Ideias têm consequências no mundo real. O que eu quero fazer hoje é comparar as ideias presentes no feminismo radical com aquelas no pós-modernismo, especialmente as relativas a dois conceitos: identificação de classe e o princípio da diferença. Eu ilustrarei como essas duas noções foram desenvolvidas no caso da Equal Employment Opportunity Commission v. Sears Roebuck (1973–1988).

A questão central para feministas sempre foi: como a opressão de mulheres funciona? De onde ela vem e como ela é mantida? Nós não podemos desmantelar estruturas que não compreendemos. Mudanças efetivas dependem primeiro de nossa análise do problema.

O período ao qual essa conferência se dedica (o fim dos anos 60 e o início dos anos 70) foi aquele em que o árduo trabalho teórico, que nunca havia sido feito antes, foi começado. Esse trabalho nunca foi terminado.

Quando embarcamos nesse projeto no início de 1968, nós enfrentávamos dois obstáculos aparentemente arrebatadores: mulheres sempre têm sido oprimidas ao longo da história e por todo o mundo. Parece “natural”. Como algo tão universal poderia ser explicado como uma injustiça?

Feminismo radical

O feminismo radical emerge no início de 1968 como uma resposta a compreensões mais profundas da opressão das mulheres. Falar de “opressão” em vez de “discriminação” é uma mudança significativa em termos de escopo e profundidade. Precisávamos de uma análise mais abrangente da opressão das mulheres do que o modelo de direitos civis.

“O Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir — sua explicação estruturalista — nos deu um ponto de partida. Beauvoir compreende a opressão das mulheres ao analisar as instituições particulares que definem as vidas das mulheres: o casamento, a família, a maternidade, etc. O direito de família abrange diversas instituições, mas algumas de nós determinaram que o ponto crítico de entrada para mulheres é o casamento: isso envolve um contrato legal governado pelo Estado. A “família” não tem um contrato separado, apesar de a reprodução naturalmente derivar do contrato de casamento sob seu sub-construto de direitos conjugais.

Eu alarguei a discussão de Beauvoir para responder à questão de por que, se mulheres não eram naturalmente inferiores, nossa opressão continuara fundamentalmente não modificada. A análise institucional tradicional explica a mecânica da opressão das mulheres, mas não a dinâmica (o que a manteve de pé). Uma vez que as mulheres são metade da população, essa dinâmica tinha de parecer intrínseca à identidade das mulheres e, portanto, ser abraçada, e não resistida, pelas mulheres. O candidato óbvio para isso era o “amor”. E, para homens, uma obsessão por sexo e conquista.

No fim de 1968, eu publiquei um artigo sobre “The institution of sexual intercourse” [“A instituição do intercurso”, tradução de guerrilha]. Isso foi uma tentativa de desafiar a necessidade da heterossexualidade, e, por implicação, as instituições que são baseadas nessa presunção.

Então o “feminismo radical” era/é uma tendência para compreender a opressão das mulheres no nível mais profundo possível. O objetivo dessa análise é determinar com precisão os pontos cruciais em que mulheres podem atacar o complexo de nossa opressão como um todo.

Instituições são, por definição, artificiais, mas não são menos poderosas por isso. A noção de uma “classe” é artificial em qualquer sentido “natural” uma vez que é uma construção com o objetivo de desempenhar certo trabalho. Para os grupos oprimidos, a consciência de “classe” é essencial para resistência. São as semelhanças entre indivíduos anteriormente diferenciados que formam a base para solidariedade de mudança política. Pessoa oprimidas, sozinhas, são relativamente impotentes; juntas, é outra história.

A única presunção que ninguém questionou é que mulheres formavam uma classe e que essa classe era uma classe artificial e desenhada por propósitos políticos para oprimir mulheres. Nós nomeamos essa classe artificial como “gênero”. Nosso mantra era o ditado de Beauvoir: “Não se nasce mulher, torna-se”.

