“Eu não serei livre enquanto houver mulheres que não são, mesmo que suas algemas sejam muito diferentes das minhas” Audre Lorde
Como o feminismo se tornou mais um prisioneiro do capitalismo? Como um movimento que começou como uma crítica à exploração capitalista acabou contribuindo com ideias-chave para sua última fase neoliberal? Como as feministas que criticaram uma sociedade que promoveu o “carreirismo”, agora aconselham as mulheres a “se jogar” “entrar no jogo”. Como um movimento que priorizou a solidariedade social agora celebra as mulheres empresárias? Como uma perspectiva que antes valorizava o “cuidado” e a interdependência entre as mulheres agora encoraja o avanço individual e a meritocracia? Os pensamentos feministas que uma vez fizeram parte de uma visão de mundo radical são cada vez mais expressos em termos individualistas, atomizados, egoicos e narcísicos. O que está por trás dessa mudança é uma mudança radical no caráter do capitalismo, o capitalismo gerenciado pelo estado da era pós-guerra deu lugar a uma nova forma de capitalismo — “desorganizado”, globalizante, neoliberal que invade e coloniza tudo que um dia já foi revolucionário.
O neoliberalismo de hoje é a continuação do antigo de maneira muito pior. O marco normativo global que insere indivíduos e instituições dentro de uma lógica de guerra implacável, reforça-se cada vez mais e acaba progressivamente com a capacidade de resistência, desativando o coletivo, o comum, o “nós”. Esta natureza antidemocrática do sistema neoliberal explica em grande parte a espiral sem fim da crise e o aceleramento diante de nossos olhos do processo de “desdemocratização”, pelo qual a democracia se esvazia de sua substância, sem que se exclua formalmente. Dizendo de outra forma, já não há freio ao exercício do poder neoliberal, por meio do judiciário elitista/classista, a lei se tornou o instrumento privilegiado da luta do neoliberalismo contra a democracia. O Estado de direito não está sendo abolido de fora, mas destruído por dentro para fazer dele uma arma de guerra contra a população e a serviço dos dominantes (Dardot e Laval, 2019)[1]. Vivemos um eterno estado de exceção onde se legitimam a violência, a arbitrariedade e a suspensão dos direitos, em nome da segurança e a serviço da concentração de poder (Agamben, 2004)[2].
Vivemos um momento histórico particular, no qual a própria liberdade provoca coerções. A liberdade do poder produz até mais coerções do que a do dever. O dever tem um limite e o poder não. A liberdade deveria ser contrária a coerção, mas essa mesma liberdade produz coerções e doenças psíquicas (depressão/burnout) que são expressões de uma profunda crise da própria ideia de liberdade. O sujeito do desempenho do capitalismo que se julga livre, é na realidade um servo: um servo em absoluto, pois sem um senhor ele explora a si mesmo voluntariamente. O mundo está tão doente que passamos a não defender, nem praticar direitos que conquistamos com a Consolidação das Leis do Trabaho (CLT) aprovada por decreto de 1° maio de 1943, como a jornada de 8 horas diárias, hoje em dia, as pessoas trabalham mais de dez até doze horas e frequentemente se dizem “felizes” por trabalhar com o que amam. E o perigo é exatamente esse. O neoliberalismo é muito inteligente na hora de explorar a liberdade, tudo que pertence às práticas e às formas de expressão de liberdade como emoção e o jogo da comunicação é explorado. Explorar alguém contra sua própria vontade não é inteligente, torna o rendimento baixo, a exploração da liberdade que produz o maior lucro (Byung-Chul, 2017)[3].
Marx já havia definido a “liberdade” através de uma relação bem-sucedida com o outro. Então, ser livre não significa nada mais do que realizar conjuntamente. Liberdade é sinônimo de comunidade bem-sucedida. A liberdade individual é uma malícia do capitalismo. A liberdade individual é uma servidão na medida em que é tomada pelo capital para sua própria multiplicação. Assim, o capital explora a liberdade do individuo para se reproduzir (Marx, 2013).[4] No regime neoliberal, a exploração impostas por outros em uma autoexploração que atinge todas as classes causa um isolamento do sujeito do desempenho explorador de si mesmo; quem fracassa na lógica neoliberal de desempenho ao invés de questionar o sistema, questiona a si mesmo, a agressão é dirigida a nós mesmos (Por que eu não sou capaz? Por que eu não cheguei lá? Se eu não tenho o carro do ano foi porque não me esforcei), ela termina transformando os explorados não em revolucionários, mas em depressivos, nos encaminhando para uma realidade onde o “nós político” seria incapaz de agir pelo bem comum.
