Recentemente eu tenho percebido uma conexão interessante entre grupos díspares que enfrentam uma discriminação sistêmica e interconectada e violência em razão de características anatômicas específicas, e fiquei pensando se haveria algum benefício em formar uma aliança entre esses grupos para lutar de forma mais efetiva e fazer ativismo por seus direitos? Os grupos são os que se segue:

1. Menstruadores

“menstruator / non-menstruator”



“menstruators”

“persona menstruant”.
“pessoas menstruam”
“personne menstruée”

Menstruadores são pessoas que regularmente descamam o forro de seus úteros, geralmente a cada mês. Esse grupo enfrenta pobreza menstrual e estigma menstrual, e pode enfrentar desigualdade educacional, empregatícia e de cuidados de saúde por conta de sua fisiologia.

2. Indivíduos com cérvix (colo do útero)

“Individuals with a cervix”

Indivíduos com cérvix enfrentam desigualdades nos cuidados de saúde parcialmente relacionadas à coleta de dados, à pesquisa e ao financiamento inadequados para pessoas com essa anatomia em particular.

3. Pessoas grávidas

“Pregnant people”
“Pessoas grávidas”
“Personas gestantes o lactantes” (Colômbia)
“Personas gestantes” (Argentina)

Pessoas grávidas/gestantes enfrentam violência obstétrica, desigualdades de acesso a saúde, desvantagem laboral e discriminação de empregabilidade, além da criminalização quando tentam exercer seus direitos reprodutivos ou manter sua autonomia corporal.

4. Corpos paridores

“black birthing bodies” = corpos negros paridores (do verbo “parir”)

Interessantemente, pessoas cujos corpos parem outras pessoas parecem sofrer muitas das mesmas formas de discriminação e violência que são sofridas pelo grupo pessoas grávidas.

5. Aleitadores

“Chestfeeding” é o termo “neutro” em oposição a “breastfeeding”. “Chest” é relativo a “peitoral”, enquanto “breast” é relativo a “seio”.

[“Amamentadores” não dá, porque “amamentar” é “dar de mamar”, que é relativo a “mama”, que incita disforia. Tem que pegar algo neutro.]

Pessoas que expelem leite por seus mamilos para alimentar bebês enfrentam discriminação de empregabilidade e frequentemente enfrentam estigma e preconceito por conta dessa função corporal.

6. Possuidores de útero / Pessoas com útero

“uterus holding individual”. (note que, no entanto, “men” — homens — segue intacto)


“pessoas com utero”

Pessoas com úteros, e, interessantemente, pessoas que tiveram seus úteros removidos, enfrentam discriminação e violência cem razão de muitos fatores compartilhados por vários dos outros grupos listados acima. Particularmente, histerectomias forçadas são feitas apenas em pessoas cujos corpos possuem úteros. Essas pessoas então se tornam pessoas que costumavam ter úteros.

7. Pessoas com vagina

“People with vaginas”
“pessoas com vagina
“Persona(s) con vagina”
“Menschen mit Vagina”

Pessoas com vaginas sofrem níveis epidêmicos de violência assim como discriminação endêmica e enraizada. Possuidores de vagina parecem particularmente vulneráveis a objetificação, abuso e exploração sexuais.

  • Mais de 80% das vítimas de violência sexual possuem vagina.
  • Quase todas as vítimas de estupro possuem vagina.
  • Mais de 80% das vítimas de assassinatos relacionados a sexo possuem vagina.
  • 71% de todas as vítimas de tráfico humano global possuem vagina.

Possuidores de vagina também sofrem de discriminação de empregabilidade e desigualdade de cuidados de saúde.

Vale notar que, talvez por coincidência, pessoas grávidas, corpos paridores, possuidores de útero e possuidores de cérvix também são pessoas com vaginas. A intersecção aqui é bastante surpreendente.

8. Pessoas com vulva

“Vulva owners” / “Pessoas com vulva”

Pessoas com vulva parecem compartilhar com pessoas com vagina uma experiência quase paralela de discriminação e violência. Além disso, quase sem exceção, pessoas com vulva possuem vaginas.

9. Pessoas em menopausa

“Menopausal people”
“unx menopáusicx” / “persona menopáusica”

Pessoas que costumavam menstruar mas não mais o fazem, geralmente em razão de terem chegado à meia idade, enfrentam discriminação de cuidados de saúde, de empregabilidade e de previdência social. Adicionalmente, essas pessoas enfrentam inimizade, hostilidade e preconceito sistêmicos e arraigados, exemplificados pela linguagem usada para se referir a pós-menstruadores mais velhos. Exemplos de tal linguagem incluem os termos bruxavelha coroca, coroa.

