz teste de fertilidade nem ultrassom quando temos 5, 15 ou 20 anos de idade para garantir que temos útero e ovários funcionais e uma vagina penetrável (por isso mulheres sem útero e sem canal vaginal não são “exceção” à misoginia nem são um “furo” na teoria radical; na verdade, é bem o contrário). Basta que pareça que nós os tenhamos.

Isso é simples de se comprovar de muitas formas — não só por a violência contra as mulheres e meninas ser um fenômeno generalizado pelo globo, com variáveis culturais e de época, quanto justamente pelo fato de que você não precisa fazer mais nada, nem falar, nem demonstrar qualquer traço de personalidade pra ser tratada diferentemente de um macho. Basta você ser fêmea.

Mas, é claro, nós não andamos nuas por aí. Se um macho e uma fêmea, em seu estado natural, fossem colocados lado a lado com seus genitais e outras características sexuais secundárias cobertas — digamos, com todo o tronco coberto — esses corpos não seriam tão absurdamente diferentes. Existem diferenças, é claro, até no nível dos ossos — tanto que é possível distinguir machos de fêmeas pelo esqueleto —, mas meu ponto é que a diferença não seria absurda.

Feminilidade, lesbianidade e lugar de mulher
Rain Dove, a modelo que usa sua androginia para posar tanto como “homem” quanto como “mulher”

É necessário, então, que o nosso sexo seja escancarado para a sociedade de outra forma. É necessário que sejamos marcadas para que a sociedade saiba como nos tratar, porque o tratamento reforça a situação de poder das pessoas na sociedade. É por isso que pessoas andróginas — cujo sexo não conseguimos descobrir em 5 segundos — são um incômodo; as pessoas ao redor não sabem como tratá-las e usam toda sua capacidade cognitiva e seu conhecimento de “biologia” para tentar reconhecer traços sexuais: mas tem seios? E a linha do maxilar? As mãos, de repente? Quadril? Pomo de adão?

A forma como nosso sexo é demarcado — imagino que você já tenha entendido — é a própria feminilidade.

Feminilidade, lesbianidade e lugar de mulher
Marta (futebol), Jaque (vôlei), Sonia Malavisi (saltadora com vara/Itália) e Natasha Hastings (velocista/EUA)

Tudo bem fazer “coisa de homem” — mas não ser feminina já é demais

A entrada das mulheres em diversos setores histórica e socialmente considerados masculinos — como o próprio ambiente de trabalho profissional (e com isso quero dizer remunerado), a universidade, as artes, e, como destaco aqui, os esportes — não foi concedida, pelo patriarcado, sem custo. Com a divisão sexual do trabalho sendo formalmente mitigada (ela ainda existe, é claro, mas considerem, a título de exemplo, que de 1941 até 1983 as mulheres eram proibidas por lei de jogar futebol no Brasil), torna-se necessário demarcar o lugar das mulheres e as diferenças entre mulheres e homens de alguma outra forma. Faz-se necessário lembrar às mulheres — e lembrar à sociedade como um todo — que elas estão ali, mas o lugar delas não é ali, e que elas estarem ali não significa, de forma alguma, que sejam iguais aos homens.

As mulheres que ocupam lugares tradicionalmente “masculinos” e que se recusam a ceder à feminilidade são acusadas — nenhuma novidade — de “quererem ser homens”, de serem “mulher-macho”, de estarem “negando sua natureza”; enfim, vocês sabem do que eu estou falando. Porque quando uma mulher decide, deliberadamente, não modificar seu corpo, não se mutilar, não ceder a vestuários e visuais desconfortáveis, disfuncionais e/ou inúteis — em outras palavras, quando ela permanece em seu estado natural —, ela é acusada de querer ser homem porque o ser humano em seu estado natural só pode ser masculino, porque o homem é o sujeito, a mulher é “o outro”, o diferenciado, o modificado. É uma mulher que, conscientemente ou não, reivindica sua humanidade, sua agência e sua autonomia corporal, curiosamente por meio de uma não-ação (não se maquiar, não se depilar, não usar roupas desconfortáveis).

A presença de mulheres feminilizadas em espaços masculinos possui essa contradição em si (porque os sistemas de discrepância de poder, como um todo, têm sua fundação em contradições). Elas estão lá, e é permitido que estejam lá, mas com a condição de que lembrem a si mesmas e às outras, o tempo todo, quem elas são e de onde vieram.

Tem que usar batom e salto.

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Desembargadoras e desembargadores do TRF-4 (RS).

