Quando eu estava na pós-graduação, tive um debate acalorado com um colega que insistia que o “feminismo branco” era um problema sério para o movimento das mulheres.

O homem (que era branco e estadunidense) argumentou que “feminismo branco” significava que o movimento das mulheres havia se centrado nas vidas e experiências de algumas poucas — mulheres brancas privilegiadas dos Estados Unidos, principalmente dos círculos acadêmicos — “durante a maior parte da sua história.”

Eu lhe disse que considerava o termo uma ferramenta para descartar as feministas da segunda onda, glorificar a (muito problemática) terceira onda, e fomentar lutas internas entre as feministas, criando rixas em um movimento onde a luta coletiva é crucial. Sua alegação estava em desacordo com o movimento de base da República Dominicana, onde eu cresci, que obviamente não era liderado por mulheres estadunidenses (e certamente não por mulheres brancas de classe alta ou acadêmicas). Há problemas legítimos dentro do feminismo no meu país natal, em particular quanto às diferenças de classe, mas há muito mais solidariedade do que animosidade, e o feminismo dominicano tem sido consistente na lida com as lutas das mulheres rurais, da classe trabalhadora e imigrantes.

Notavelmente, durante meu tempo como imigrante nos Estados Unidos, a maioria das pessoas que reclamavam do chamado “feminismo branco” eram elas mesmas brancas. Eu me sentia um token; como se elas quisessem que eu, como uma mulher não-branca dominicana, validasse a elas e ao seu feminismo. Passei a desconfiar de todas as pessoas brancas que usavam o termo. Criticar o “feminismo branco” parecia ser uma maneira para que as pessoas brancas se apresentassem como diferentes e melhores — como feministas descoladas e “interseccionais” que por acaso são brancas.

Agora que voltei à República Dominicana para trabalhar em abrigos, acredito que meu amigo da pós-graduação tinha razão quanto a uma coisa: o feminismo branco é real. Seu melhor exemplo é a ideologia da identidade de gênero.

A tendência atual entre as feministas da terceira onda, assim como entre pessoas progressistas, é argumentar que podemos ignorar se as pessoas nasceram como machos ou fêmeas e em lugar disso usar termos como genderfluid,” “multigênero,” ou “genderqueer.” Mas há uma lacuna imensa entre esta linguagem — popularizada dentro das salas de aula dos Estudos de Gênero do Ocidente — e as realidades das mulheres marginalizadas em países como o meu.

Tenho pensado sobre o significado da identidade de gênero no contexto do Sul Global. O que a identidade de gênero significa para mulheres e meninas que se parecem comigo? Qual seu significado para as mulheres e meninas dominicanas que são marginalizadas não apenas pelo sexo, mas também pela pobreza, pelo racismo e pela xenofobia?

Recentemente, a República Dominicana debateu sobre a proibição do casamento infantil. O país tem o mais alto índice de casamentos infantis da região latino-americana e caribenha. De acordo com uma pesquisa de 2014, 37% das mulheres entre 20 e 49 anos se casaram (ou se tornaram parceiras de direito comum) antes dos 18 anos. A pesquisa também mostra que um em cada cinco meninas entre 15 e 19 anos está em um relacionamento com um homem pelo menos 10 anos mais velho. Há uma forte correlação entre casamento infantil e gravidez na adolescência, o que pode resultar em perigosas complicações de saúde para meninas, como infecções, hemorragia, parto obstruído e hipertensão na gestação. De fato, a gravidez na adolescência é a causa de morte número um para meninas adolescentes no mundo inteiro. Isso é em particular preocupante porque a República Dominicana proíbe qualquer forma de aborto, mesmo nos casos com risco de vida para a gestante.

