Dia desses, eu estava folheando Os cem melhores poemas brasileiros do século, livro publicado pela editora objetiva, em 2001, sob organização e seleção de Italo Moriconi. Já não me surpreendem a invisibilização e o silenciamento de escritoras e poetas mulheres na literatura brasileira (na literatura mundial, mas aqui vou focar na brasileira), mas não pude deixar de notar que, dentre o que Italo Moriconi considerou como os 100 melhores poemas brasileiros do século XX, apenas 19 tinham sido escritos por mulheres. Escritos por homens: todos os 81 restantes. O número de autoras é ainda menor que o de poemas: 12. Autores? 47. Nenhuma mulher negra.

O livro é dividido em quatro seções: na primeira delas, temos 13 autores e apenas 1 autora; na segunda, 12 autores para 3 autoras; na terceira, 6 autores e 2 autoras; na quarta, 24 autores e 7 autoras. Alguns homens estão presentes em mais de uma seção, como Drummond, Ferreira Gullar, Jorge de Lima e Vinicius de Moraes; a única mulher a ocupar mais de uma seção é Cecília Meireles. Por fim, no que diz respeito à quantidade de poemas de cada um, os homens mais repetidos são Drummond (com 9 poemas), Manuel Bandeira (com 6), João Cabral de Melo Neto (com 5), Murilo Mendes e Vinicius de Moraes (ambos com 4). Entre as mulheres, Cecília Meireles é a única a se igualar a um homem nesse quesito, com 6 poemas publicados. As outras repetidas são Adélia Prado, Hilda Hilst e Ana Cristina Cesar, cada uma com 2 poemas publicados.

Italo, na introdução, marca inúmeras vezes sua intenção de propor um panorama da poesia brasileira do século XX, deixando claro que sua meta era a de “oferecer ao público uma amostra do melhor da poesia brasileira, por meio da escolha de cem poemas incontornáveis, definitivos, inesquecíveis, extraídos das obras escritas por um time confiável de poetas destacados, legitimados pela crítica mais antenada, inclusive a contemporânea.” Essa última parte de sua fala me ajuda a chegar onde quero: na questão do cânone literário.

Eu poderia ter usado como exemplo qualquer outro livro que propusesse panoramas como esse (inclusive, a editora objetiva publicou ainda Os cem melhores contos brasileiros do século e As cem melhores crônicas brasileiras¹) ou, ainda, qualquer evento literário com proposta parecida; a conclusão a que se chega não mudaria: existe um grupo privilegiado na literatura, cujos componentes têm sexo, cor da pele, classe social e local de residência bem específicos, e a ele deu-se o nome de cânone literário (não por acaso, evidentemente, mas justamente por serem eles detentores dessas especificidades).

Regina Dalcastagnè começou a divulgar em 2005 os primeiros resultados das pesquisas acerca disso que vêm coordenando, enquanto professora e pesquisadora da Universidade de Brasília. Desde então, já são muitos os dados disponíveis:

“A primeira etapa fez um mapeamento das personagens, das autoras e dos autores do romance brasileiro² de 1990 a 2004. Outras etapas se seguiram: fizemos também o mapeamento das personagens³ e autores do romance do período 1965 a 1979; das personagens do cinema brasileiro da retomada; e ainda um aprofundamento da compreensão da representação das mulheres nesses romances. No momento, estamos trabalhando com os romances publicados entre 2005 e 2014. Já foram lidos e catalogados 670 romances.” (Regina Dalcastagnè)

Observando o infográfico abaixo, podemos ver como o cânone literário brasileiro é restrito a homens brancos, mas as pesquisas de Dalcastagnè denunciam, ainda, que esses homens brancos se encontram localizados majoritariamente em São Paulo e no Rio de Janeiro, além de quase sempre terem algum vínculo com revistas, jornais e/ou universidades, seja enquanto colunistas, redatores, professores etc. Ou seja, já ocupam, na maioria das vezes, uma posição de prestígio.

