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Entrevista: Kimberle Crenshaw fala sobre Interseccionalidade

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O termo “interseccionalidade” tem sido submetido à extrema má interpretação. Ao contrário das recentes e errôneas reflexões de críticos como Andrew Sullivan, da New York Magazine, a interseccionalidade não é um culto, uma nova mania acadêmica, ou mesmo uma distração dos chamados “problemas reais”. O termo foi cunhado pela professora Kimberlé Williams Crenshaw como uma ferramenta de insight: uma lanterna, não uma distração.

Usado por Crenshaw para descrever as opressões cruzadas de mulheres afro-americanas, a interseccionalidade apareceu pela primeira vez em um documento legal há mais de 25 anos. Agora, o termo é tão contencioso quanto onipresente.

Nesta entrevista, Crenshaw oferece uma cartilha. Uma sólida compreensão das condições sociais reais existentes entre raça, gênero e classe não é apenas importante porque preenche importantes lacunas e erros de leitura (dos resultados da última eleição, por exemplo), mas também porque nos dá o conhecimento de que precisamos se queremos unir pessoas e movimentos e evitar repetir a nossa história de dividir-e-conquistar.

Descubra nesta entrevista onde estava Crenshaw na Marcha das Mulheres em Washington, em janeiro, o que ela faz do debate sobre o termo, e por que ela acha que estamos em um momento SOS de “justiça social”.

Crenshaw é professora titular de Direito na Faculdade de Direito da Columbia e da UCLA e cofundadora e diretora executiva do African American Policy Forum (Fórum de Políticas Afro-Americanas).


Laura Flanders: Só para começar, você foi descrita no New York Times, em um artigo de Amanda Hess, como “a principal pensadora em torno dessa questão da interseccionalidade, que é o conceito predominante que afeta nossa compreensão de raça, gênero, justiça social e construção de movimento.”. Isso deve ter sido muito bom, não foi?

Kimberlé Crenshaw: Bem… é incrível que a palavra interseccionalidade esteja na boca de todos. Ao mesmo tempo, a maneira como as pessoas estão usando a interseccionalidade é, na melhor das hipóteses, variada.

LF: Dê-nos alguns exemplos.

KC: Bem, há algumas visões de interseccionalidade que apenas a retratam como “É complicado, é interseccional”, então basicamente não há explicação para o que é e, frequentemente, esse é o fim da conversa.
Acho que a segunda coisa que vi é a ideia de que a interseccionalidade é basicamente política de identidade com esteróides. Primeiro, você tem a negatividade associada à abordagem da política de identidade, sendo reduzida a um termo, “política de identidade”, que agora funciona como “politicamente correto”. É o que você não quer que seja. Então você coloca a interseccionalidade nela, e aí você tira tudo o que é ruim da política de identidade e depois complica com um fator de mil. Essas realmente não são as formas mais produtivas de pensar sobre a interseccionalidade nesse momento.

LF: Não diga! O que você achou da maneira como a Marcha [das Mulheres] de Washington lidou com algumas dessas questões?

KC: Foi novamente outro momento complicado, porque, por um lado, era importante que a marcha feminina mostrasse as conexões entre as questões enfrentadas pelas mulheres enquanto grupo e aquelas que as mulheres experimentam de forma específica, mas não são vistas tradicionalmente como uma questão das mulheres. Assim como a imigração, por exemplo, não é tradicionalmente vista como uma “questão das mulheres”, mas as mulheres imigrantes que não têm documentos têm toda uma gama de riscos e vulnerabilidades associados a ser uma mulher não-documentada.

Era importante ser capaz de resolver esses tipos de problemas em um momento em que o quadro era sobre as mulheres. Achei isso ótimo. Depois, há outros momentos em que penso que as pessoas pensavam que a interseccionalidade era apenas sobre quem está em pé lá em cima. Não necessariamente o que elas estão dizendo. Você pode ser uma mulher racializada ou pode ser uma mulher queer e não necessariamente ter uma análise interseccional…. Você pode ser uma mulher branca ou um homem racializado e ter uma análise interseccional. É uma das razões pelas quais mantenho distância da ideia de que você pode dizer se um movimento ou uma organização é interseccional apenas com base em quem está liderando. Isso nem sempre é o caso.