A esse fenômeno de aumento constante e acelerado da produtividade do labor (trabalho) que tomou proporções significativas e acarretou com a alienação das pessoas no mundo moderno, Arendt denominou de “artificial crescimento do natural”. Os atores deixaram de ser interpretados como atores políticos para serem definidos como trabalhadores, constantemente empenhados na manutenção do ciclo vital. A única coisa que resta em comum entre os homens é o interesse em laborar para consumir. Mas essa “igualdade” não aproxima os homens; senão os isola definitivamente, porque as necessidades só́ podem ser sentidas e aliviadas na condição da privatividade, i. e., na percepção individual do próprio processo biológico, que se faz sentir através do prazer obtido pelo consumo. Se todos os objetos passam a ser destinados ao consumo, não há mais a durabilidade de um mundo comum que possa emprestar estabilidade e continuidade também às relações humanas (Arendt, 1958)[5].
O neoliberalismo transforma o cidadão comum em consumidor. A liberdade do cidadão cede diante da passividade do consumidor. O capitalismo do consumo introduz emoções para criar necessidades de estimular a compra. Hoje, não consumimos coisas, mas emoções. Coisas não podem ser consumidas infinitamente, mas emoções sim. Emoções se desdobram para além do seu valor de uso. O consumo excessivo é uma falta de liberdade, uma coerção que corresponde a essa falta de liberdade do trabalho. Atualmente, o eleitor enquanto consumidor não tem interesse nenhum real pela política, pela formação ativa da comunidade. Não está disposto a um agir político, o eleitor apenas reage de forma passiva à política, criticando, reclamando, exatamente como faz o consumidor diante de um produto ou serviço de que não gosta. A participação ocorre através de reclamação ou queixa. Cada vez mais votar e comprar, Estado e mercado, cidadão e consumidor se assemelham.
E fica cada dia mais perceptível que quanto maior o poder, mais silenciosamente ele atua. O poder pode se expressar na violência ou repressão, mas não se baseia só nisso. Não é necessariamente excludente, proibitivo ou censor. E não se opõe à liberdade: pode até mesmo usá-la. O poder de hoje cada vez mais assume sua forma permissiva. Ele põe de lado sua negatividade e passa por liberdade. Muito mais eficiente são as técnicas de poder que faz com que as pessoas se submetam ao contexto de dominação por si mesmas. Em vez de deixar as pessoas obedientes, opera deixando elas dependentes. É mais afirmador que negador, é mais sedutor que repressor. Já não faz parte do nosso tempo a biopolítica de Foucault, a psicopolítica através da exploração da psique que governa a sociedade neoliberal (Byung-Chul, 2017).
Todavia, Wendy Brown com sua leitura feminista de Foucault vai além e defende que dentro do movimento feminista não somos apenas o homo economicus, o homo politicus, por mais anêmico que esteja, ele sempre existiu lado a lado com o homo oeconomicus, se o homo politicus tivesse sido realmente vencido, o mundo estaria perdido e sem perspectiva de um futuro democrático ou outro justo. Em outras palavras, como o homem e o Estado estão se preocupando cada vez mais com produtividade, salários e riqueza, ambos estão se tornando econômicos em seu governo, mas isso ainda não os torna econômicos na identidade e na forma. A importância das características econômicas do homem moderno na sua forma de pensar e na sua prática foram reconfiguradas sem extinguir suas características políticas — mais uma vez, incluem deliberação, pertencimento, preocupação com o comum e com a relação da pessoa com a justiça no comum (Brown, 2015)[6].
E esse homo politicus na verdade é uma mulher politicus. Nem todo feminismo foi cooptado pelo sistema, parte dele, hoje consegue emergir como resistência, se solidarizando e apenas de forma e tom sinérgico se ergue contra os exploradores, existe uma multitude colaborativa de mulheres anticapitalistas. Mesmo que no regime neoliberal exista uma multitude de mulheres exploradas pelo capital. Somos todas dominadas por uma ditadura do capital e só juntas, todas, seremos capazes de acabar com ele. E é isso que vem ocorrendo. Em 8 de março de 2018, uma huelga nacional de mulheres parou a Espanha, foi sua primeira greve feminista. Com o apoio de 5 milhões de manifestantes, as organizadoras da huelga feminista clamaram por “uma sociedade livre da opressão sexual, exploração e violência” — “por rebelião e luta contra a aliança entre patriarcado e capitalismo que deseja nos manter obedientes, submissas e quietas. Elas se recusaram a aceitar condições de trabalho piores do que as dos homens ou salário menor por trabalho igual. As organizadoras da greve feminista clamam pelo fim da dominação capitalista e patriarcal.
O movimento de greves feministas começou na Polônia em outubro de 2016, quando mais de cem mil mulheres realizaram greves e marchas para se opor à proibição do aborto no país. Mais tarde neste mesmo mês, ela cruzou o oceano e chegou até a Argentina, onde mulheres grevistas protestaram contra o assassinato de Lucía Pérez sob o bordão de “Ni Una Menos”. Logo, isso se espalhou para a Itália, Espanha, Brasil, Turquia, Peru, EUA, México e Chile. Tendo começado nas ruas, o movimento se espalhou por locais de trabalho e estudo e eventualmente tomando a mídia, a política e etc. Nos últimos dois anos, seu lema tem ressoado pelo mundo: Nosotras Paramos, We Strike, Vivas Nos Queremos, Ni Una Menos, Feminism for the 99 per cent. Primeiro como uma marola, depois como uma onda, o movimento se tornou um fenômeno global.