E, vejam — isso não é uma crítica às mulheres, individualmente, que usam maquiagem ou saia ou salto. Não é uma crítica ao batom de Marta ou aos cílios de Jaque. Muitas vezes as mulheres sequer têm escolha e precisam se feminilizar para enfrentar o mundo, manter seu emprego, conseguir um emprego. Mais difícil ainda pra uma mulher negra, cuja cor já é considerada suja por si só. Mais difícil ainda pra uma sapatão, cuja sexualidade já é considerada suja por si só. Nós precisamos sobreviver — sobreviver, sendo mulher, é por si só uma resistência num mundo que nos mata a troco de nada. Eu quero aqui fazer uma análise das causas e das consequências desse sistema.

Porque todo mundo sabe o que acontece se nos recusarmos a seguir as regras do sistema deles. Além de serem acusadas das mais diversas imbecilidades, as mulheres que se recusam a reproduzir a feminilidade são marginalizadas, usadas como “mau exemplo” (de uma mulher que não conhece seu lugar, na maioria das vezes) e, não raro, formalmente penalizadas.

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Com o advento da Copa Feminina, a história da jogadora Sissi foi relembrada. Caso você não tenha lido, eu faço um resumo aqui pra você. Sissi foi uma ídola do futebol brasileiro feminino bem antes de Marta. Ela fez parte da seleção de 1988, a primeira, e ajudou a conquistar o terceiro lugar no mundial de 1999, há exatos 20 anos. Ao voltar pro Brasil, raspou sua cabeça. E o futebol brasileiro não deixou barato. O Paulistão de futebol feminino inseriu no regulamento de 2001 uma regra que falava em “enaltecer a beleza e sensualidade das jogadoras para atrair o público masculino”. Uma jogadora de cabelo raspado não é tão facilmente sexualizável assim.

Sissi foi para os Estados Unidos e lá está até hoje, como treinadora.

“Ah, mas 1999, né? As coisas já mudaram bastante.”

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Meagan Hunter se demitiu da Chili porque se recusou a se vestir de maneira “mais apropriada a seu gênero” — aparentemente, ela se vestia de forma “inapropriada” em suas vestimentas neutras. Ela estava sendo considerada para uma promoção, quando o gerente disse que, para isso, precisaria que ela se vestisse de maneira mais “apropriada a seu gênero”. Ele, ainda, disse que não pensava que ela traria “o tipo certo” de clientela.

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Tem também esse escritório de advocacia que passou um PDF inteiro de dresscode para candidatas (e candidatos também, sejamos justas, rs) contendo recomendações bastante específicas.

Um escritório de advocacia, gente.

Inclusive, se vocês passarem meia hora que seja nessa página ótima do facebook (“Vagas Arrombadas”) vão perceber o quanto é assustadoramente frequente a menção a beleza e feminilidade nos requisitos para vaga, além de cor de pele, cor de cabelo, idade e peso (alguns estabelecimentos são mais sutis e simplesmente pedem o envio de uma foto 3×4 junto com o currículo).

Feminilidade, lesbianidade e lugar de mulher

Também nesse ano teve o caso de uma empresa russa que ofereceu às suas empregadas o pagamento de bônus em dinheiro para aquelas que usassem saias ou vestidos para o trabalho. Quando o caso veio a público, o representante da empresa disse que apenas queriam “deixar os dias mais bonitos”. Que o incentivo fazia parte de uma gincana e que a escolha desse bônus para as mulheres era uma ótima forma de unir a equipe, composta em 70% por homens. Mas, para além de ser uma brincadeira, a empresa queria que suas empregadas sentissem o charme e a feminilidade de escolher usar saia ou vestido.

Na gincana houve atividades propostas para homens também, é claro. Houve uma competição de flexão de braço.

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Thays Cyriaco, por sua vez, foi forçada a usar o banheiro masculino durante cinco meses em seu local de trabalho, a rede de supermercados Makro. Ela foi vista usando o banheiro feminino por uma promotora do supermercado — a qual reclamou no departamento de Recursos Humanos da loja — e, no dia seguinte, foi “orientada” a passar a usar o banheiro masculino. “Já que você parece homem, vai usar o banheiro masculino”. Aparentemente, para se usar a cabeça raspada é preciso ter pênis.

Existe escolha real se você é penalizada, dependendo do que escolhe? Existe escolha, se você é condicionada desde cedo a pender pra determinado lado e rechaçar o outro? Existe escolha se as mulheres que fazem escolhas diferentes sofrem punição exemplar para nos lembrar a que estamos sujeitas? Uma gaiola é menos claustrofóbica se é dourada?

