Primeiras feministas brasileiras e o seu legado
Primeiras feministas brasileiras e o seu legado

Quando se fala da história do feminismo em geral, muitos apontam seu surgimento nas primeiras organizações de mulheres que surgiram no Ocidente para lutar por direitos civis, como o direito a voto das mulheres, num movimento conhecido como Primeira Onda Feminista. No Brasil, esse movimento começou a se delinear já no início do Brasil Império. Em 1832, Nísia Floresta lançaria o livro “Direitos das mulheres e injustiça dos homens”, que é considerado a primeira obra feminista brasileira.

Nísia despontou, no século 19, lutando pelos direitos das mulheres como uma tentativa de resistência ao processo colonialista deflagrado pela chegada dos portugueses. De acordo com a historiadora Mary Del Priore, de fato, do Descobrimento, em 1500, até meados do século 17, poucos europeus que viviam no Brasil haviam se adaptado à “cultura local”. Ao que parece, até 1650, a população brasileira — constituída de indígenas, brancos europeus e negros — vivia sem casamento obrigatório e o tabu da virgindade antes do casamento. E tudo isso foi instituído após essa época, aprisionando as mulheres brancas no lar ou na prostituição, e as mulheres pretas e indígenas na escravidão.

No entanto, mesmo no Brasil Colonial (1500–1822) haveriam mulheres dispostas a lutar pelos direitos da mulher? Segundo a freira e escritora Maria Valéria Rezende, sim.

Em 1982, ela encontrou um processo incompleto no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa que continha três cartas datadas de 1754. Esse processo serviu de tema para o seu livro “Carta à Rainha Louca”, lançado em 2019. Um padre acusava uma mulher, Maria Isabel (ou Isabel Maria) de criar um convento clandestino em Minas Gerais, onde todas as ordens religiosas eram proibidas de entrar. A outra carta, de outro padre, era um pouco mais benevolente.

A terceira carta era redigida pela própria acusada. Nela, Maria Isabel dizia, com doses de ironia, que sua carta-defesa nem seria lida, mas escrevia assim mesmo porque tinha a obrigação de fazê-lo para se defender, segundo a lei portuguesa. Além disso, Maria se defendia das acusações dirigidas a sua pessoa: ela recebia mulheres brancas pobres em sua casa que eram descartadas na sociedade colonial.

Na pesquisa de Valéria Rezende sobre o período das cartas, ela descobriu a realidade das mulheres da época: as famílias brancas mantinham pelo menos uma filha para casar com o filho de um senhor de engenho. As outras filhas eram mandadas para conventos por não possuírem dote para casar, e ao virarem freiras, deixavam de herdar terras. As mulheres de famílias mais pobres — filhas de capatazes, pequenos comerciantes — acabavam nas “casas de recolhimento”, que eram uma espécie de prisão para essas mulheres “desgarradas” (a quem Valéria Rezende cunhou de “sobrantes”), ou na prostituição, porque eram brancas e não “poderiam” virar escravas.

A história de Maria Isabel parece fascinante. Essa mulher, que escreveu uma carta de autodefesa em 1754, devia ser de uma família um pouco mais abastada, já que ela revelaria em seu relato, de acordo com a autora de “Carta à Rainha Louca”, que herdara uma propriedade de seus pais, e também pelo fato de que muito poucas mulheres pobres seriam capazes de escrever naquela época. Mesmo as pouquíssimas mulheres pobres que saberiam escrever teriam dificuldade de adquirir papel e caneta — fato que Valéria Rezende ressalta na obra, na fala da personagem principal, Isabel Maria das Virgens.

Outro fato interessante é que a carta que a escritora Valéria Rezende encontrou no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa vem assinada por Maria Isabel. Sem sobrenome mesmo. O fato é que, pelo menos até o começo do século 20, em Portugal, as meninas ainda não recebiam sobrenome. Elas só receberiam um sobrenome do marido, ao casar. Até o começo do século passado, na maior parte do mundo, as mulheres sequer eram consideradas seres humanos pela lei. Na prática, isso as proibia de possuir propriedades, dirigir negócios, manter a guarda dos filhos caso se divorciassem e, claro, votar.

Por isso, o ponto mais importante acerca das mulheres feministas do século 19 no Brasil é que elas lutaram, principalmente, pela educação formal das mulheres.

De fato, a partir de 1822, com a independência do Brasil, veio o reconhecimento do direito das mulheres à educação formal. Esse foi um dos primeiros passos para que as brasileiras pudessem criar um movimento organizado pelos seus direitos. Além dos livros que escreveu, Nísia percorreu o Brasil defendendo a alfabetização das mulheres.

Ainda no século 19, havia Narcisa Amália de Campos, autora de “Nebulosas”, que é considerada a primeira jornalista profissional do Brasil. Ela fundou, em 1884, o jornal “Gazetinha”, onde tratava de questões sociais enfrentadas pelas mulheres.

Leolinda Daltro, nascida em 1859, foi uma professora que também lutou pela educação das mulheres e fundou, em 1910, o Partido Republicano Feminino.

Em comum, as precursoras da luta feminista organizada no Brasil lutavam também pela abolição das escravatura e pela causa indígena, além do sufrágio feminino. O seu trabalho inestimável, sem dúvida, lançou a base do movimento feminista brasileiro.


Ilustração de Thainá Rodrigues

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