Dados referentes às pesquisas coordenadas pela Profa. Dra. Regina Dalcastagnè (UnB)

Ok, já está claro que o cânone está configurado de forma excludente. Mas quais são os mecanismos que atuam para a manutenção dessa configuração? Voltando a Os cem melhores poemas brasileiros do século, sua terceira seção, aquela com 6 autores e 2 autoras (Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa), é intitulada O cânone brasileiro. E, tratando dela, na introdução, Italo escreve: “[…] normalmente um poema se torna canônico à medida que é consagrado como tal por sucessivas gerações de leitores. Mostrar fôlego é pré-requisito para um poeta tornar-se canônico […]”. Assim costumam homens explicar a formação do cânone: determinados poetas e escritores simplesmente se tornam consagrados, do nada, porque devem ser mesmo muito bons, e merecem essa legitimação. Eles ignoram todas as questões sociais que, em teoria, não lhe dizem respeito: ignoram quem legitima o que eles chamam de “time confiável de poetas consagrados”, ignoram que corpos estão compondo a “crítica mais antenada” e ignoram quais são os princípios, valores e ideologias que fundamentam a educação daquelas “sucessivas gerações de leitores” que vão ajudar a consagrar ou a deslegitimar um autor ou obra.

A supremacia masculina é perpetuada e mantida com a ajuda dos mais diversos aparatos sociais (já que se trata de uma sociedade patriarcal): a igreja, a família, a escola, os programas televisivos, os livros didáticos e literários, os jornais — a mídia em geral — , o Estado. Os homens, além de estarem na grande maioria dos lugares de prestígio, em que podem ser ouvidos e ter suas vozes consideradas, ponderadas e seguidas, escrevendo para grandes jornais (muitas vezes, sobre temas cuja discussão sequer lhes compete), nos cargos políticos responsáveis por moldar o cenário legislativo do país, ganhando mais que as mulheres para ocupar as mesmas profissões e, portanto, detendo maior parcela do poder aquisitivo populacional, se beneficiam de um machismo que tem caráter estrutural, podendo, portanto, ser reproduzido também por mulheres.

Acho sempre muito pertinente o que Simone de Beauvoir, em seu O segundo sexo (1949), disse sobre isso:

A representação do mundo, como o próprio mundo, é operação dos homens; eles o descrevem do ponto de vista que lhes é peculiar e que confundem com a verdade absoluta. […] tudo contribui para confirmar essa hierarquia [dos homens sobre as mulheres] […]. [A] cultura histórica, literária, as canções, as lendas com que a embalam [a criança de sexo feminino] são uma exaltação do homem. São os homens que fizeram a Grécia, o Império Romano, a França e todas as nações, que descobriram a Terra e inventaram os instrumentos que permitem explorá-la, que a governaram, que a povoaram de estátuas, de quadros e livros. A literatura infantil, a mitologia, contos, narrativas, refletem os mitos criados pelo orgulho e os desejos dos homens: é através de olhos masculinos que a menina explora o mundo […]” – (primeiro e segundo volumes)

Isso termina embasando a segunda questão que justifica o ocultamento das mulheres, sobretudo das mulheres negras, na literatura: a dificuldade de acesso à educação. Para além do fato de a literatura ser uma arte bastante elitista, tendo em vista a necessidade do domínio da escrita (não falo aqui de escrever de acordo com a norma-padrão, mas de poder escrever palavras além do próprio nome), sabemos que havia deliberadamente uma exclusão das mulheres do universo das letras e das artes no mundo. Virginia Woolf, em Um teto todo seu (1929), traz um exemplo hipotético muito bom:

“Teria sido impossível, absoluta e inteiramente, para qualquer mulher ter escrito as peças de Shakespeare na época de Shakespeare. Deixe-me imaginar […] o que teria acontecido se Shakespeare tivesse tido uma irmã incrivelmente talentosa […]. O próprio Shakespeare frequentou, é provável — sua mãe era uma herdeira — , a escola, onde aprendeu latim […] e os elementos da gramática lógica. […] Ele tinha, ao que parece, um pendor para o teatro; começou cuidando dos cavalos na entrada do palco. Logo passou a trabalhar no teatro, tornando-se um ator de sucesso, e a viver no centro do universo, encontrando todo mundo, conhecendo todo mundo, praticando sua arte nos cartazes, exercitando suas habilidades nas ruas, ganhando até mesmo acesso ao palácio da rainha. Enquanto isso, sua talentosa e extraordinária irmã, é de se supor, ficava em casa. Ela era tão aventureira, tão imaginativa, tão impaciente para conhecer o mundo quanto ele. Mas ela não frequentou a escola. Não teve a oportunidade de aprender gramática e lógica, que dirá de ler Horácio e Virgílio. Apanhava um livro de vez em quando, talvez um dos de seu irmão, e lia algumas páginas. Mas logo seus pais surgiam e ordenavam que fosse coser as meias ou cozer o guisado e não mexesse em livros e papéis.

