dedos apontados aleta valente

Aleta Valente foi sentenciada e está sendo punida por uma multidão. Mas qual é o crime? 


NOTA DA AUTORA

A versão em português deste texto contém pequenas alterações em relação ao original. A tradução foi feita pela própria autora e não altera o sentido de nenhuma forma significativa. O texto original, em inglês, pode ser lido aqui. A autora discute neste outro texto as repercussões do texto original que motivaram as alterações.


Aleta Valente é uma mulher da classe trabalhadora, mãe solo, e que veio da periferia do Rio de Janeiro. Ela também é uma artista visual conhecida por seu trabalho que usa mídias digitais para confrontar estereótipos femininos. Em 11 de setembro, numa festa, ela conta ter sido agredida por uma mulher trans que ela não conhecia e com quem não teve nenhum conflito anterior. Aleta afirma ter sido ameaçada fisicamente e forçada a deixar o espaço, enquanto uma mulher trans não identificada fazia um discurso no local e a plateia aplaudia. 

Um escândalo eterno: o corpo feminino 

Para a artista, que participa de exposições desde 2013, receber ataques online não é novidade. Um de seus trabalhos recentes, a conta @ex_miss_febem_  no Instagram, é uma coleção de memes, imagens e vídeos provocativos, alguns originais e outros selecionados por ela e repostados. Censura é inscrita em sua arte, que explora a percepção do público sobre o corpo feminino enquanto força os limites do que nos é permitido ver nas mídias sociais. 

A conta foi criada em 2015 e removida pelo Instagram em 2017, após ser denunciada em massa por “violar as Diretrizes da Comunidade”. A @ex_miss_febem tinha então cerca de 12 mil seguidores e o conteúdo era composto por autorretratos como o abaixo, em que a persona criada pela artista celebra a menstruação por significar que ela não está grávida.  

Not pregnant Series (2016), por Aleta Valente. A imagem contém uma mulher de sutiã e calça branca manchada por sangue menstrual, agachada, segurando dois dedos formando um “V”. 

Uma segunda conta criada pela artista, também chamada “ex_miss_febem” ainda está ativa, e mais de 73 mil seguidores participam da obra de arte em andamento, que se transformou em um comentário bem-humorado sobre as vidas das mulheres no Brasil de hoje. 

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Queimada (2015), por Aleta Valente. A imagem contém um meme de uma mulher posando para foto deitada no chão em frente a uma fogueira, com as palavras “Mulher foi queimada pelo tribunal do Facebook” em letras brancas grandes. 

O espetáculo multimídia da destruição da reputação de uma mulher em tempo real 

No domingo (12), um dia após ser expulsa da festa, Aleta postou uma mensagem que destoou do restante do conteúdo da persona ex_miss_febem_, falando diretamente ao público enquanto ela mesma: 

A imagem contém um post do Instagram com o texto “Acusação de transfobia se tornou a nova forma de silenciar e violentar mulheres dentro de espaços da esquerda. Eu não vou ficar calada vcs mexeram com a mulher errada.” 

O post foi inicialmente inundado de acusações repetidas de transfobia, mas quando Aleta perguntou do que especificamente estava sendo acusada, as pessoas nos comentários não conseguiram mostrar nenhuma prova ou explicar o motivo da acusação. E apesar da identidade da mulher trans que teria atacado Aleta ter sido preservada, o próprio post foi considerado incitação à transfobia por alguns, que afirmaram não existir uma violência sistemática contra mulheres por parte de ativistas trans. No entanto, muitas outras mulheres usaram o espaço dos comentários para compartilhar histórias similares de terem sido intimidadas e falsamente acusadas de transfobia. 

Na sexta-feira (17), Aleta escreveu um post mais longo explicando o motivo de ter rompido o silêncio sobre o que ela caracteriza como uma forma de misoginia (que pode ser lido ao final desse artigo): 

Na postagem, ela fala sobre sua trajetória para repudiar algumas das acusações, como a de que ela seria uma pessoa privilegiada, branca e rica e portanto uma opressora. Em seu relato, ela revela ser filha de uma mulher negra e um homem nordestino. 

“Sempre fui comprometida com a realidade material das mulheres e quem conhece meu trabalho artístico sabe disso”, ela diz.

“Nunca me engajei em discurso de ódio, nunca me coloquei contra grupos oprimidos e defendo a dignidade de todas as pessoas. O que está acontecendo é o silenciamento de mulheres que priorizam as suas vivências em uma sociedade patriarcal. Análise concreta de situações concretas. Falar do que mulheres vivem, falar de direitos reprodutivos, de maternidade compulsória, de trabalho doméstico, de feminicídio, não deveria ser considerado discurso de ódio. Ódio é o que o patriarcado endereça às mulheres, sobretudo aquelas que se rebelam e que se levantam para deixarem de ser sua engrenagem”.