Plan International, uma organização pelos direitos das crianças, publicou um estudo em março, olhando para o casamento infantil no lado sul da ilha caribenha. Foram entrevistados homens casados com meninas menores de idade e também meninas que “escolheram” esses casamentos. Quase 40% dos homens entrevistados disse que preferiam meninas mais jovens porque eram “mais obedientes e fáceis de controlar.” O estudo também revelou que muitas meninas se casavam com homens mais velhos na esperança de fugir da violência doméstica e da pobreza, mas depois enfrentam violência destes homens uma vez que elas estão casadas. Disse uma menina de 15 anos entrevista pelo estudo:

“Eu me casei porque precisava fugir de casa. Eles me batiam. Com varas. Eles não acreditam em mim. Um dia eu falei: ‘Não quero mais viver desse jeito.’ Em casa, tinha muita briga, uma dia na frente de todo mundo eles me bateram, no meio da rua. Então eu comecei a trabalhar numa casa. Eu tinha 11 anos. Lá era pior ainda, a violência aumentou. Eu tinha que fazer todas as tarefas domésticas, inclusive lavar todas as roupas na mão. Eles nem me deixavam ir à escola e eles nunca me pagavam, porque disseram que já me davam comida. Eu sofria muito. Eu me sentia presa, não podiam nem ir ao parque. Eu queria me casar para deixar tudo aquilo para trás. Pensei que se estivesse casada eu estaria numa casa tranquila, que eu poderia comer, dormir e sair. Eu não sabia que não seria daquela forma, mas sim como outro inferno.”

Na República Dominicana, não se espera que os meninos façam faxina ou ajudem a cuidar de seus irmãos — isso é responsabilidade das meninas. Antes do casamento, 78% das meninas que participaram no estudo da Plan International disseram que eram encarregadas de tarefas domésticas como limpeza ou cuidados dos irmãos pequenos. Quando se perguntou às meninas o que significa ser uma mulher, a maioria disse que significava ser mãe e esposa.

A escritora Caridad Araujo assinala:

“Metade das mulheres da América Latina que estão em [idade produtiva] está desempregada e aquelas que possuem um trabalho ganham consideravelmente menos que seus homólogos masculinos. Para as mulheres da América Latina e Caribe, o abismo salarial se exacerba durante os anos do auge da sua fertilidade.”

Isso se deve à expectativa de que as mulheres sejam cuidadoras inerentes. Ser obrigada a assumir a função de cuidar se traduz em mulheres que poupam menos, são promovidas menos e contribuem menos para a aposentadoria.

Mas a política da identidade de gênero reduz esta realidade — e a própria mulheridade — a uma identidade trivial e maleável. É desconcertante que, em um mundo onde mulheres e meninas enfrentam opressão estrutural devido à sua biologia, a política de identidade de gênero tenha prosperado.

Susan Cox argumenta: “A declaração não-binária é um tapa na cara de todas as mulheres, que, se não se assumirem ‘genderqueer’, presumivelmente possuem uma essência interna perfeitamente alinhada com a paródia misógina da feminilidade criado pelo patriarcado.” Há uma crueldade distorcida e neoliberal ao se argumentar que o problema principal do gênero seja seu impacto nas identidades escolhidas pelos indivíduos, e não a forma pela qual o gênero opera sistemicamente, sob o patriarcado, para normalizar e encorajar a violência masculina e a subordinação feminina.

Quando confrontados com a evidência de que, histórica e globalmente, a opressão das mulheres possui base no sexo, a política da identidade de gênero simplesmente afirma que o próprio sexo é uma construção social “inventada”.

MAS macho/fêmea como duas categorias distintas é um sistema feito por nós. o sexo biológico é uma classificação que nós inventamos. não é inerente à natureza.

— Riley J. Dennis (@RileyJayDennis) July 9, 2017

Em um artigo para Quartz, Jeremy Colangelo escreve:

“Sexo e gênero são muito mais complexos e nuançados do que se acreditava há tempos. Definir sexo como binário é tratá-lo como um interruptor: ligado ou desligado. Mas na verdade é muito mais semelhante a um dimmer, com muitas pessoas situadas em algum lugar entre macho e fêmea, geneticamente, fisiologicamente e/ou mentalmente. Para refletir isso, os cientistas agora descrevem o sexo como um espectro.