LF: É uma grande questão, mas se você estivesse organizando uma marcha amanhã, como você a ajustaria? O que você faria?

KC: Uma das coisas que eu faria, ao analisar as diferentes questões, é pensar em como a interseccionalidade molda o problema, e não “com quem vamos falar sobre isso?”. Uma das campanhas em que estou envolvida é a campanha #SayHerName (“Diga o nome dela”). Temos tentado chamar a atenção para mulheres negras que foram vítimas de violência policial. O “Say Her Name” apareceu na marcha, mas não de uma maneira particularmente ampla que se poderia esperar.

As “Mães do Movimento” estavam lá. Isso foi importante para garantir que entendemos que a violência do Estado é significativa para as mulheres. Isso foi importante. Mas as mães das mulheres que foram mortas pela polícia estavam marchando com a gente e elas não estavam realmente falando ou destacadas. O que nós fazemos com isso? Primeiro, era importante mostrar todas as maneiras pelas quais as mulheres são impactadas pela violência do Estado. Isso foi um passo. Um outro passo é pensar em “Como a violência do Estado afeta as mulheres que são vítimas da violência estatal?”. Basicamente, é só abrir a visão para que não tenhamos buracos em como a questão é apresentada.

LF: Você acabou de lançar um relatório que é uma transcrição de um seminário online extraordinário que você realizou nos dias após a eleição (de Trump), no qual reuniu 16 especialistas em justiça social. Chama-se “Justiça Social SOS”. Incentivo todos a darem uma olhada. A aprendizagem que o seu seminário proporcionou a todas nós foi em torno de todos esses problemas.

KC: Se nós tivéssemos “interseccionalizado” melhor, teríamos entendido como os votos aconteceram. Teríamos entendido como as questões estavam ressoando ou não na mídia. Teríamos podido antecipar os votos das mulheres brancas, por exemplo, porque tem mais a ver com o patriarcado do que com a mulheridade daquelas eleitoras…. O relatório basicamente levanta alguns dos momentos mais significativos da conversa, mas também acho que ao ler o relatório, você obtém um modelo de como é pensar esse momento em termos de uma estrutura interseccional.

LF: A classe é uma parte disso, por exemplo?

KC: Agora, o quadro mais comum que se ouve nesta eleição foi sobre classe, não sobre raça. Esta eleição foi sobre as perdas sofridas pela classe trabalhadora. Bem, é claro, se a classe fosse o mesmo conjunto de experiências em todos os diferentes grupos, você não teria essa divisão entre homens brancos e mulheres negras. Quando estamos falando de classe, há uma divisão de classes ali. Obviamente, o que está acontecendo é que as pessoas estão enquadrando a classe em um quadro biográfico singular. Basicamente, homens brancos. Eles não estão levando em conta, de fato, que mesmo os efeitos que as pessoas estão dizendo que contribuíram para isso são muito mais significativos na vida das mulheres negras e na vida das pessoas racializadas — perda de segurança econômica, todas as coisas que as pessoas dizem que contribuiu para isso — na verdade estavam acontecendo entre as pessoas que votaram mais contra Trump.

LF: Por que as mulheres negras votam da maneira que fazem?

KC: Essa é uma questão de classe. É uma questão de raça. É uma questão de gênero. Há uma consciência da vulnerabilidade que vem não apenas de uma expectativa perdida. Isso é algo que Tim Wise falou. Não é só perda. É uma perda num cenário de expectativa. Ele falou sobre o nacionalismo branco ter criado um conjunto de expectativas [para os brancos] sobre “o que deveria acontecer comigo e o que não deveria acontecer comigo”.

Quando certas coisas que vão contra essa semente começam a acontecer, Luke Harris chama isso de super-representação diminuída. Você acha que deveria ter 10%. Acontece que você só tinha 90%. Isso leva ao ressentimento, à raiva, à justa indignação. Você tem outras pessoas como as mulheres negras, para quem a expectativa é sempre voltada para o futuro. É sempre: “Como minha vida vai melhorar?”, não é “Isso não deveria acontecer comigo”. Eu acho que elas acabaram de entrar com um conjunto muito diferente de expectativas que, então, ocorreram de maneira diferente nas urnas. Esse é o tipo de coisa que uma análise interseccional traz para a mesa.

