Falar simultaneamente sobre Psicologia, saúde mental e feminismo é um desafio gigantesco, porque cada um desses campos possui uma complexidade ímpar. Para começarmos a pensar sobre o porquê devemos falar especificamente sobre a saúde mental de mulheres, faço uma pergunta: você de fato sabe o que é saúde mental, ou este é um conceito abstrato que você ouviu em repetições por aí?

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define saúde mental como “o estado completo de bem-estar físico, mental e social”. Como podemos pensar que um ser humano atinja a completude desse estado? Você conhece uma única pessoa que usufrua da integridade do bem-estar? Acima disso, você acredita ser possível que uma mulher — da forma como ela foi socializada para ser — poderia atingir esse patamar?

Como falar de saúde mental para mulheres, que são socializadas para odiarem seus corpos, viverem às sombras da culpa e serem colocadas à margem da sociedade? A feminilidade é, por si só, adoecedora. Somos criadas para obedecermos, nos calarmos e abaixarmos a cabeça. São introjetados em nosso psiquismo ideais irreais, referentes à nossa aparência e aos nossos comportamentos, que nos adoecem justamente por não termos como cumpri-los. Definitivamente, ser mulher em uma sociedade misógina e patriarcal não combina com um bem-estar integral. Compreendendo isto, passamos a entender quão importante é falarmos sobre a saúde mental de mulheres. Afinal, nem tudo é exclusivamente patológico. Existe uma cultura que antecede o adoecimento; aqui, em específico, falamos da forma como mulheres são socializadas e as sequelas que essa socialização deixa em cada uma de nós. Dentro do campo da Psicologia — e das demais áreas da saúde mental — , precisamos reconhecer que não se resolve um quadro de adoecimento psíquico quando não se considera o contexto. Se não admitirmos que existem adversidades no “ser mulher” perante à sociedade e que isso nos torna mais propensas a adoecer, o problema continuará ali: não só na mulher individualmente, mas no campo social como um todo.

SOCIALIZAÇÃO

Parafraseando o texto “Sequelas da socialização”, de Cila Santos: “Nenhuma mulher tem o direito de sentir-se boa o suficiente por si mesma. In natura. A mulher boa é a mulher transformada. Depilada, emagrecida, maquiada, montada. Toda menina cresce sabendo que não será aceita como ela é, que terá que passar a vida buscando atingir um ideal, um padrão inalcançável, que vai minar sua saúde financeira e plantar para sempre no seu coração a sensação de nunca é boa o bastante. A insegurança como mola-mestra de todos os males. Que abre porta para disforias, para transtornos alimentares.”

Nós, mulheres, ainda que tenhamos nossas particularidades enquanto sujeitos, temos muito em comum pelo que somos; por como nascemos. Tendo nascido fêmeas, somos desde bebês ensinadas a nos podar. Dificilmente — ou nunca — somos aquilo que queremos ser. Nossa existência é marcada por uma série de realidades compulsórias: desde a maternidade até a heterossexualidade. Como, então, falar da nossa saúde mental sem citar a socialização que, desde o começo das nossas vidas, nos adoece?

DISPOSITIVO ROMÂNTICO

A forma como nos deparamos com o olhar dos homens, em específico, faz parte da nossa socialização. Somos moldadas para nos importarmos demasiadamente com o que eles pensam de nós, com o que eles desejam que nós sejamos. Como disse Simone de Beauvoir, somos o outro, definidas enquanto o segundo sexo: aquele que está em oposição ao masculino; ao qual falta o “todo”.

Homens são os avaliadores das mulheres; “o amor é identitário para mulheres” — os homens aprendem a amar várias coisas, e as mulheres aprendem a amar os homens. Nesse contexto, o amor romântico se apresenta para as mulheres como adoecedor: a título de exemplo, quando um casamento acaba, a mulher acha que ELA falhou. Quando um homem continua ogro, a mulher acha que ELA falhou — “ruim com ele, pior sem ele”. É comum, inclusive, que mulheres sejam feitas de “centros de reabilitação” para homens: se ele não teve comportamentos melhores, foi porque a mulher com quem ele se relacionou não era a certa; a ‘mulher de verdade’ vai dar conta. 

Crescemos vendo Rapunzel esperar para que um homem a liberte da torre, Ariel trocar sua voz por uma vida ao lado de um desconhecido, Cinderela passar a vida procurando por um príncipe. O amor romântico, tal como é, adoece mulheres. Pensamos que somos incompletas e vivemos o “complexo de Cinderela”, buscando alguém para nos preencher. Precisamos descobrir que somos inteiras, múltiplas e que existimos para além dos olhares masculinos!

SAÚDE MENTAL E FEMINISMO

Nesse contexto, precisamos também falar da nossa saúde mental, enquanto mulheres e feministas. Mesmo conscientizadas acerca da nossa opressão, não passamos imunes às sequelas da nossa socialização e, inclusive, nosso próprio fazer de militância pode se tornar um processo adoecedor se não tivermos cautela.

Passamos tanto tempo preocupadas em mudar o mundo que esquecemos de nós mesmas. Esse é um problema completamente corriqueiro para a maioria de nós e completamente contraditório com aquilo que o movimento feminista nos propõe. Por mais comprometidas que sejamos com a coletividade, precisamos cuidar de nós mesmas e da nossa saúde para conseguirmos dar conta da nossa luta coletiva.

Falamos tanto sobre maternidade compulsória, mas, por vezes, a reproduzimos em nosso cotidiano. Quando recebemos relatos sobre a história de mulheres em situações vulneráveis, queremos cuidar de cada uma delas — o que é absolutamente compreensível. Entretanto, precisamos entender que não vamos conseguir suprir as demandas de todas as nossas companheiras. Assim como não vamos ter capacidade de lidar com os problemas de cada uma. Não somos — e jamais conseguiremos ser — terapeutas umas das outras. Precisamos nos atentar que oferecer nosso ombro em qualquer situação não é saudável: nem para aquela que pede, nem para nós. Se não pudermos oferecer uma escuta qualificada, estaremos prejudicando, e não colaborando.

Mulheres, sei que a ânsia por mudar o sistema é grande. Sei que nos comprometer com o feminismo faz com que queiramos sanar as dores de todas nós. Mas, se nos colocarmos em lugares que não podemos ocupar, causaremos ainda mais dor umas para as outras. Precisamos entender que não somos “mulheres maravilhas” e que temos limitações. Aceitar os nossos limites é cuidar da nossa saúde. E ter saúde nos possibilita ter força para lutar.