Essa presunção central de que mulheres formam uma classe política e são a metade de baixo de um sistema de classes sexuais nunca obstou a possibilidade de outros sistemas de classe, igualmente artificiais: sistemas baseados em raça, ou economia, etc. Nós geralmente concordávamos que o sistema de classes sexuais foi o primeiro sistema de classes e que os outros sistemas de classes foram gerados a partir dessa bifurcação inicial da espécie humana. Cada sistema foi construído sobre o outro anterior até que terminamos com uma estrutura social piramidal definida pela privação da humanidade de um grupo após o outro.

O caso Sears

O caso Sears começou em 1973, quando a Equal Employment Opportunity Commission [Comissão para Oportunidades Igualitárias de Empregabilidade] entrou com denúncias de discriminação sexual contra a Sears, Roebuck & Company. Sears era a maior varejista de mercadoria geral à época nos Estados Unidos. Esse caso não teve julgamento até 1988, quando a Sétima Turma decidiu contra as mulheres e a favor da Sears.

Quais eram os contextos políticos, legais e históricos nos quais o caso da Sears surgiu? O Título VII do Decreto de Direitos Civis de 1964 era a base legislativa na qual as mulheres tinham de se sustentar. E mulheres haviam ganhado diversos casos relacionados ao Título VII no início dos anos 70: AT&T, Colgate-Palmolive, as Stewardesses. Em 1973, Roe v. Wade veio. Entretanto, se uma mulher não consegue se sustentar a si mesma financeiramente de forma independente, ela tem algumas outras poucas opções, incluindo direitos reprodutivos.

Os casos que haviam sido trazidos inicialmente no fim dos anos 60 todos tinham sido trazidos por algumas corajosas reclamantes e sempre se seguiram sérias retaliações a essas mulheres. O caso da Sears abriu novos caminhos porque as estatísticas cruas relativamente aos padrões de prática de discriminação sexual eram arrebatadoras. Reclamantes individuais não tiveram de ser oferecidas como sacrifício.

Os números falavam por eles mesmos: 5 regiões geográficas; 920 lojas; 380,000 funcionários. Sears era a maior empregadora de mulheres no país e a maioria de suas vendedoras era mulheres. Entretanto, apesar de mais de 60% das candidatas ao cargo de venda em tempo integral serem mulheres, em 1973, apenas 1,7% das pessoas contratadas para o cargo de vendas em tempo integral, remunerada com base em comissão, eram mulheres. O resultado era que homens ganhavam três vezes mais do que mulheres na Sears.

A importante distinção aqui é entre empregos de venda não-comissionadas e empregos de vendas comissionadas. Os empregos de vendas não comissionadas são para itens de valor baixo; esses empregos são pagos pela hora trabalhada. Os empregos de venda comissionada são para itens de valor alto e recebem um salário-base mais entre 6 e 9% das vendas feitas sobre os objetivos determinados pela empresa. As mulheres eram empurradas para os empregos de vendas que não recebiam comissão.

O caso da Sears foi o caso mais massivo de discriminação sexual já trazido — até então e desde então. E nós o perdemos. Nós o perdemos porque o clima político no qual ele trabalhou seu caminho cortes acima havia mudado, e não para melhor. No coração, estava a questão: mulheres de fato constituem uma classe política? O caso era sobre isso: dinheiro e um jogo justo; o mesmo direito de uma mulher a ganhar seu sustento nas mesmas bases que um homem.

O que o caso gradualmente evoluiu para se tornar — guiado pela defesa da Sears, com alguma ajuda de uma historiadora pós-moderna de Estudos das Mulheres — não foi um caso de direitos humanos sobre tratamento igualitário. Em vez disso, o caso foi perdido porque homens e mulheres eram “diferentes”.

É claro, cada indivíduo é diferente em vários sentidos de outro indivíduo. Entretanto, a questão em um caso de discriminação de emprego gira em torno de “diferenças” relacionadas a “qualificações ocupacionais de boa-fé” [ver nota 1]. Como tais “diferenças” são relevantes para a venda de produtos da Sears? ESSA é a questão.

