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O peso do silêncio

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feminismo e racismo
feminismo e racismo

Nem sempre esse medo de falar, de se expressar, tem a ver com a timidez.

“Fomos educadas para respeitar mais ao medo do que a nossa necessidade de linguagem e definição, mas se esperamos em silêncio que chegue a coragem, o peso do silêncio vai nos afogar.” Audre Lorde [1]

Sempre acreditei ser uma pessoa extrovertida, com amigos diversos e até engraçada. Então, porque quando quero expor o que penso, ou o que sei e principalmente diante de pessoas que não conheço, não consigo falar? Tremo, esqueço palavras, não posso sequer ler o que escrevi minutos atrás no papel diante de mim. O que acontece comigo?


Logo no início da faculdade de Psicologia aprendemos sobre a importância da fala. Freud, através de seus estudos revolucionários, nos mostra que podemos curar feridas profundas falando sobre nossas dores, sobre as coisas que não são ditas nem quando estamos sozinhos ou em pensamentos.

Eu fiquei completamente encantada com esses estudos e descobertas, passando 5 anos da minha vida buscando compreender as raízes profundas dos traumas, dos bloqueios que nos impedem de falar sobre experiências dolorosas. Mas ao mesmo tempo e de uma forma cruel, que me fazia acreditar que estava isenta desse processo psíquico, me descolava do meu verdadeiro eu e não tinha a menor ideia que sofria com esse silenciamento. Sim! Silenciamento e não silêncio, eu temia falar por uma construção dolorosa, social, racial e de gênero e não porque simplesmente preferia me calar, não era um processo consciente ou uma escolha, ao longo dos anos fui sendo amordaçada e me calando a força. Nesse ponto entendi o quanto sou vulnerável e que estudar as “mentes humanas”, não me protegeria de nada.

Vejo esse processo se repetir com diversas pessoas ao meu redor, mas a maioria massacrante destas pessoas são mulheres negras, de origem pobre. Percebam, não que outras pessoas de diferentes contextos também não passem por esse “medo de se expressar”, o que ressalto é que o contexto social em que vivemos influencia no nosso “conforto” nos espaços e na probabilidade de pegar um microfone numa palestra, apresentar um trabalho na frente da sala num seminário, ou mesmo falar o que pensa numa reunião.

Da mesma forma concordo que, se estamos diante dos “nossos”, das pessoas que são acostumadas conosco, como família e amigos, essa pressão diminiu… É como se não houvessem julgamentos sobre você, como se não houvesse tanta preocupação, esse medo de errar.

(Arte por Cherie disponível no Instagram)

Na verdade, quando afirmo que mulheres negras e pobres repetem essa mesma angustia de forma mais recorrente, eu digo que as muitas opressões como racismo, machismo e a desigualdade social, colocam barreiras na hora de nos expressarmos. Faltam estímulos para que possamos dizer o que pensamos e queremos, mas não é só isso! Desde bem pequenas, somos ensinadas a aceitar caladas situações dolorosas por não ter o que fazer, somos incentivadas a acatar o que os homens dizem, somos forçadas a agradar e não discutir, e as consequências desse acúmulo de opressões travam, sufocam nossa garganta, não nos deixam confortáveis para dizer o que sentimos.

Ao observarmos os efeitos nocivos do racismo nesse processo, fica ainda mais evidente notar que a causa desse “silêncio”, tem raízes muito profundas. Para tal, evoco uma entrevista incrível da artista portuguesa Grada Kilomba para a Carta Capital. Ela nos lembra do processo de desumanização do racismo, que nos força a necessidade de superação, ao mesmo tempo em que quer nos mostrar que não somos capazes:

“O racismo nos coloca fora da condição humana e isso é muito violento. E muitas vezes nós achamos que alcançar essa humanidade se dá através da idealização. Se o racismo diz que eu não sei, eu vou dizer que sei ainda mais. E pra mim é muito importante desmistificar isso. Eu quero ser eu, não quero ser idealizada e nem inferiorizada. E eu, assim como todas as pessoas, quero dizer que há dias em que sei, e dias em que não sei.” [2]

Adiante na entrevista, Grada ressalta que esse processo desumanizador do racismo constrói nossas diferenças e a partir dessas diferenças, impostas goela abaixo, somos entendidos nessa sociedade.

