Apresentação do painel “Como destroçar um movimento: Substituindo o político pelo pessoal” na conferência “Um momento revolucionário: Libertação das mulheres no final de 1960 e no início de 1970” organizado por Women´s, Gender & Sexuality Studies Program da Universidade de Boston, Março 27- 29, 2014


Eu falo hoje desde a perspectiva de uma ativista feminista e também de uma acadêmica cientista e professora. Minha posição é que como feministas deveríamos focar no SEXO e não no GÊNERO. O Women´s Liberation tem o seu objetivo claro: O nome do nosso movimento identifica o poder masculino como o maior impedimento para a libertação das mulheres. O poder masculino limita todas as mulheres — brancas, negras, lésbicas, ricas e pobres, mulheres de países imperialistas bem como mulheres que sofrem com o neocolonialismo.

O interesse imparcial no termo ”gêneros” (seja lá em quantos gêneros você acredite, eu entendo que o facebook agora reconhece 56) sugere que não há nada de especial na posição que as mulheres ocupam na sociedade. Gênero é um passo atrás em direção a velha serra que oprime igualmente a todos. E isso é uma mentira.

O modo como expectativas culturais baseadas no sexo impregnam tudo o que fazemos e todos os lugares onde vamos têm sido examinado em grande detalhe. Uma mulher chamada Bai Di disse recentemente em uma conferencia organizada pela Redstockings como as expectativas baseadas no sexo se opuseram na China revolucionaria. Ela testemunhou que cresceu sem saber que era uma criança do sexo feminino porque na época as diferenças entre meninas e meninos eram mínimas. Elas eram apenas crianças brincando com uma variedade de brinquedos e participando de uma variedade de atividades. Promovendo a ideia de que o comportamento humano é um continuo que não se correlaciona com sexo, tornando sem sentido o conceito de múltiplos gêneros.

Gênero é derivado de, e depende do sexo. Forcar no gênero tende a elevar e revigorar as diferenças físicas entre os sexos e minimizar nossa humanidade comum. Outra maneira de definir gênero é, ele é o sexo com o qual você é percebido pelos outros. Avanços tecnológicos e novos entendimentos em biologia reprodutiva parecem ter causado uma certa confusão sobre a definição de sexo.

Sexo é definido por nossos cromossomos? Se é assim, como pode um bebe XX nascer com esses genitais que parecem masculinos?

Genital de bebê cromossomicamente XX com hiperplasia adrenal congênita

Ou cromossomos não são suficientes para definir o sexo, ou genitais não definem o sexo. De fato, nenhuma dessas características define sexo. Sexo, em termos biológicos, é definido pelos gametas (óvulos ou espermatozoides) produzidos por órgãos conhecidos coletivamente como gônadas (ovários ou testículos).

Mas sexo não está completamente definido pelas gônadas que você possui. Existem pessoas que são cromossomicamente XY e têm testículos não descendidos, localizados em seus abdomens. Os testículos são funcionais na medida em que secretam testosterona, mas eles não produzem espermatozoides. Corpos humanos são capazes de metabolizar testosterona em estrogênio, então essas pessoas têm todas as características físicas externas de uma mulher.

Indivíduos cromossomicamente XY com Síndrome de insensibilidade a andrógenos

Claramente, sexo não se correlaciona tampouco com hormônios. Sexo biológico é sobre a reprodução da espécie: óvulos e espermatozoides encontrando-se para iniciar o crescimento de um novo indivíduo. Então esses gametas são como biólogos definem sexo. Eu sei que está na moda criticar o binarismo, mas eu sinto muito, nós só temos óvulos e espermatozoides quando se trata de sexo. Existem apenas dois tipos de gametas e não existem formas intermediarias.

Gametas feminino e masculino: óvulo e espermatozóides

Gônadas e gametas não se misturam no mundo natural porque os gametas dependem das gônadas para sua maturação. Então não existem exemplos de seres humanos nascidos com um ovário que produzam espermatozoides ou vice versa. Existem condições conhecidas, por exemplo, como as que foram discutidas anteriormente, onde pessoas não produzem nenhum dos gametas. E uma pequena porcentagem de seres humanos nascem, ou com uma mistura de ovário e testículos, ou com nenhuma gônada ou com uma de cada. Entretanto, eu não conheço nenhum caso em que seres humanos produzam ambos, óvulos funcionais E espermatozoides funcionais.