(respondendo a JK Rowling) “Ninguém se importa com o que você pensa, sua #VELHACOROCA com aparência de semi-morta. Arraste-se de volta para sua #tumba >>> & cuide da sua vida #BRUXA !!!”

10. Hospedeiros por substituição / Útero de substituição / Barriga solidária

(relativamente à sub-rogação de útero, ou, como mais conhecido — “barriga de aluguel”)

“Surrogate host”
Nem mostra o rosto, porque realmente o que importa é a barriga.

Pessoas que vendem seus óvulos e se tornam “substitutas” [ou, como dizemos em português, “cedentes temporárias do útero”] comumente vivem em condições empobrecidas e frequentemente são coagidas.

Essas pessoas enfrentam desigualdade de cuidados de saúde e violência de cuidados de saúde.

Depois de uma pesquisa inicial, eu percebi com algum choque que “cedentes de útero” também são pessoas com cérvix, úteros, vaginas e vulvas, e são pessoas grávidas e corpos paridores.

Foi essa epifania que finalmente me forçou a pensar que as conexões não poderiam ser totalmente frutos de coincidência.

Alguma coisa conecta esses grupos diferentes.

Mas o quê?

Formando uma aliança

Unir-se a outros grupos que enfrentam discriminações semelhantes aumenta o poder de ativismo de um movimento, e amplifica as vozes de todos os seus membros.

Isso tem funcionado, por exemplo, para o movimento de Direitos de Pessoas com Diversidade Funcional [1], que inclui pessoas com vários tipos de diversidades funcionais psicológicas e físicas, mas que têm uma coisa em comum — elas enfrentam discriminação em razão de sua diversidade funcional.

Eu refletia se a mesma lógica poderia se aplicar aos grupos listados acima, todos os quais enfrentam discriminação e violência em razão de sua especificidade anatômica.

Menstruadores e pessoas em menopausa, possuidores de vagina, vulva e útero, pessoas com cérvix, pessoas grávidas, cedentes de útero, corpos paridores e aleitadores — todos esses grupos enfrentam discriminação baseada em suas características anatômicas específicas e praticada sobre os corpos que exibem essas características.

É possível que esses diferentes grupos de características estejam, de alguma forma, relacionados?

Se sim, certamente faria sentido que esses grupos buscassem formar uma aliança. Isso permitia que eles trabalhassem juntos para lutar contra os preconceitos e discriminações que encontram, e para eliminar a violência à qual estão sujeitos. Mas para formar uma aliança, esses grupos precisam identificar o que é isso que eles possuem em comum, além do fato de que eles enfrentam discriminação e violência.

Muitos grupos enfrentam discriminação e violência. Mas ainda que toda opressão possa ser vista em termos de relações de poder, advindas do impulso de dominar, subjugar e explorar outros para aumentar o poder do dominante, não é nem realista nem factível tentar lutar contra todas as opressões, sob quaisquer bases, com um esforço de ativismo gigante de vamos-todos-juntos.

É por isso que grupos de ativismo existem para grupos de interesses específicos. É por isso que, por exemplo, Vidas Negras Importam não é Todas as Vidas Importam.

Grupos de ativismo precisam ser nem tão largos, mas igualmente eles não podem ser específicos demais. O movimento negro teria muito menos impacto se fosse dividido por geografia ou etnia. Da mesma forma, o movimento de direitos de pessoas com diversidade funcional, feito de uma miríade de grupos com interesses separados, é mais efetivo como um movimento unificado. O mesmo vale para sindicatos.

O que é necessário é um “guarda-chuva” sob o qual grupos diferentes mas intrinsecamente conexos possam se juntar, reconhecendo sua causa comum sem negar suas diferenças.

O que nos une?

Eu tentei pensar em uma característica comum, unificadora, que seja compartilhada por todos os 10 grupos acima, e descobri que há de fato um fator que se destaca dentre todos os outros.

Todos esses grupos enfrentam discriminação e violência em razão de características anatômicas específicas, muitas das quais são (ou foram, em algum momento) compartilhadas por todos ou pela maioria dos grupos.