A decisão judicial da Sétima Turma citou duas justificativas principais para a discrepância entre homens e mulheres na Sears: (1) mulheres não demonstravam “interesse” em vendas comissionadas; e (2) mulheres tinham aversão a riscos. A questão do “interesse” tinha a ver com os produtos sendo vendidos. Considerando que que o grosso dos itens de alto valor da Sears são utensílios domésticos, como geladeiras, fogões, máquinas de lavar roupa, secadoras, máquinas de lavar louça, e assim por diante, parece estranho afirmar que falta às mulheres expertise com tais produtos ou interesse em vendê-los. E o que significa ter aversão a “riscos”? Talvez pular de pára-quedas estivesse envolvido? Não, a referência a risco envolvia o fato de que os empregos de vendas comissionadas não possuíam remuneração fixa. Entretanto, uma vez que a compensação — mesmo no salário de base — era tão superior àquela para vendas não-comissionadas, onde estava o risco? Entre “mais” e MUITO “mais”? Então, as “razões” dadas não foram muito persuasivas, para dizer o mínimo.

Para além disso, o caso da EEOC foi criticado pela falta de reclamantes individuais: sem sangue na água. Mas o objetivo da imensidão do caso da Sears era que a discriminação era tão descaradamente óbvia: alguém teria de alegar que as mulheres GOSTAVAM de ser tapeadas em sua remuneração, diferentemente de homens. Se mulheres são seres humanos, é seguro presumir que elas não gostam de ser estupradas. Bom, a não ser que sua proposta é que mulheres são só “diferentes” nesse sentido.

Isso é basicamente o que Rosalind Rosenberg, a professora de História das Mulheres, alegou como testemunha para a Sears: sempre foi assim para as mulheres; logo, mulheres devem possuir valores diferentes — valores “superiores” — do que homens quando se trata de compensação monetária por seu trabalho.

A professora Rosenberg sem dúvidas deve estar se referindo ao Manual de Empregados da Sears para sua evidência em apoio de sua posição: “Empregados homens podem receber uma folga remunerada de um dia quando sua esposa der à luz; entretanto, empregadas mulheres não recebem folga remunerada de um dia quando ELA dá à luz”. Alguém consegue imaginar exemplo melhor de “trabalho não remunerado”?

Pós-modernismo

O caso da Sears é uma caricatura tão absurda que temos de nos perguntar como isso pôde acontecer e por que o Movimento de Mulheres não foi mais claro sobre a importância desse caso. O artigo pioneiro a ser lido para os fundamentos teóricos deste período no que diz respeito às mulheres, usando o caso Sears como ilustração, é “Deconstructing equality-versus-difference: Or, the uses of poststructuralist theory for feminism” [em português, “Igualdade versus diferença: os usos da teoria pós-estruturalista”], de Joan Scott (1988 [2000]).

Em 1975, Simone de Beauvoir me alertou em Paris: “fique de olho nos diferencialistas antifeministas”. Eu finalmente compreendi, no fim dos anos 80, do que Beauvoir estava falando. O pós-modernismo é uma teoria política profundamente reacionária. O pós-modernismo finge focar em palavras, em palavras SOBRE palavras (que ele chama de “discurso”). O pós-modernismo finge analisar o discurso por meio de algo chamado “desconstrução”, mas, em vez disso, as palavras são usadas para mistificar e confundir, e, finalmente, para impedir quaisquer passos adiante — especialmente em relação a se pensar o mundo. Palavras não são fatos. São fatos que negam às mulheres nossa humanidade. São fatos o que precisamos mudar.

Mulheres são uma classe política. A primeira. Ela produziu o paradigma para os outros sistemas de classe, uma bifurcação sequencial da espécie humana. Uma bifurcação que é repetida, uma sobre a outra, até que cada indivíduo esteja oposto ao outro.

O que torna uma categoria política uma classe são semelhanças. No caso de uma classe oprimida, essas queixas são observadas e compartilhadas. Somente conforme essa classe se mobiliza em torno dessas queixas e forma grupos políticos é que mudanças sociais significativas podem ser alcançadas.

São as diferenças entre nós que nos mantêm isoladas, ineficazes — e em desespero. Mas diferenças não são em torno do que nos organizamos. O fato de que o pós-modernismo enfatiza a “diferença” denuncia seu jogo político. A diferença nos mantém separadas, não unidas.