Dizem que Shakespeare nasceu por volta de 1564. Suponhamos que tenha começado a trabalhar cuidando dos cavalos aos 15 anos, 1579. A essa época, no Brasil, mulheres negras estavam sendo escravizadas. Não apenas durante a escravização, mas em momento algum de sua história mulheres negras em nosso país viveram essa realidade — de simplesmente ficar em casa cozinhando ou costurando; no entanto, uma coisa é certa: elas igualmente se encontravam impossibilitadas de “mexer em livros e papéis”. Somente em meados do século XIX, mulheres puderam, no Brasil, ter direito à educação. Educação essa que em nada se comparava à educação masculina, já que as meninas não tinham acesso à grade de matérias completa (geometria, por exemplo, estava fora, por ser considerada muito racional para mulheres) e eram obrigadas a aprender as “artes do lar” (leia-se “como ter sua força de trabalho diariamente explorada para que seu marido possa ser bem-sucedido na vida”).

E, por falar em exploração da força de trabalho, não se pode deixar de reconhecer a dupla jornada de trabalho como outro grande entrave à consolidação das mulheres na literatura. Escrever demanda tempo; e tempo livre é algo que, até muito pouco tempo, era um privilégio exclusivamente masculino. Enquanto os homens tinham sua força de trabalho explorada pelo sistema capitalista, trabalhando, assim, muitas horas por dia em troca de um salário provavelmente miserável, as mulheres, além de se encontrarem na mesma situação, tinham sua força de trabalho explorada também em casa, antes e depois do trabalho formal, só que não recebiam nada por isso. Todos os afazeres domésticos, incluindo o cuidado com as crianças e os doentes, ficavam a cargo delas. Falo no passado, mas essa situação de forma alguma se encontra extinta, embora esteja hoje em outro patamar. E é fácil perceber isso, caso você ainda tenha dúvidas. Basta se perguntar quem se ocupa mais das questões domésticas na sua casa — você ou seu irmão? E na casa da sua amiga? Do seu amigo? Quando sua irmãzinha chora, chamam você ou seu irmão? E na véspera de natal, seu irmão e seu pai cozinham, organizam a casa, lavam a louça, como você e sua mãe?

Gráfico elaborado por Melina Bassoli — Dados de 2014 (Brasil)

Bem, ainda assim, muitas mulheres desafiaram essa lógica com sucesso. É o caso de Carolina Maria de Jesus, mulher negra, mãe solo de três filhos e que nem sempre tinha o que comer, mas que escrevia diariamente, o que resultou em vários livros publicados (outros tantos, postumamente) e muito material não publicado — incluindo, possivelmente, dois romances. Como sempre digo, mesmo silenciadas durante séculos e mesmo invisibilizadas por aqueles que agora nos veem, mas se negam a nos enxergar, aqui estamos: produzindo, escrevendo, resistindo, lutando. Eu precisaria de muito mais do que duas mãos para contar quantas escritoras estão hoje, no Brasil, produzindo uma literatura assombrosamente brava. De que eu saiba. E é só o começo.


¹ Os cem melhores contos brasileiros do século (2000) também é selecionado e organizado por Italo Moriconi; já As cem melhores crônicas brasileiras (2007) conta com seleção e organização de Joaquim Ferreira dos Santos. No primeiro, são 23 contos escritos por mulheres contra 77 escritos por homens; no segundo, 20 crônicas de autoras e 80 crônicas de autores, sendo em ambos determinadas autoras publicadas mais de uma vez, o que configura um número ainda menor de autoras do que de textos delas.
² O grupo de pesquisadores trabalha apenas com livros publicados por grandes editoras, porque é isso, afinal, que legitima os autores daquelas obras enquanto “escritores” ou “pertencentes ao cânone”.
³ Me foquei aqui apenas na questão da autoria, sem levar em conta os personagens ou a representação das mulheres na literatura.