A 14 de setembro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma lei que prevê a concessão de um auxílio aluguel a mulheres em situação de vulnerabilidade social e econômica que foram vítimas de violência doméstica masculina. O auxílio fará parte das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha.

A Lei Maria da Penha (LMP) foi criada há 17 anos e é também conhecida por alguns como a “terceira melhor lei do mundo”. O nome da LMP é uma homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes, enfermeira que foi agredida pelo ex-marido durante seis anos. Além das agressões, o ex-marido tentou assassinar Maria da Penha duas vezes.

Antes dessa lei, mulheres vítimas de violência doméstica masculina eram “amparadas pela Lei nº 9.099/95, que regula os crimes de menor potencial ofensivo (1)… quase sempre, a pena do agressor era convertida em prestação de serviço à comunidade.” A Lei nº 11.340 (Lei Maria da Penha) alterou o Código Penal, possibilitando que agressores sejam não apenas presos em flagrante ou tenham a prisão preventiva decretada, mas também os agressores “não poderão mais ser punidos com penas alternativas.”

  1. https://claudiaseixas.adv.br/1396-2/

Mas apesar de leis de proteção a mulheres e meninas, os casos de violência masculina contra mulheres – incluindo violência doméstica, abuso sexual, feminicídios – continuam extremamente altos e impunes no mundo todo. No Brasil, segundo o boletim ‘Elas Vivem’, publicado em março de 2023 (2), uma mulher é vítima de violência a cada quatro horas em média.

  1. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-03/no-brasil-uma-mulher-e-vitima-de-violencia-cada-quatro-horas

O Brasil ainda luta para seguir o exemplo da Argentina, país vizinho e membro do Mercosul, que legalizou o direito ao aborto em 2021. O Supremo Tribunal Federal começará a julgar no dia 22 de setembro de 2023 a ação que pede pela “ampla descriminalização do aborto realizado até 12 semanas de gestação (3)”. O ex-presidente Jair Bolsonaro foi um dos 13 autores de um projeto de lei, em 2013, que propôs a revogação da lei que trata do atendimento obrigatório a mulheres vítimas de violência sexual (4), incluindo a administração da “pílula do dia seguinte”, que consideravam como “abortiva” e, portanto, uma tentativa de liberar o aborto no Brasil.

  1. https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw08lle7zkzo
  2. https://www.chicaspoderosas.org/checagens/verificamos-bolsonaro-projeto-que-muda-atendimento-vitimas-de-violencia-sexual/

A Lei de Alienação Parental, que tem sido usada principalmente para retirar a guarda dos filhos a mães que denunciaram abuso de seus companheiros, ainda não foi revogada (5), apesar do sucesso da Ideia Legislativa criada em 2021, que atingiu 20 mil apoios, foi aprovada pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) e transformada em Projeto de Lei em abril de 2023.

  1. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/04/26/comissao-acata-sugestao-que-pede-a-revogacao-da-lei-de-alienacao-parental

Esses dados mostram que a violência masculina contra as mulheres é um dos maiores problemas da atualidade, de dimensão global, e um dos mais difíceis de combater em sistemas sociais dominados por homens, também conhecidos por sistemas patriarcais. A violência masculina contra mulheres – cometida pelo sexo masculino contra o sexo feminino – é estrutural e institucionalizada. Portanto, qualquer legislação que combata a violência do sexo masculina, perpetrada contra o sexo feminino, deve ser universal e acessível a todas as mulheres e meninas. E medidas de proteção a mulheres e meninas têm de incluir todas as pessoas do sexo feminino, sem distinção de idade, orientação sexual, muito menos deixando de lado aquelas que estão mais vulneráveis social ou economicamente.

E no entanto, debate-se nos fóruns públicos online se essas leis de proteção a mulheres podem/devem ser aplicáveis àquelas que questionam se são mulheres. 

