Segunda onda 3.0

Feminismo radical é sobre as experiências e as vidas das mulheres. É, portanto, ao mesmo tempo, particular e universal. Transcende barreiras geográficas, religiosas, étnicas, linguísticas, econômicas e sociais, porque faz o que nenhuma outra teoria, nenhum outro movimento político/social se interessou em fazer — unir mulheres em torno de uma opressão em comum. Por óbvio: em todos os outros movimentos há homens, e homens não têm interesse (genuíno) em perder seus privilégios sobre mulheres. O feminismo é o único movimento de mulheres lutando por elas mesmas e priorizando suas próprias pautas (por mais que recentemente tentem, aos gritos, nos convencer do contrário).

A História não pára, é claro, mas os poderosos nunca abriram mão voluntariamente de seus poderes (ou, pra dizer em brasileirês — não existe almoço de graça), e precisaram concentrar esforços principalmente intelectuais — principalmente no último século, já que força bruta e irracionalidade foram devidamente refutadas — para justificar a manutenção de seu poder. As expressões da misoginia mudaram ao longo do tempo e continuam em constante mudança, assim como a exploração de classes precisou se ressignificar, assim como o racismo e a colonialidade também precisaram se ressignificar. O desenvolvimento tecnológico — considerando suas aplicações em uma sociedade patriarcal-capitalista — também tem se mostrado grande aliado do alargamento de fronteiras da exploração humana.

E apesar de todas essas mudanças sociais, tecnológicas, de dinâmica e de distribuição de poder no mundo, apesar de todas essas mudanças principalmente “culturais” dos últimos 120, 50, 30, até 20 anos, algumas coisas curiosamente se mantêm — e não só se mantêm como foram diversificadas, pioradas à décima potência. A exploração sexual segue ereta como há 120 anos. Há 120 anos rebatemos o mito de que ‘a prostituição é o trabalho mais antigo do mundo’. Há 120 anos traçamos a correlação entre exploração sexual, pobreza, relações sociais de sexo, propriedade, família e monogamia. Há 120 anos provamos que não é coincidência serem as mulheres o grupo mais prostituído do mundo, de longe. Daí surgiu a fotografia, e o cinematoscópio, e as revistas impressas se popularizaram, e depois veio a internet. Há 40 anos falamos dos males da pornografia e do quanto ela educa homens para a agressividade e mulheres para a passividade. Há 40 anos relacionamos estupro com o consumo de pornografia. Há 40 anos relacionamos a cultura do estupro, a banalização da violência sexual, a culpabilização da vítima e a dessensibilização dos homens ao consumo de pornografia.  Daí nos chamam de pudicas e de moralistas, e a indústria pornográfica fatura dezenas de bilhões todos os anos e ainda tem a pachorra de nos homenagear no Dia da Mulher. Daí nos últimos anos, pra coroar, vimos a ascensão dos robôs sexuais, programados para “resistir” a investidas sexuais — programados para serem estuprados. Coincidentemente ou não, a regulamentação da prostituição em alguns países (vide as experiências Alemã e Australiana) fez a demanda explodir e os transformou em pólos de tráfico (ilegal, quem diria) sexual.

A exploração do trabalho reprodutivo, doméstico e de cuidados segue ereto como há 120 anos. Há 120 anos rebatemos o mito de que tais trabalhos fazem parte da natureza da mulher, em oposição a outras atividades que seriam da natureza do homem. Há 120 anos brigamos e explicamos que tudo o que o homem está apto a fazer a mulher também está, e se não o fez historicamente é porque foi ativamente impedida — e vice-versa: se o homem não o fez, historicamente, é porque relegou o trabalho geralmente a alguma mulher. Há 120 anos usávamos esse argumento para poder entrar no mercado de trabalho, sonhando com a independência financeira; há 70/60 anos, com a entrada — forçada — das mulheres no mercado de trabalho — por motivos de: morreu muito homem na guerra que eles mesmos inventaram — a questão não foi resolvida mas duplicada: agora a jornada de trabalho é dupla, às vezes tripla. As mulheres não se viram desobrigadas do casamento, como imaginávamos que aconteceria (já que o casamento, para mulheres de classes superiores mais altas, era a única opção de sobrevivência, além da prostituição); mas pelo contrário — forjou-se ainda mais fortemente a imagem de uma mulher que só era completa se estivesse trabalhando fora de casa, cuidando das crianças e ainda satisfazendo sexualmente seu marido. As mulheres estão tão obrigadas ao trabalho doméstico hoje como estavam há 120 anos; a romantização da maternidade hoje é tão presente quanto há 120 anos; a maternidade ainda é tida como o destino final de uma mulher; o casamento, como o principal objetivo da vida.

O racismo e a colonialidade do poder estão tão vivos hoje como há 120 anos. A periferia do mundo continua sendo explorada pelas mesmas potências de 500 anos atrás; o racismo científico/social se impregnou de tal forma em nosso imaginário que a ‘raça branca’ e sua cultura e seus costumes sociais (vulgo — de raízes europeias) ainda são centralizados como padrão de sucesso, de beleza, de civilização, de desenvolvimento. Todas as civilizações, culturas, povos, linguagens, modos de produção, estruturas organizacionais e dinâmicas sociais, costumes, e sistemas de crenças racializados (já que a branquitude se coloca como a não-raça, a referência) ou foram e são ativamente (às vezes — mais vezes do que gostaríamos de admitir — literalmente) extirpados ou são invisibilizados, principalmente quando oferecem alternativas ao modo de produção e de organização social capitalista/patriarcal.