“Eu não sou discriminada porque eu sou diferente, eu me torno diferente através da discriminação. É no momento da discriminação que eu sou apontada como diferente.” [2]

Ou seja, eu não sou tão tímida ou calada, gosto de me comunicar, quero dizer sobre o que sei! Mas ver uma mulher negra num espaço de destaque e expressão, também é uma AFROnta, as pessoas esperam que eu derrape, aguardam o momento fatal de uma brecha ou erro, para apontar e rir, coisas que não aconteceriam numa fala de um homem branco, grisalho de terno chique. De certa forma, eu enquanto mulher negra, posso ser um corpo que trabalha pesado na limpeza, um corpo que dança numa apresentação musical, mas a sociedade não espera que eu esteja numa palestra denunciando opressões e exigindo reconhecimento de privilégios. Esses fatores contribuem muito para que sejamos silenciadas e esse ciclo se repita.

O medo se apresenta diretamente antes que eu tenha forças para pensar e falar. Por muitas vezes, domino assuntos de forma rápida e até brilhante, mas numa discussão (que eu também entendo como uma disputa de poder), eu recuo, sou contemplada por outras falas e acabo deixando o meu ponto de vista de lado, pela soma das opressões, por um medo inexplicável.


Audre Lorde, poetisa, escritora, mulher negra e lésbica, expressou brilhantemente sobre o doloroso processo de conseguir falar no seu texto “A transformação do silêncio em linguagem e ação” e no trecho abaixo, como num soco, ela acerta no estômago e nos faz refletir muito:

“O que me dava tanto medo? Questionar e dizer o que pensava podia provocar dor, ou a morte. Mas, todas sofremos de tantas maneiras todo o tempo, sem que por isso a dor diminua ou desapareça. A morte não é mais do que o silêncio final. E pode chegar rapidamente, agora mesmo, mesmo antes de que eu tenha dito o que precisava dizer.”[1]

Precisei me formar, refletir, ler e passar por algumas muitas experiências para entender sobre esse processo, mas ainda sou constantemente afetada pelo medo de falar. Quem me conhece atualmente, duvida que eu sofra desse mal, mas a verdade é que aprendi mais sobre mim e com esse aprendizado, incorporei formas de me sentir mais segura, de diminuir o medo e de me expressar em público, diante do que realmente sou, sem fingir! Nunca serei uma oradora incrível, nata, mas valorizo minhas experiências e a mulher que sou, antes de deixar que o medo me cale e tire oportunidades.

Outra parte importante para vencer esse medo, foi pensar nas outras muitas mulheres que continuam sendo silenciadas e não tem as mesmas oportunidades que eu tenho. Pensar em me posicionar e falar sobre o que sinto, também apoia outras pessoas e me encoraja.

São muitos os fatores que podem e devem ser adicionados nesse grande caldeirão, para compreender porquê, para alguns de nós, é tão difícil se expressar. Mas com esse texto eu espero ajudar e desejo sinceramente que a cada dia possamos vencer o medo e fazer com que o peso do silêncio não nos afogue mais.


Tamillys Lirio, 27 anos, mulher negra de periferia e psicóloga.


[1]*Comunicação de Audre Lorde no painel “Lésbicas e literatura” da Associação de Línguas Modernas em 1977 e publicado em vários livros da autora – A transformação do silêncio em linguagem e ação, tradução disponível em:

https://www.geledes.org.br/a-transformacao-do-silencio-em-linguagem-e-acao/amp/

[2] Entrevista Grada Kilomba para Carta Capital, disponível em:

https://www.cartacapital.com.br/politica/201co-racismo-e-uma-problematica-branca201d-uma-conversa-com-grada-kilomba