Apesar das evidências, as pessoas se agarram à ideia do sexo como binário pois é a explicação mais fácil de acreditar. Ela acompanha as mensagens que vemos em propagandas, filmes, livros, música – basicamente em todos os lugares. As pessoas gostam de coisas familiares, e o binário é familiar (em especial se você é uma pessoa cisgênero que nunca teve que lidar com questões de identidade sexual).”

Mas as feministas não argumentam que o sexo biológico é real por ser “a explicação mais fácil de acreditar” ou porque é o que a mídia nos diz. Argumentamos que o sexo biológico é real porque desde o momento em que uma ultrassonografia revela que o bebê é uma fêmea, ela começa a ser subjugada. E embora se apresente a “identidade de gênero” como algo a ser aceito pelo feminismo, doa a quem doer, ela está, conforme explica Rebecca Reilly-Cooper, completamente em desacordo com a análise feminista do sexo biológico como um eixo da opressão:

“A subordinação histórica e contínua das mulheres não começou porque alguns membros da nossa espécie optaram por se identificar com um papel social inferior (sugerir isso seria uma flagrante culpabilização da vítima). Tal fato emergiu como meio pelo qual os machos pudessem dominar a metade da espécie capaz de gerar crianças, a fim de explorar sua sexualidade e seu trabalho reprodutivo.

Não podemos entender o desenvolvimento histórico do patriarcado e a existência contínua da discriminação sexista e da misoginia cultural, sem reconhecer a realidade da biologia feminina e a existência de uma classe de pessoas biologicamente femininas.”

Longe de fluida, a realidade da opressão fundamentada no sexo é rigorosa e aplicada por meio da violência — isso é em particular verdadeiro para mulheres não-brancas e mulheres pobres.

Provavelmente, as mulheres e meninas romenas que lotam os bordéis da Espanha (seis a cada dez mulheres prostituídas na Espanha vieram da Romênia) gostariam de deixar de fazer parte do seu gênero. Evelyn Hernandez Cruz, uma menina de 19 anos que acabou de ser condenada a 30 anos de prisão no El Salvador por ter dado à luz um natimorto, após ter sido estuprado diversas vezes por um membro da gangue, certamente gostaria de rejeitar seu status de “mulher”. As meninas de 12 anos da Quênia que são vendidas para a prostituição pelas suas famílias desesperadas por dinheiro em meio a secas regionais, provavelmente não se identificam com esse intercâmbio onde elas são tidas como mercadorias. É plausível que as meninas do Nepal que morrem de mordidas de cobras e baixas temperaturas durante seu exílio menstrual estejam desconfortáveis com as restrições de seu gênero.

Mesmo nos Estados Unidos, a opressão fundamentada no sexo é agravada por outras formas de opressão, como o racismo. De acordo com um relatório de 2017, mulheres negras têm quatro vezes a chance das mulheres brancas de morrer de complicações relacionadas à gestação, e são “duas vezes mais propensas a passar por complicações com risco de vida durante o parto ou a gestação.” Um estudo conduzido pelo Center for Disease Control and Prevention mostrou que metade dos casos de feminicídio dos Estados Unidos são cometidos por atuais ou ex-parceiros e que mulheres negras são as mais propensas a serem assassinadas do que todos os outros grupos. É justo supor que esta não seja uma realidade com a qual estas mulheres se “identificam”.