Pós-modernos alegam que são “pós”-estruturalistas. Mas o que isso significa? Significa que rejeitam qualquer tentativa de compreender como as coisas funcionam: de onde as condições vêm e como elas se mantêm. Significa, em termos práticos e políticos, colocar a mudança além de nosso alcance. Significa pensar em círculos de forma que, no fim, chegamos de novo no começo, mas dessa vez estamos tão desgastadas por tentar desemaranhar o lero-lero pós-moderno que nos falta a força e o moral para começar de novo.

Considerando a importância que pós-modernos dão à linguagem, eles são incrivelmente desleixados em seu uso. Termos críticos como “binário” e “essencialismo” não têm um significado fixo, e funcionam simplesmente como pejorativos.

Quanto à pose filosófica pretensiosa de iniciar suas alegações com palavras como “metafísico” e “epistemológico”, “meta-epistemológico” e “teoria crítica”, estas não têm nenhum propósito além de intimidar a pessoa que lê. Nenhum dos significados ordinários associados a esses termos se aplicam. Então por que os usar?

As palavras não estão sendo usadas para informar ou para esclarecer. Nem para construir um pensamento após o outro até que uma explicação surja. As palavras são jogadas para impressionar ou para enganar. É impossível dizer o que pós-modernos querem dizer porque eles usam as mesmas palavras para dizer coisas diferentes em momentos diferentes. Com toda a ênfase na importância da linguagem, o pós-modernismo joga fora a linguagem como uma ferramenta ou de compreensão ou de comunicação. No máximo, a linguagem se torna um fim nela mesma.

Conclusão

As mulheres compõem 50% da população. Não há nenhum sistema já existente, em nível nenhum — econômico ou social — que pode ser torcido para acomodar tais números.

Eis nossas opções: (1) podemos limitar nossos objetivos para fazer ALGUMAS mulheres avançarem em quaisquer sistemas existentes nos quais acontecer de nos encontrarmos; ou (2) nós devemos compreender e nos preparar para não só virar o mundo de cabeça pra baixo mas — mais importantemente — do avesso. Todas as relações sociais são, no limite, políticas. Elas PODEM ser mudadas. Mas será muito mais difícil do que o Movimento de Mulheres de QUALQUER “onda” já indicou compreender.

Nenhum ganho é eterno. O progresso deve ser feito nas bases mais radicais possíveis e, então, constantemente protegido. Se você precisa de um lembrete, leve em consideração o direito ao aborto.

Precisamos proteger nossa identidade coletiva como mulheres. Também precisamos trabalhar com outros grupos oprimidos. Uma vez que cada grupo oprimido vivencia sua opressão de formas diferentes, devemos evitar a armadilha das olimpíadas de opressão ao identificarmos objetivos comuns de que todas e todos precisamos. Podemos começar com a Declaração de Direitos Humanos das Nações Unidas. Mas substitua “cada indivíduo” por “cada família”. Os direitos individuais das mulheres não deveriam ser condicionados à sua existência dentro de uma estrutura familiar.

O objetivo comum mais óbvio para todos os indivíduos é a distribuição igualitária de bens materiais, sem menção a mérito.


nota 1: bona fide occupational qualifications são casos em que é permitido aos empregadores levar em consideração características pessoais da pessoa candidata ou da pessoa empregada para contratar, reter, ou demiti-la — características que, em outros contextos, constituiriam razão para discriminação. Por exemplo: uma escola ou faculdade religiosa pode, legalmente, barrar uma pessoa de outra religião de ser contratada ou de compor sua diretoria.


Tradução da palestra The Descent from Radical Feminism to Postmodernism, de Ti-Grace Atkinson, apresentada no painel How to Defang a Movement: Replacing the Political with the Personal” [“Como tornar um movimento inofensivo: substituindo o político pelo pessoal”], na conferência A Revolutionary Moment: Women’s Liberation in the Late 1960s and the Early 1970s [“Um momento revolucionário: libertação das mulheres no fim dos anos 60 e início dos 70”], organizada pelo programa de estudos em Mulheres, Gênero e Sexualidade da Universidade de Boston, de 27 a 29 de Março, 2014.