Se estamos “ocupando lugares de homens” mas continua existindo um imaginário social sobre o que é “ser mulher”, então esses lugares deixaram, de fato, de ser “masculinos”? Isso está servindo à nossa libertação? Me parece mais como um jogo de soma zero: entre na política, mas de saia e terno. Entre em campo, mas de batom. Seja professora universitária, mas não corte o cabelo.

Se o objetivo da feminilidade é justamente demarcar nosso sexo para garantir a manutenção da supremacia masculina, deveria ser óbvio para todas as feministas que ela é totalmente contrária aos propósitos revolucionários do feminismo. Adianta muita coisa termos conquistado “o direito” de participar da política, de jogar futebol, de trabalhar, de participar da vida pública, enfim —, se, para isso, ainda precisamos usar vestido? O objetivo das feministas, 150 anos atrás, não era precisamente acabar com a desigualdade entre os sexos? Qual a lógica de, atualmente, acharmos que vamos conseguir isso sem abrir mão de uma das principais ferramentas de manutenção e de reprodução dessa mesma desigualdade?

O lugar da lésbica — ou não-lugar

Por fim, eu gostaria de falar um pouco sobre como tudo isso se relaciona à lesbianidade.

Como dito, as mulheres que ocupam lugares tradicionalmente masculinos são acusadas de estarem emulando homens e de quererem ser homens. O mesmo acontece quando negamos a feminilidade patriarcal. Uma acusação cumulativa (e geralmente consequente) a essas é a de se ser sapatão.

Sapatão, mulher-macho: para nossa sociedade, a mulher que recusa a feminilidade só pode ser sapatão; faz parte de se ser sapatão a recusa à feminilidade (uma lésbica “feminilizada” é um contrassenso); e, é claro, sapatão quer ser homem, mas não é mulher (e, obviamente, também não é homem). É alguma coisa no meio (leiam Monique Wittig!).

A (heteros)sexualidade e a feminilidade estão interligadas no patriarcado porque feminilidade não é um conceito somente estético. Ele dita preceitos comportamentais e, obviamente, também sexuais. Feminilidade é estar a serviço dos homens — emocional e sexualmente. Tentaram nos convencer de que feminilidade é sobre se sentir bem com você mesma e sobre agradar você mesma, mas esqueceram de dizer que mulheres se sentem bem consigo mesmas quando os homens as aprovam. Tentaram nos convencer de que mulheres “se arrumam” e se feminilizam não para homens, mas para “outras mulheres”, porque “homens não reparam nisso”, mas esqueceram de dizer que o objetivo final é disputar pela atenção masculina. Feminilidade é sobre homens. Feminilidade constitui o gênero feminino (e uso gênero aqui no sentido conceitual mesmo), porque se constrói em oposição à masculinidade. Ela não se volta para si mesma, mas para o outro (o macho). Uma mulher, para ser mulher de verdade, deve ser feminina; e ser feminina é servir ao macho.

A lesbianidade é a suprema negação disso. Mesmo a lésbica que não é butch e que se feminiliza — ela trai um dos preceitos básicos (senão preceito básico) da feminilidade, que é a disposição sexual aos homens. A mulher lésbica, ao negar o acesso masculino a seu corpo, nega a imposição do poder masculino justamente na esfera historicamente utilizada para criar, manter e reproduzir a dominação e a supremacia masculinas (e, consequentemente, utilizada para demarcar e institucionalizar a diferenciação sexual, criando o que atualmente denominamos gênero): a esfera sexual.

Começam a fazer sentido, então, as acusações de lesbianidade, de sapatonice de toda mulher que ocupa esferas tradicionalmente masculinas, desde a política até a do esporte. Porque uma mulher que não ocupa o lugar tradicionalmente feminino — seja da divisão sexual do trabalho, seja da heterossexualidade — quer ser homem. É um combo. Se nega sua condição de subordinação, só pode estar negando sua própria natureza feminina. Essas feministas só podem ser todas sapatão.

Ceder ao processo de feminilização é, então, um grito: eu estou aqui, mas ainda sou mulher. Eu estou aqui, mas deus me livre ser sapatão. Ou, ainda; estou aqui, sou sapatão, mas deus me livre ser feia aos olhos dos homens.

Pobres dessas mulheres. Pobres de nós, aliás, por precisarmos recorrer a isso tantas vezes para conseguirmos sobreviver.

Só, por favor, não me vendam isso como uma coisa boa. Como empoderamento. Como performance. Como caso pensado. Como escolha. Porque não é. Nunca foi.

Eu não quero um número maior de saias, saltos e batons nos lugares. Eu quero que ninguém seja obrigada a usar saias, saltos e batons pra chegar a esses lugares e pra conseguir permanecer nesses lugares. E também quero que esses “lugares” sequer existam.