Além disso, a discriminação e a violência dirigida a esses grupos tende a ser de fato praticada sobre as partes do corpo, ou dirigida contra as funções corporais, que marcam as pessoas como membros desses grupos.

Como devemos chamar nosso grupo unificado?

Tendo descoberto a conexão entre os grupos, eu então procurei por um termo para descrever esse estado de compartilhamento de características comuns.

Num primeiro momento, isso foi desafiador.

Como quase todos os membros de todos os grupos acima possuem cromossomos XX (com a exceção de um pequeno número de pessoas com diferenças no desenvolvimento sexual — creio que menos de 0,005%), e como quase todos nascem com corpos com a capacidade de produzir gametas grandes, eu pensei talvez em nomear o grupo “XXGG”. #XXGG tinha a vantagem de ser mais curto e mais conciso do que um acrônimo que inclua as primeiras letras de cada um dos 10 grupos — #MICPGCPAPUPVPVPMHS simplesmente não é fácil e intuitivo.

Mas um nome de ativismo que se refira apenas a cromossomos e gametas poderia ser inacessível a pessoas vulneráveis tais como aquelas com dificuldades de aprendizado, ou que possuem inglês como segunda língua, ou talvez também fosse difícil para pessoas mais velhas e pessoas com conhecimento limitado de sua própria anatomia cromossômica/interna.

No final das contas eu decidi fazer uma pesquisa histórica para ver se eu conseguiria encontrar qualquer registro do uso de uma terminologia específica para unir pessoas com as características anatômicas diferentes de cada um dos 10 grupos, e fiquei feliz em descobrir que, de fato, um termo específico tem existido desde o surgimento da linguagem humana.

Existem diversas evidências de referências antigas, em muitos textos, que datam pelo menos desde a era Suméria e que continuam desde então, usando um termo abrangente que agrupa menstruadores, possuidores de vagina, pessoas com cérvix, corpos paridores, etc — usando apenas uma única palavra.

Essa palavra é “Mulher”.

Eu não tenho certeza de onde esse termo surgiu, mas parece ter se tornado popular e muito difundido ao longo de muitos séculos, e tem sua própria tradução em cada língua e em cada canto do mundo.

E não é só no passado distante que essa palavra era de uso comum.

Eu me deparei com exemplos recentes — tão recentes quanto os anos 70 — quando uma aliança de menstruadores e pessoas pós-menopausa, corpos grávidos e paridores, cedentes de útero, aleitadores, possuidores de vagina, de vulva e de cérvix e pessoas com útero, por meio da união de forças, foram capazes de organizar campanhas bem-sucedidas e conquistar direito a voto, direito a autonomia corporal, direitos reprodutivos, além de um amplo leque de igualdades, proteções e garantias para todos os membros de seus grupos, sob a bandeira compartilhada da “Libertação das Mulheres”.

Eu sei que pode parecer um passo atrás voltar a usar um termo cujas raízes remontam a um passado tão remoto, e pode se argumentar que fazer isso é um retrocesso e é resistente a mudanças, mas eu discordo.

Eu penso que podemos e deveríamos ouvir e aprender com a história.

Nem tudo que é antigo é ultrapassado e passou de sua data-de-validade, e nem tudo que é novo deveria ser adotado sem questionamentos.

Eu convoco todos os membros dos grupos 1 a 10 para formar uma aliança.

Eu sugiro que nós nos chamemos de Mulheres, e que nós nomeemos nosso movimento Libertação das Mulheres.

Em solidariedade nós somos mais fortes.

Juntas, nossas vozes serão amplificadas.

Juntas, podemos lutar contra a discriminação.

Juntas, podemos eliminar a violência.

Unidas, podemos fazer mudanças.

Divididas, nós desmoronamos.

“Mulheres” do mundo — nós todas somos indivíduos únicos.

Cada uma tem um corpo tão diferente e único quanto sua personalidade.

Algumas de nós são negras, outras brancas; algumas são muçulmanas, judias ou católicas, multiteístas, ateístas… algumas possuem diversidade funcional, algumas estão no padrão. Algumas são ricas, outras pobres. Algumas são lésbicas, outras hetero.

Reconheçamos essas diferenças.

E vamos nos unir numa causa comum, sob a bandeira de nossa especificidade anatômica compartilhada.

Mulheres do mundo. Assumam o controle.


Nota

[1] Optei por traduzir “disability” como “diversidade funcional”.


Tradução do texto Let’s form an alliance! de Bea Jaspert. Você pode ler o original, em inglês, aqui.