LF: Projete-se no futuro, 50 anos. Como você acha que a história deste momento será escrita?

KC: Eu vejo duas possibilidades. A primeira possibilidade é a maneira como pensamos sobre a eleição de 1876. A eleição de 1876 foi a reação contra a Primeira Reconstrução. Foi a eleição que decidiu o futuro dos afro-americanos por sete décadas. Foi a eleição que levou ao abandono dos escravos recém-libertados. Isso levou à destruição dos primeiros esforços para criar um sistema de educação pública. Isso levou à privação de direitos de milhões de afro-americanos. Isso levou ao fato de que o primeiro senador negro que tivemos depois daquele momento só aconteceu na segunda metade do século XX.

Esse é o tipo de coisa que pode acontecer: um completo desemaranhamento da infraestrutura básica dos direitos civis. Poderíamos olhar para trás com essa lente neste momento e dizer: “Não é apenas o fato de que Trump foi eleito”. É também a resposta democrata, a resposta da sociedade civil, a resposta da mídia que diz a si mesma que a razão pela qual isso aconteceu foi porque fomos muito profundamente associados à justiça social. A ideia é que tenhamos que nos voltar à direita para retomar o eleitor branco. Pode ser uma história como essa. Eu não quero que essa seja a história, certo? Quer dizer, vamos tentar contar esta história: Foi finalmente reconhecido que a nossa incapacidade de falar diretamente e persuasivamente sobre as expectativas que foram geradas por uma história de supremacia branca, de dominação de classe, de patriarcado, nos levou a um momento em que nós fomos facilmente divididos. Sabemos que não podemos fazer isso de novo.

Qualquer coisa que pareça estar voltando para a direção de onde viemos não é obviamente a coisa a fazer agora. Apenas: 1) não mais aquela coisa; 2) agora sabemos que precisamos ter maneiras melhores de falar através dos movimentos. Precisamos de melhores formas de construir infraestruturas de movimento que realmente perguntem: como nos conectamos?

Eu quero dizer que em 50 anos, esse foi o alarme para acordar, esse foi o momento em que reconhecemos que na verdade nós temos um eleitorado maior do que pensamos. Agora só precisamos descobrir como ser muito mais estratégicos e visionários sobre a mobilização desses recursos, mobilizando essa energia, e precisamos ter expertise para nos ajudar a fazer os trabalhos que precisamos fazer para construir as conexões necessárias. Não é só uma palavra.

LF: Tem havido tantas armadilhas que caímos como um povo ao longo dos séculos. Uma delas tem sido o “dividir e conquistar”. Se, por exemplo, Donald Trump decidir que os homens brancos precisam de um programa como o “My Brother’s Keeper” apenas para homens brancos, o que fazemos? E aquelas mulheres brancas que dirão: “Sim, essa é uma boa maneira de usar o financiamento público”?

KC: Sim, absolutamente. Temos que ter uma linguagem que indique a direção do problema, não a representação ou a pessoa. Esse é realmente o problema com o programa “My Brother’s Keeper” existente. Não é um programa que é baseado em problemas criados pelo sexismo, os problemas criados pela supremacia branca, os problemas criados pelo neoliberalismo, os problemas criados pela retirada de recursos públicos de todas as instituições públicas. Em vez disso, cria essa narrativa que essa pessoa em particular precisa de ajuda.

Nosso fracasso em desafiar isso torna muito mais difícil desafiar as versões do mesmo que podem surgir da administração Trump. Eu acho que ser capaz de ser muito mais alfabetizada no que realmente são as condições sociais de toda a raça, através da classe, com uma consciência das maneiras que raça e classe exacerbam algumas dessas questões, nos dá uma plataforma para dizer: “Quais são as maneiras de se mover nessa direção que realmente recriam essa expectativa de que certos membros da nossa população estão passando por uma crise?” E precisamos nos preocupar com a justiça social. Sabemos que justiça social à conta-gotas não funciona, e no caso de precisarmos de alguns exemplos, aqui eles foram tirados da história.