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Mas calma. Esse texto não é pra desanimar. Porque eu não estou desanimada. Na verdade, nos últimos dias, ao ver as fotos do #8M ao redor do mundo, minhas esperanças foram renovadas — e foram renovadas especificamente em torno do único feminismo possível: o feminismo radical.

Porque, como eu disse no primeiro parágrafo, o feminismo radical transcende. E ele é o único que faz isso. Porque ele é o único — como seu nome acusa — que vai à raiz da opressão feminina, algo que explique por que todas as mulheres do mundo, em maior ou menor escala, estão todas enfiadas no mesmo barril de merda. É o único cujas teoria/prática — que são indissociáveis — são ginocentradas e fundamentadas e originadas nas vidas e nas experiências de mulheres. E é o único feito por mulheres, para mulheres.

Porque o feminismo radical não se desengaja. Ele não se encastela nos livros. Ele não acredita em se distanciar de seu ‘objeto de estudo’ porque as autoras são os objetos de estudo delas mesmas; suas vidas, suas vivências, suas experiências, seus relacionamentos, sua subjetividade e seus traumas e de suas parceiras, amigas, coletivas, familiares e ilustres desconhecidas — tudo isso é nosso objeto de estudo. Não tem como você se distanciar de você mesma, e nós nem queremos isso, porque o objetivo do feminismo radical é, e sempre foi, essa reconexão. Desenterrar nossa história. Desafogar nossos sentimentos. Entrar em contato com nossa raiva. Redescobrir quem nós somos, de forma autônoma e auto-organizada e coletiva e ginocentrada.

E é por isso que as feministas radicais resistem e têm resistido aos ataques, ao backlash e ao escárnio vindo da própria esquerda, muitas vezes de outras mulheres que inclusive se autointitulam feministas. Nos anos 70, éramos radicais. Nos anos 90, éramos as garotas rebeldes dos zines. Nos anos 2010, somos uma rede transnacional de mulheres abolicionistas antipornografia, e pela primeira vez em muitos anos nós conseguimos juntar força (interna e externa) suficiente para cometer a ousadia de ir para as ruas segurando cartazes que não amenizem nem eufemizem nossos posicionamentos. Mesmo porque, se os ataques vierem, nós sabemos que vamos resistir.

Nos anos 70 intensificou-se a nossa invasão à Academia e à Política. Nós fizemos encontros internacionais e congressos e conferências. Nós trocamos experiências com outras mulheres. Nós conversamos, face a face, com outras mulheres. Nós constatamos na prática o que já teorizávamos — que há algo que, realmente, nos une: que une uma menina negra favelada no Rio de Janeiro a uma universitária de classe média da Califórnia a uma indígena aldeada nos arredores de Medellín a uma médica de classe alta em Londres a uma adolescente em situação de prostituição em Lagos a uma idosa sobrevivente do apartheid em Joanesburgo a uma imigrante ilegal de origem Marroquina a uma chefe de família em Nova Deli a uma camponesa na Mongólia a uma filha única de classe industrial em Tóquio a uma periférica que trabalha recolhendo lixo em Manila a uma secretária de origem maori de classe média em Auckland e (acho que vocês entenderam)

E a internet nos deu de novo esse gás de que precisávamos, porque mesmo levando em consideração as dinâmicas sociais econômicas e de poder, mesmo considerando que das 7.6 bilhões de pessoas no mundo “apenas” praticamente metade disso — 3.6 bilhões de pessoas — têm acesso a internet e que isso é determinado basicamente por questões de classe (acesso a tecnologia, no final das contas, é uma questão de classe) — ainda assim, internet é terra de ninguém. Ter dinheiro ajuda a impulsionar conteúdo, mas a criação e a difusão de conteúdo é praticamente livre. Sem censura. E as feministas nos últimos anos percebemos esse potencial — a grosso modo, revolucionário — da internet: o trabalho de base que antes precisava necessariamente ser feito na rua e nos bairros hoje pode ser feito, resguardadas as devidas proporções, pelo celular. É possível alcançar mulheres, principalmente as jovens, sem precisar de um espaço físico, sem precisar imprimir textos, sem precisar de estrutura e de mais pessoas. Com poucos cliques, é possível saber como anda o movimento feminista na maioria dos países do mundo. E, para o desgosto do patriarcado, nós estamos nos comunicando.

Comunicando, nós nos fortalecemos. Nós nos fortalecemos ao percebermos que não estamos sozinhas, e nos impulsionamos a alcançar outras mulheres, porque queremos — genuinamente, queremos — que elas se juntem a nós, porque só têm a ganhar. Enquanto brasileiras, enquanto latinoamericanas, enquanto colonizadas, enquanto mulheres. E a nossa união é o primeiro passo para conseguirmos qualquer coisa — qualquer coisa (porque uma classe desunida obviamente não consegue nada nunca).

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