Existe no feminismo uma caixa de Pandora que poucas mulheres querem abrir. Uma tensão latente que apresenta uma equação muito difícil de elucidar: a questão racial.

E antes de tudo, é preciso que eu diga que sou uma mulher branca. E como mulher branca falo aqui para outras mulheres brancas, sobre coisas de branquitude. Que é o que entendo, o que conheço, a socialização que recebi. Eu não tenho NENHUMA, absolutamente NENHUMA condição de versar, pautar, discutir, argumentar sobre questões de negritude. Eu não tenho nenhuma idéia de como é ser uma mulher negra. De como a sociedade trata uma mulher negra. E o máximo que posso alcançar é o entendimento de que minha cor de pele me traz inúmeros privilégios perante esses mulheres. Privilégios tantos que muitos nem me dou conta que são privilégios, simplesmente porque são absolutamente naturalizados para mim.

Eu não dou conta do entendimento de tudo que a branquitude me traz de benefícios. Não dou. É um reconhecimento constrangedor até, essa percepção de que o universo da negritude me é alheio a tal ponto de eu não ser capaz de perceber todas as benesses que essa situação histórica de segregação e exploração me traz.

Então voltamos ao feminismo. Esse movimento político que busca equidade entre homens e mulheres. Essa luta que reconhece que existe uma profundade desigualdade entre os sexos oriunda de um processo igualmente histórico de exploração dos nossos corpos reprodutivos. Que situa de maneira bem clara a relação entre homens e mulheres como hierárquica, como uma relação entre opressor e oprimido. E onde nós, mulheres, reconhecemos que nossa condição é a de exploradas, oprimidas. Um movimento que convoca que mulheres se unam contra a exploração do patriarcado.

Como equalizar essa pretensão união, essa conclamação pela tal sororidade diante da dualidade social da mulher branca, que ao mesmo tempo que é oprimida, também é opressora?

Porque sim, aplicando um recorte de raça, nós, mulheres brancas, oprimimos mulheres negras. E entrar em negação ou fazer malabarismos argumentativos para escapar desse fato em nada ajudar a minimizar toda a problemática dessa questão.

Querida mulher branca, o opressor não é o cara legal. Ele é o vilão dessa história. E nenhuma mulher, por socialização, quer ser esse cara. Há até um certo conforto psicológico na posição de “oprimida” dentro dessa nossa socialização enquanto mulher. E me explico: não quero dizer que alguém “goste” deste lugar, mas que somos socializadas para sermos frágeis, dóceis, cordiais, submissas. Pautadas na ética do cuidado, do sacrifício, da santidade. Temos dificuldade de assumir voz ativa, partir para embates diretos, assumir nossa raiva, nossa agressividade. É um tanto duro para muitas mulheres admitir que tem privilégios de raça e se enxergar como fazendo parte de um grupo que estruturalmente oprime outras mulheres. Mais duro ainda quando já se tem alguma aderência ao discurso feminista que prega equidade.

Temos nosso dever de casa pra fazer. Discutir nossa própria hierarquia interna, que coloca mulheres brancas ricas no topo da cadeia alimentar feminista e mulheres negras pobres eternamente na base sendo devoradas por todas. Temos que discutir nossa própria equidade, buscar redimensionar essa relação de poder que jaz subjacente entre nós mulheres. Que nunca é abertamente admitida mas sempre convenientemente utilizada.

Se nós mulheres, lutamos contra o patriarcado, o povo negro luta pelo racismo. Há uma interseção aí que pede que sentemos umas com as outra e admitamos que há um espaço de disputa entre nós. Que hoje mais nos separa que une. E feministas precisam lidar com o desconforto em admitir que SIM é um espaço de disputa. Gostamos ou não, queiramos ou não. É uma estrutura que nos precede e que infelizmente por um tempo ainda nos sucederá.

Nós não somos iguais. Nem mesmo a opressão do patriarcado nos atinge da mesma maneira. Há uma colcha de privilégios que a branquitude traz que amortece muita coisa. Pergunte a uma mulher negra sobre isso. E se você duvidar dela, o que é sintomático, consulte as estatísticas.

Como resolver isso? Não sei. Honestamente. Mas me parece mais justo e digno lidar com nossas dissensões de maneira aberta, sem o subterfúgio da tal sororidade. Praticar escuta, recuar. Sim, recuar sempre. Porque já nascemos alguns bons passos á frente. Visibilizar o discurso, as violências. Ter consciência dos privilégios. Ter o entendimento que há sim um abismo meio intransponível por ora. Um abismo que mostra sua cara cada vez em que você mesmo sem querer, mesmo sem saber, mesmo sem intencionar, resvala em ações racistas, pensamentos racistas, falas racistas. Porque é nesse caldo cultural de branquitude que fomos temperados e cozidos e só muito exercício, muita observação, muita humildade, podem ajudar a minimizar esse comportamento. Minimizar.

A guerra é longa e as batalhas são muitas. Sigamos.

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