A resposta curta é: sim. A lei as protege. A resposta longa é: quem nasceu no sexo feminino tem de estar incluída em qualquer lei criada para proteger mulheres da violência masculina, e leis criadas para proteger mulheres da violência masculina têm de ser baseadas no sexo, e não em uma “autodeclarada identidade de gênero” com o sexo oposto.

De fato, uma decisão judicial de agosto de 2023 confirmou que mulheres que questionam seu sexo e adotam uma “identidade de gênero masculina” (6) têm direito de ser protegidas pela Lei Maria da Penha. O juiz Frederico Maciel discordou de decisão anterior do MPDFT (que argumentou não ser possível aplicar medidas protetiva da Maria da Penha a mulheres que possuam “identidade social como homens”) justificando que essas mulheres podem ser “lidas e tratadas socialmente, no âmbito familiar e doméstico, como mulher”, apesar de se declararem homens.

  1. https://www.metropoles.com/colunas/grande-angular/homem-trans-tem-direito-a-medidas-protetivas-da-lei-maria-da-penha

A questão da violência intra-masculina – violência perpetrada pelo sexo masculino contra membros do sexo masculino – deve ser igualmente analisada dentro da perspectiva de sexo e não de uma autodeclarada “identidade com o gênero feminino”. Quando leis de proteção a mulheres se baseiam em uma “identidade de gênero” e essas leis passam a incluir como “mulheres” os indivíduos do sexo masculino que se autodeclaram como “mulheres” ou questionam seu sexo masculino – inclusive os que se declaram travestis, transexuais, não binários – elas inevitavelmente geram a exclusão – ainda que involuntária – de mulheres e meninas que questionam seu sexo e que se autodeclaram “trans/não binárias/homens.”

Proteger indivíduos do sexo masculino contra a violência masculina que venham a sofrer é um dever. Vítimas do sexo masculino que questionam seu sexo e sofreram violência física/ sexual/psicológica – violências cometidas na maior parte por agressores do sexo masculino  –  merecem, inclusive, ter a sua própria lei. Uma lei criada para proteger essa população resolveria a questão da exclusão de membros da classe sexual feminina de leis criadas para as membros da classe sexual feminina por questionarem seu sexo feminino. 

Excluir quaisquer pessoas nascidas no sexo feminino de leis como a Maria da Penha com o argumento de que elas “não se identificam como mulheres” é misoginia. Misoginia é ódio contra as mulheres – mais especificamente, a misoginia é ódio que muitos indivíduos do sexo masculino demonstram contra o sexo feminino – muitas vezes, isso inclui ódio masculino à anatomia feminina: útero, vulva, vagina. Não à toa, neste exato momento, um projeto de lei para criminalizar a misoginia foi aprovado em 6 de setembro de 2023 na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher. A proposta aprovada define misoginia (7) como “discriminação, preconceito, propagação do ódio ou aversão praticados contra mulheres por razões da condição de sexo feminino”.

https://www.camara.leg.br/noticias/995312-comissao-de-defesa-da-mulher-aprova-projeto-que-criminaliza-misoginia/

É preciso considerar que quaisquer membros da classe sexual feminina – mesmo quem nasce com anatomia feminina mas questiona ser do sexo feminino – pode precisar da pílula do dia seguinte após estupro, ou de absorventes menstruais por ter nascido com um útero. Pode precisar de atendimento pré-natal em uma gravidez. Por estar vivendo uma gravidez indesejada. Pode precisar de exame de papanicolau, diagnóstico de ovários policísticos, endometriose, miomas uterinos. Nascer com anatomia feminina mas se identificar com o sexo masculino não elimina as questões femininas aqui citadas, porque seres humanos não mudam de sexo, e portanto uma “identidade de gênero” com o sexo masculino – ou com os dois sexos/com nenhum sexo – não elimina vulnerabilidade feminina em relação à violência perpetrada pelo sexo masculino. Leis de proteção ao sexo feminino devem valer para todas, sem exceção.

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