Argumentar que o sexo não é real e que o gênero é inato ou escolhido, em vez de socialmente imposto, demonstra tanto a ignorância diante do mundo ao seu redor quanto uma posição de privilégio. Dessa maneira, vemos que a ideologia da identidade de gênero é literalmente “feminismo branco”: um (assim chamado) feminismo que ignora a realidade material dos marginalizados, centra-se nos sentimentos e interesses dos mais privilegiados e se apresenta como universal. É um “feminismo” inventado por acadêmicos dos países ocidentais que pouco fazem para abordar as lutas travadas fora dos seus círculos.

Cate Young define o feminismo branco como:

“Um conjunto específico de práticas feministas unidirecionais, não-interseccionais e superficiais. É o feminismo que compreendemos como convencional; o feminismo obcecado com pelos corporais, salto alto e maquiagem, mudança do nome de casada. ‘Feminismo branco’ é o feminismo que não entende o privilégio ocidental ou o contexto cultural. É o feminismo que não considera a raça como fator na luta pela igualdade.

Feminismo branco é qualquer expressão do pensamento ou ação feministas que é anti-interseccional. É um conjunto de crenças que permitem a exclusão das questões que afetam especificamente as mulheres de cor.”

Considerando esta definição, qual a nossa opinião sobre um homem alegando que o delineador define a “feminilidade” dele, como Gabriel Squailia fez este ano num artigo para Bustle? Ele escreve:

“Minha política e meu delineador se tornaram inseparáveis. Projetar meu próprio senso de beleza, sem vergonha ou hesitação, assustou os meus adversário. Meu visual era minha armadura e meu armamento. Todo dia, crescia meu poder pessoal. Força e segurança vieram das linhas desenhadas nas minhas pálpebras, e da visibilidade que se seguia. Meu senso de mim mesmo é pessoal, particular, idiossincrático. Envolve questões massivas e complexas de identidade e política. E tudo isso está presente quando me inclino no espelho, ajeitando meus olhos de gatinho.”

O ridículo da alegação de Squailia de que a maquiagem o torna uma mulher e de que poder, força e segurança estão facilmente disponíveis e adquiríveis por meios superficiais, torna-se ainda mais nítido quando contrastado com as realidades enfrentadas dia a dia pela maioria das mulheres e meninas ao redor do mundo. Em seu texto, Squailia admite que a feminilidade é algo que ele consegue vestir ou tirar, a bel-prazer:

“Parei de usar qualquer coisa que parecesse feminina. Não tive um delineador sequer por 20 anos. E nada dizia quando as pessoas me tratavam como um homem heterossexual cisgênero.”

Mas mulheres e meninas oprimidas por terem nascido fêmeas não têm o privilégio de escolher se desfazer da mulheridade e se apropriar dos privilégios masculinos dos homens heterossexuais. O patriarcado não se importa se as mulheres não gostam ou não se identificam com seu o papel subordinado.

Muitas pessoas que se consideram progressistas acreditam que, ao jurar lealdade à ideologia da identidade de gênero, elas fazem demonstrações de “interseccionalidade”. Mas se elas se preocupassem de verdade com as intersecções entre sexo, raça e classe, tomariam como centro as mulheres e meninas marginalizadas pelos três eixos da opressão. Em vez disso, progressistas e ativistas queer priorizam homens que acreditam ser possível escolher entre estar dentro ou fora de uma opressão. Certamente, a maioria das mulheres ao redor do mundo se ofenderia com a noção de que a violência e a injustiça que sofrem sejam uma escolha… Ou que tenha algo a ver com um delineador.


Raquel Rosario Sanchez é uma escritora da República Dominicana. Sua prioridade na obra e como feminista é pôr fim à violência contra meninas e mulheres. Seus trabalhos apareceram em diversas publicações impressas e digitais em inglês e espanhol, incluindo: Feminist Current, El Grillo, La Replica, Tribuna Feminista, El Caribe e La Marea. Você pode segui-la em @8rosariosanchez onde ela divaga sobre feminismo, política e poesia.


Link para o texto original https://www.feministcurrent.com/2017/07/26/white-feminism-thing-gender-identity-ideology-epitomizes/