Aleta também diz estar recebendo ameaças de morte e que sua família e amigos estão sendo ameaçados e assediados. Ainda que a maioria dos comentários mais agressivos tenha sido apagada, ainda é possível ver algumas pessoas argumentando que esse tipo de discurso seria “transfobia disfarçada de feminismo”.  

Aleta contou ao 4W que mesmo tendo recebido muito apoio público de mulheres, “dentro da cena de arte, ninguém quer falar. As pessoas estão com medo. Faz menos de um ano que estou conseguindo pagar as contas com meu trabalho, e agora estou perdendo tudo”. A Galeria que está expondo o trabalho de Aleta publicou um posicionamento que condena “transfobia” e também “repudia qualquer forma de violência, incluindo ameaças, fake news, qualquer tipo de linchamento e mobbing”. A declaração não menciona especificamente os eventos e nem nomeia Aleta, o que causou críticas por parte de pessoas nos comentários, que afirmam que a galeria não fez nada para denunciar a violência que aconteceu de fato. E, de acordo com elas, o texto faz parecer que as vítimas de ameaças foram pessoas trans. Outras pessoas nos comentários estão pressionando a galeria para tirar Aleta da exposição e colocar pessoas trans no lugar. 

“Eu fui contratada pra fazer esse tipo de trabalho, todo mundo sabia da minha posição”, ela comenta. “Eu fiz um ‘mural do aborto’. Tem um vídeo de uma endoscopia do meu útero que eu chamo de ‘Cam Girl’, tá tudo lá. Eu tava com bastante medo dessa exposição, achei que fosse apanhar por causa disso. Não me pegaram lá, e meu trabalho vendeu praticamente todo”, ela relembra, falando também que seu post está sendo comparado com “racismo reverso” e que se sente revitimizada pelas pessoas indo questionar o que ela teria feito para causar o ataque. “Isso não é um movimento por direitos humanos, as táticas deles são proto-fascistas. Estão indo atrás de todo mundo que curtiu o post, tem uma lista circulando e as pessoas tão sendo coagidas a tirarem o like”. Aleta comenta também que não sabe ainda como isso vai afetar sua carreira e seu sustento. Ela teve que sair da casa no Rio onde mora com a filha, temendo pela segurança das duas. 


Leia a declaração da Aleta abaixo (editada para reduzir o tamanho, o post original ainda está disponível no link) 

Venho aqui então para me posicionar sobre o que aconteceu e qual o motivo do meu post de domingo. Sábado fui expulsa de uma festa. Estava já horas no espaço, curtindo, dançando e inclusive pondo a música pelo celular, cercada de pessoas que me conhecem (que não sei mais se posso chamar de amigos salvaguardando um ou dois), quando uma mulher trans veio na minha direção me chamando de transfóbica, me intimidando para que eu saísse do espaço. A questão é: não houve conflito prévio, nunca vi essa pessoa antes, não troquei palavra, muito menos a destratei. Fui atacada e obrigada a me retirar do espaço sob ameaça à minha integridade física. Fui embora gritando e dizendo que o nome disso é misoginia aka ódio ao sexo feminino, esse que já conhecemos há milênios. O mesmo ódio que queimou mulheres em fogueiras, e que segue queimando. 

Quando eu saí, a pessoa continuou lá dentro fazendo uma fala que foi seguida por uma chuva de palmas. Do lado de fora, algumas pessoas ainda vieram me chamar de trabsfóbica enquanto eu pedia argumentos ouvia apenas o eco responder ‘transfobicaaaah’. 

Meu post foi feito em um momento de desespero, para muita gente sem contexto, no entanto, foi o necessário para receber a chuva de mensagens de mulheres que estão vivendo situações parecidas. Nomear uma violência não pode ser desonestamente reinterpretado como perpetuação de violência, para quem engajou nisso fica aqui o meu desprezo. Inclusive ficar usando levianamente acusações vai sim, de alguma forma, atingir quem faz parte de um movimento de minorias que lutam por direitos, mas essa culpa não é minha. 

Estou colecionado ameaças de morte: de ser queimada viva, de ser degolada, de ser cortada por gilete, de me juntarem pra arrancar minha língua. Todos vão responder legalmente por seus atos. Já do meu suposto crime, onde estão as provas? Dessa vez a violência escalou de tal forma que estão caçando pessoas próximas a mim, pessoas que eu amo, por terem se posicionado ao meu lado. Tem listas de pessoas que me apoiam publicamente, tenho recebido muito apoio de pessoas que não se manifestaram por medo de perder a reputação e com isso fonte de renda e saúde mental. Não me interessa participar de uma cena artística que se cala diante disso e que, pior, endossa tal violência. Um debate se faz necessário. Sei que muitas mulheres estão caladas por medo e se as mulheres voltaram a sussurrar seus pensamentos tem algo bem errado acontecendo. 

Aleta Valente (aka ex_miss_febem) 

16 de setembro de 2021