Gônadas e gametas são o que os biólogos chamam de características sexuais primárias. A maioria das fêmeas humanas também possuem úteros e vaginas, nós somos as que menstruamos e gestamos. Gênero pode ser visto como o conjunto de sinais sociais para estar entre a classe de humanos cujos corpos geram descendentes ou, alternativamente, para ser parte da classe de humanos que possui um papel muito mais acotado na reprodução da espécie — o papel do provedor de esperma. Gravidez, trabalho de parto e criação demandam esforço físico e distanciam as mulheres, ao menos temporariamente, das forças produtivas convencionais da economia. Eu acredito que a subordinação das mulheres está enraizada na exploração desses diferentes trabalhos reprodutivos. Como resultado, o movimento de libertação das mulheres deveria focar no sexo.

Sarah Richardson tem um lindo diagrama em seu novo livro “Sex Itself” que agrupa toda essa discussão sobre cromossomos, gônadas, hormônios e como o sexo de cada um é percebido.

Diagrama do livro “Sex Itself” da Sarah Richardson (imagem retirada do vídeo da apresentação de Kathy Scarbrough, link no final do texto).

O que eu particularmente gosto nessa figura é como Richardson enfatiza nossos pontos comuns ao mostrar que ambos, mulher e homem, produzem os dois hormônios, estrogênios e androgênios. De fato, as diferenças entre as secreções hormonais de homens e mulheres sempre foram enfatizadas demais na nossa cultura.

O excesso de ênfase em nossas diferenças leva a desagradáveis piadas (e culpas secretas) sobre os atributos físicos de mulheres mais velhas, porque quando a secreção de estrogênio pelos ovários diminui significativamente depois da menopausa, os efeitos de nossos estrogênios naturais se tornam mais óbvios. Muitas mulheres agonizam com barbas brotando do queixo ou com o escurecimento dos pelos sobre o lábio superior. Nós arrancamos e pintamos e raspamos frequentemente sem questionar a noção de que esses pelos são, de alguma maneira, não femininos. Ou nós os arrancamos e pintamos e raspamos com plena consciência de que o fazemos para lidar como indivíduos numa sociedade sexista. De fato, essas mudanças relacionadas com a idade são “não femininas” porque a feminilidade por si só é uma ficção! Essas mudanças podem ser não femininas mas elas SÃO de mulher.

Ambos, homem e mulher, secretam estrogênios e androgênios — nós somos mais semelhantes que diferentes. E aqui vai um complementário exemplo de que isso é certo: foi descoberto recentemente que a fertilidade masculina depende da resposta de ambos hormônios. Sem estrogênio, homens são estéreis, novamente destacando nossa humanidade comum.

Hoje, nossa “auto identificação” como homem ou mulher não precisa corresponder a nossos cromossomos, órgãos sexuais ou mesmo se produzimos óvulos ou espermatozóides. Gênero, nossa noção de homem e mulher, é detectado pela existência do que os biólogos chamam de características sexuais secundarias: aquelas características anatômicas que tipicamente aparecem na puberdade.

Olhando para uma pessoa você não pode dizer se ela tem testículo ou ovário mas você pode imediatamente ver se ela tem seios ou barba. As características sexuais secundárias são controladas pelos estrogênios e androgênios, os hormônios secretados principalmente pelas gônadas. Como vimos, mulheres e homens respondem aos dois tipos de hormônios. Por tanto, a moda atual do uso de hormônios esteróides — apesar de prejudicial para a saúde — pode introduzir alguma ambiguidade de gênero. Esses poderosos hormônios podem ser usados para alterar o gênero de alguém, mas não o sexo. Esses hormônios não podem mudar o fato de você ter crescido com um ovário contendo óvulos ou com testículos.

Estrogênios e andrógenos também marcam o cérebro. Eles iniciam ciclos menstruais nas mulheres e estimulam o desejo sexual em ambos sexos. Um número crescente de pessoas afirma que o sexo de seus cérebros e seus corpos são incompatíveis. Como neurocientista, eu sei um bocado sobre diferenciação sexual cerebral, e eu tenho que dizer que ela não vai muito longe — em sua maior parte, cérebros femininos e masculinos são bastante similares.

Vários livros recentes têm criticado pesquisas tendenciosas que levam muitos a concluir que nós humanos nascemos com “cérebros rosados” ou “cérebros azuis”, mas a ideia de sexo cerebral persiste.

Ejemplos de livros críticos de gênero recentes

Cérebros humanos são praticamente iguais, mas existe uma diferença funcional entre cérebros femininos e masculinos, relacionada à perpetuação da espécie. Uma minúscula parte evolutivamente antiga e não consciente do cérebro feminino cria um ritmo reprodutivo, enquanto a parte correspondente do cérebro masculino não. A mais importante diferença fisiológica entre os sexos é uma rede de alguns neurônios que produzem ciclos reprodutivos. Essa minúscula parte do cérebro conhecida como hipotálamo participa do ciclo menstrual.