O que tornou uma série de ações nacionalmente localizadas em um movimento internacional foi a decisão de entrar em greve conjuntamente no 8 de março de 2017. Com este golpe ousado, essa nova forma de ativismo deu novo caráter político ao Dia Internacional da Mulher, reconectando-o às suas inegáveis, mas esquecidas, raízes na classe trabalhadora e no feminismo socialista. Suas ações evocam o espírito das mobilizações das mulheres trabalhadoras do início do século XX. Incorporando esse espírito militante, as greves feministas de hoje estão unindo mulheres separadas não apenas por fronteiras e muros, mas como por oceanos, montanhas e continentes. Derrubando o isolamento dos muros reais e simbólicos, elas demonstraram o potencial político dos trabalhadores pagos e não pagos que sustentam o mundo.
Democratizou a greve e ampliou seu escopo ao redefinir o que pode ser considerado “trabalho”. Além do trabalho assalariado, a greve de mulheres também paralisou o trabalho doméstico, sexo e “sorrisos” — tornando visível o indispensável papel desempenhado pelo trabalho não pago e de gênero na sociedade capitalista que valoriza atividades das quais o capita se beneficia, mas não remunera. Em relação ao trabalho remunerado, a greve feminista redefiniu o que pode ser considerada uma questão trabalhista — tendo como alvo não apenas os salários e jornada de trabalho, mas também assédio e violência sexual, barreiras à justiça reprodutiva e restrições ao direito de greve. Redefinindo o que pode ser considerado “trabalho” e quem pode ser considerado “trabalhador”, ela rejeita a subestimação estrutural que o capitalismo faz do trabalho das mulheres, tanto o pago quanto o não pago. Ela antecipa a possibilidade de uma nova fase da luta de classes: feminista, internacionalista, ambientalista e antirracista.
O feminismo para os 99% está em busca de um novo caminho (Arruzza, Bhattacharya e Fraser, 2019)[7]. Os modelos políticos estabelecidos estão esgotados, chegou-se no limite, vivemos uma vida precária, nossos corpos são abjetos, mulheres estão desamparadas. É preciso abandonar o feminismo corporativo da elite substituindo pelo que fale e defenda o comum, captando as preocupações das mulheres pobres, da classe trabalhadora, das mulheres racializadas, mães solteiras, etc, etc. As pautas defendidas por esse novo percurso ultrapassam as noções de empoderamento e representatividade de mulheres em cargos e posições de poder, e se conectam diretamente às preocupações da classe trabalhadora, dos ambientalistas, dos ativistas antirracistas e pelos direitos dos imigrantes. É realmente necessário escolher um dos lados: o feminismo liberal, que deseja apenas compartilhar entre homens e mulheres da classe dominante a tarefa da exploração; e o feminismo grevista dos 99%, que quer antes de tudo derrubar o capitalismo.
O objetivo do feminismo liberal é a meritocracia, não a igualdade. Ao invés de abolir a hierarquia social, ele almeja feminilizá-la, garantindo que as mulheres no topo podem alcançar paridade com os homens de sua própria classe. Por definição, suas beneficiárias serão aquelas que já possuem vantagens sociais, culturais e econômicas consideráveis. Compatível com o inchaço na desigualdade de riqueza e renda, o feminismo liberal fornece um brilho progressista para o neoliberalismo, disfarçando suas políticas regressivas numa quimera de emancipação. Um aliado da islamofobia na Europa e da finança global nos Estados Unidos, o feminismo liberal permite às mulheres profissionais-gerentes ascender apenas porque elas podem apoiar-se sobre mulheres trabalhadores e migrantes mal pagas, às quais elas subcontratam o trabalho doméstico e de cuidado. Em poucas palavras, o feminismo liberal confere ao feminismo um nome ruim. Nossa resposta é um retorno ao feminismo — nós não temos interesse em quebrar o teto de vidro enquanto deixamos a maioria das mulheres para limpar os cacos caminho (Arruzza, Bhattacharya e Fraser, 2019).
A mulher politica feminista entendida como sua auto-soberana deve subjugar interesses próprios do capital e sua auto-absorção, caso contrário, não apenas caímos no egoísmo, narcisismo e superficialidade, mas somos dominadas pelas relações e regimes sociais gerados por interesses desenfreados.
[1] A “nova” fase do neoliberalismo, de Dardot e Laval, 2019. Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/dardot-e-laval-a-nova-fase-do-neoliberalismo/.
[2]Estado de Exceção, de Giorgio Agamben, 2004.
[3]Psicopolítica: neoliberalismo e novas técnicas de poder, de Byung-. Chul Han, 2017.
[4]O Capital. Crítica da Economia Política. O Processo Global da Produção Capitalista — Livro III, de Karl Marx, 2013.
[5]A condição humana, de Hannah Arendt, 1958.
[6]Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution, de Wendy Brown, 2015.
[7]Feminism for the 99%: a manifesto, de Arruzza, Bhattacharya e Fraser, 2019.