Andrea Dworkin: "Homens têm o poder de nomear". Créditos da imagem: Jodi Buren/The Life Images Collection/Getty Images"

Eu respeito os pronomes de todo mundo — e peço às pessoas que respeitem a linguagem que define a minha vida

“O que é uma mulher?”. Essa foi a pergunta feita à liderança esperançosa Democrata Liberal de Layla Moran no fim do mês passado, no programa de rádio Political Thinking with Nick Robinson. “Você falou de dar respostas diretas a perguntas diretas”, disse Robinson. “Aqui está uma pergunta legal pra você, filosófica: o que é uma mulher?”.

Houve uma pausa, antes de uma resposta que não foi tão direta quanto Robinson havia esperado. “Bom”, disse Moran, “uma mulher é um gênero, é uma forma de se auto-identificar e existem vários gêneros. Existe o macho e isso é biológico. Existe a fêmea, que também é biológico. Uma mulher é uma identidade de gênero que é mais análoga a se ser um homem. Esses são os opostos, e então também existe o não-binário, que são pessoas que não se identificam com nenhum.”

Isso me pareceu confuso. Então ser um homem é semelhante a ser mulher? Como isso funciona? Eu fiz a mesma pergunta no Twitter — o que é uma mulher? — e Naomi Wolf, ninguém menos, a autora de “O Mito da Beleza” e “Vagina: uma Nova Biografia”, respondeu que uma mulher é qualquer pessoa que queira ser uma. É uma escolha pessoal. “Muitos homens e pessoas trans têm me agradecido pelo [livro] ‘O Mito da Beleza’”, ela escreveu. “Eu não o escrevi apenas para leitores nascidos com útero.”

A confusão continuou no Twitter com uma treta em torno de um tweet de Piers Morgan, em resposta a um tweet da CNN em que se lia: “Recomenda-se a indivíduos com colo de útero que agora comecem ultrassom para detecção de câncer de colo de útero aos 25 anos”. Morgan respondeu: “Você quer dizer mulheres?”, e quando Rosie Duffield, parlamentar britânica do Partido Trabalhista eleita pelo círculo eleitoral de Canterbury, curtiu o tweet de Morgan, ela foi acusada de ser transfóbica. Duffield então twittou: “Eu sou transfóbica por saber que apenas mulheres têm colo de útero…?!”. Progressistas que presumivelmente querem ganhar de volta aqueles assentos [no parlamento britânico] da “muralha vermelha” [1] clamaram por sua demissão.

Eu fico consternada com a perseguição de pessoas trans — e também com a cólera dirigida a mulheres que estão questionando uma narrativa em que nossas experiências, necessidades e realidade são demasiado frequentemente negligenciadas. Por que não podemos usar a palavra “mulherxs”, alguém perguntou no Twitter. É óbvio, não é? Apagar a palavra “mulher” significa que não podemos falar de nossa biologia e de nossa experiência. Feministas de esquerda, eu inclusa, vemos mulheres como uma classe sexual. O “feminismo de escolha” estadunidense foi um desastre; feminismo re-empacotado como uma conquista do capitalismo. O backlash agora está aqui, e em alguns casos vem na forma de uma ideologia que passa por cima das demandas de mulheres.

Nós não falamos tanto agora sobre as terríveis violências dispensadas às mulheres — a taxa absurdamente baixa de condenações por estupro e a imensa e crescente incidência de violência doméstica — porque isso seria enxergar mulheres como ainda oprimidas. E existe uma narrativa popular agora que frequentemente diz que nós não somos. Para algumas pessoas, a vitimização se tornou a preservação de uma porcentagem minúscula da população — comunidades trans e outras seriamente marginalizadas — que de fato sofrem muito. Mas enquanto suas dificuldades são reconhecidas, as dificuldades das mulheres são consideradas meramente os balidos de fêmeas privilegiadas.

Se não podemos definir o que é uma mulher ou nomear essa experiência, não conseguimos nos organizar politicamente. Como a feminista radical Andrea Dworkin uma vez escreveu:

“Homens têm o poder de nomear, um poder imenso e sublime. Esse poder de nomear possibilita que homens definam a experiência, articulem limites e valores, designem a cada coisa seu domínio e qualidades, determinem o que pode e não pode ser expresso e controlem a percepção em si.”

Para mim, o debate sobre as questões trans não é e nunca foi sobre banheiros e vestiários. É sobre o direito de mulheres definirem elas mesmas num sistema que tem medo de que nós façamos justamente isso.

Eu vou tranquilamente respeitar o pronome de qualquer pessoa e eu peço que as outras pessoas também respeitem a linguagem que define a minha vida em um terno de carne de fêmea. Nunca se fala de homens como portadores de próstata, ou veículos de seus pênis ou testículos. Eu ainda não li uma definição de “cis” com a qual eu me identificasse, apesar de, como uma pessoa do sexo feminino cuja expressão de gênero combina com meu sexo, é aparentemente isso que eu sou. O fato é que, quando se trata da minha aparência, eu comecei a fazer drag — maquiagem, salto alto, cabelos longos — assim que eu entendi que, para usar minha mente, eu teria que parecer no exterior completamente diferente de como eu me sentia por dentro. A desconformidade de gênero tem sido uma parte essencial de minha vida, assim como é para tantas pessoas, seja isso aparente ou não. Eu sempre gostei da forma como a ativista [2] de Stonewall, Marsha P Johnson, escolheu chamar a si mesma de “Revolucionárias de Ação Transvesti de Rua”. Ela pensava de si mesma não como uma mulher, mas como “uma rainha”.

Todas nós somos uma combinação de biologia e história, nossos corpos situados num tempo e num espaço. Eu não quero nem fetichizar e essencializar a biologia nem a negar. É diferente para cada uma de nós.

É frequentemente argumentado no Twitter que a luta por direitos trans é a mesma que a luta por direitos gays. Mas, crucialmente, sair do armário como gay não requer nada das outras pessoas além de igualdade. Há agora uma demanda de alguns ativistas — muitos deles sequer trans eles mesmos; muitos deles homens — para que a classe de mulheres seja renomeada.

Eu rejeito isso. Sou eu mais do que uma coleção de partes do corpo? Tenho eu permissão para falar de minha própria vida? Sou eu mulher simplesmente por escolha?

O que é, então, uma mulher? Nesses dias, eu frequentemente penso que é simplesmente alguém que não concorde em deixar homens misóginos falarem por nós.


Notas:

[1] A “muralha vermelha” (“red wall”) de círculos eleitorais no Reino Unido é a expressão utilizada para designar a tendência histórica de apoio ao Partido Trabalhista por parte de alguns círculos eleitorais (“constituency”). Nas últimas eleições, entretanto, diversas dessas zonas elegeram membros de partidos conservadores. Daí a referência da autora do texto da ânsia, por parte de partidos progressistas, de “ganhar de volta” esses assentos.

[2] No texto original a autora usa pronomes femininos. Não concordo, porque se trata de uma pessoa do sexo masculino, mas mantive.


Tradução livre do artigo de Suzanne Moore.