Nas mulheres, o hipotálamo desencadeia níveis sanguíneos elevados de um hormônio da glândula pituitária, chamado hormônio luteinizante, uma vez por mês. Estes níveis elevados de hormônio estimulam a ovulação em curto prazo. Os eventos fisiológicos que sucedem a ovulação preparam o útero para a gravidez. Homens não podem menstruar porque não possuem um útero e também porque, fundamentalmente, seus cérebros não dirigem a glândula pituitária para liberar hormônios em ciclos mensais. Homens secretam os mesmo hormônios pituitários em concentrações muito similares, mas o padrão de secreção é constante, não cíclico. Novamente, enfatizando nossa humanidade comum, mencionarei que o hormônio luteinizante é essencial para a reprodução masculina também, especificamente para a secreção de testosterona e a produção de esperma.

Homens adultos não conseguem fazer com que seu hipotálamo crie um ritmo reprodutivo tomando estrogênio. Os cientistas diferenciam os efeitos dos hormônios para “organizar” a função cerebral durante o desenvolvimento fetal e para “ativar” a função cerebral durante a adolescência e vida adulta. Partes do hipotálamo são “organizadas” pelo ambiente hormonal durante o desenvolvimento fetal. Eu não quero deixá-los com a impressão de que apenas os hormônios das gônadas têm efeitos organizadores sobre os cérebro dos fetos. Outros hormônios, como o hormônio da tiróide, também ajuda a “organizar” o cérebro. Mas os efeitos dos hormônios da tiróide não produzem diferenças sexuais.

Se alguém quiser me convencer que suas gônadas e o “sexo” do seu cérebro não coincidem, terá que demonstrar uma incompatibilidade entre uma secreção hormonal cíclica e seu sexo. Então uma pessoa que desenvolveu testículos enquanto feto teria que demonstrar que seu cérebro possui a habilidade de secretar luteinizante com um padrão cíclico. De fato, existem testes “caseiros” que são sensíveis o bastante para detectar esta possibilidade. Testes que podem ser comprados em farmácia para detectar a ovulação são capazes de medir os metabolitos do hormônio luteinizante excretados na urina — então é possível que indivíduos obtenham essa evidencia.

Como feminista e neurocientista treinada, não acredito em uma “identidade de gênero” endógena. Muitas defensoras da libertação das mulheres (women’s liberationists) se aferram ao ideal de tratar seres humanos como indivíduos com interesses e habilidades que não necessariamente estejam correlacionadas com seus órgãos sexuais. Gênero é socialmente construído, e forças sociais também podem confundir a auto identidade, particularmente em casos onde pessoas não encaixam nas normas culturais. Muitas pessoas não se encaixam em comportamentos convencionados como “de menina” ou “ de menino”. Por que não simplesmente concluir que as categorias culturalmente definidas — de “feminino” e “masculino” — são o problema?

Ações coletivas são necessárias para lutar contra as noções de feminino e masculino, socialmente construídas, é difícil e talvez impossível ganhar esta batalha como indivíduo. Certos indivíduos podem tomar a decisão pessoal de que não podem aguardar até que novos tempos cheguem. Mas vamos ser claros — a decisão de mudar seu próprio gênero é pessoal. Eu não vejo isso como um ato político. A decisão pessoal de mudar a própria aparência para reduzir o atrito com a vida não ajuda em nossa luta contra as diferenças de poder entre homens e mulheres. De fato, pode-se argumentar que a transgeneridade abraça, suporta e se adere às posições atuais da mulher e do homem na sociedade, ao mesmo tempo que proporciona a alguns indivíduos o alívio da condenação de não atender às expectativas convencionais de gênero. Isso não quer dizer que não existam outras forças poderosas que apoiam as noções de gênero (por exemplo, a “moda”) e que prejudiquem as mulheres. Esmagar o gênero seria um avanço para todos.


Kathy Scarbrough é Ph.D em fisiologia com foco em neuroendocrinologia reprodutiva feminina.

Texto original em inlês: https://www.bu.edu/wgs/files/2013/10/Scarbrough-Womens-Liberation-is-Based-on-Sex-not-Gender.pdf

Vídeo da apresentação de Kathy Scarbrough: https://www.youtube.com/watch?v=Wfwco3OvjQw