(Esse é o capítulo 2, “As políticas da inteligência”, do livro “Mulheres de Direita”, da autora Andrea Dworkin. Ele foi traduzido por Aline Rossi e publicado originalmente no blog Feminismo Com Classe.)
Por que a vida é tão trágica? Como uma estreita faixa de chão sobre um abismo. Olho para baixo; sinto-me tonta; pergunto-me como conseguirei caminhar até o fim… É uma sensação de impotência: de não ter como.
— Virginia Woolf em seu diário, 25 de outubro de 1920
Homens odeiam a inteligência nas mulheres. Não pode brilhar; não pode queimar; não pode queimar e depois desfazer-se em cinzas, sendo consumida nessa aventura. Não pode ser fria, racional, gélida; nenhum útero caloroso toleraria uma mente fria, gelada e esplêndida. Não pode ser ebuliente e não pode ser mórbida; não pode ser nada que não termine na reprodução ou na prostituição.
Não pode ser o que a inteligência é: uma vitalidade da mente que atua diretamente no mundo e sobre o mundo, sem mediação.
“De fato”, escreveu Norman Mailer, “duvido que haja alguma mulher escritora realmente excitante até que a primeira prostituta se torne uma garota de programa e conte sua história”.
E Mailer estava sendo generoso, porque dotou a puta de uma capacidade de saber, se não de contar: ela sabe algo em primeira mão, algo que vale a pena saber. “A genialidade”, escreveu Edith Wharton mais realisticamente, “é de pouca utilidade para uma mulher que não saiba arrumar o cabelo.”
A inteligência é uma forma de energia, uma força que empurra para fora do mundo. Ela deixa sua marca, não uma só vez, mas continuamente. É curiosa, penetrante. Sem a luz da vida pública, do discurso e da ação, ela morre.
Ela deve ter um campo de ação além de bordar ou esfregar banheiros ou usar roupas finas. Precisa de resposta, desafio, consequências que importam. A inteligência não pode ser passiva e privada durante toda uma vida. Guardada em segredo, mantida em segredo, ela murcha e morre. Pode-se levar o exterior até a inteligência; ela pode viver de pão e água trancada numa cela — mas muito sofregamente.
Florence Nightingale, em seu trato feminista “Cassandra”, disse que o intelecto foi o último a morrer nas mulheres; desejo, sonhos, atividade e amor, todos esses morreram antes.
A inteligência se agarra porque pode viver de quase nada: fragmentos do mundo trazidos por maridos, filhos ou estranhos ou, em nosso tempo, pela televisão ou por um filme ocasional.
Presa, a inteligência se transforma em autodestruição e pavor. Isolada, a inteligência se torna um fardo e uma maldição. Subnutrida, a inteligência torna-se como a barriga inchada de uma criança faminta: inchada, cheia de nada que o corpo possa usar. Incha, como o estômago faminto, à medida que o esqueleto encolhe e os ossos colapsam; apanha qualquer coisa para saciar a fome, enfia qualquer coisa, mastiga qualquer coisa, engole qualquer coisa.
“José Carlos chegou em casa com um saco de bolachas que encontrou no lixo”, escreveu Carolina Maria de Jesus, uma mulher brasileira da classe baixa, em seu diário. “Quando o vi comendo coisas do lixo, pensei: e se estivessem envenenadas? As crianças não suportam a fome. As bolachas eram deliciosas. Eu as comi pensando naquele provérbio: ‘Quem está na chuva é para se molhar”. E como também tinha fome, eu comi.”
A inteligência das mulheres é tradicionalmente esfomeada, isolada, aprisionada.
Tradicionalmente e na prática, o mundo é levado às mulheres pelos homens; eles são o exterior do qual a inteligência feminina deve se alimentar. A comida é pobre, como papa de prisão. Isto porque os homens trazem para casa meias verdades, mentiras carregadas de ego, e as usam para exigir consolo ou sexo ou serviço doméstico.
A inteligência das mulheres não está no mundo, agindo em seu próprio nome; ela é mantida apequenada, dentro do lar, agindo em nome de outro. Isso é verdade mesmo quando a mulher trabalha fora de casa, porque ela é segregada no trabalho feminino e sua inteligência não tem a mesma importância que a curva da sua bunda.
Os homens são o mundo e as mulheres usam a inteligência para sobreviver aos homens: seus truques, desejos, exigências, humores, ódios, decepções, raiva, cobiça, luxúria, autoridade, poder, fraquezas.
As ideias chegam às mulheres através dos homens, em um campo de valores culturais controlado por homens, em um sistema político e social controlado por homens, em um sistema sexual em que as mulheres são usadas como coisas. Como Catharine A. MacKinnon escreveu na única frase que cada mulher deve arriscar sua vida para compreender: “O homem fode a mulher; sujeito verbo objeto”.
O homem é o campo de ação no qual a inteligência da mulher se movimenta. Mas o mundo, o mundo real, é mais do que homens, certamente mais do que o que os homens mostram de si mesmos e do mundo para as mulheres; e as mulheres são privadas desse mundo real. O macho intervém sempre entre ela e ele.
Alguns jurarão de pés juntos que as mulheres podem ter um tipo específico de inteligência — essencialmente pequena, exigente, boa com detalhes, má com ideias. Alguns irão garantir — e, de fato, insistem — que as mulheres sabem mais sobre o “Bem”, que as mulheres sejam mais conhecedoras da decência ou da bondade: isto mantém a inteligência pequena e domesticada. Alguns dirão que houve mulheres gênios… depois que a mulher genial estiver morta.
Os maiores escritores da língua inglesa têm sido as mulheres: George Eliot, Jane Austen, Virginia Woolf. Mas o fato de elas existirem não muda a percepção categórica de que as mulheres são basicamente estúpidas: não são capazes de inteligência sem o exercício do qual o mundo, como um todo, é empobrecido. As mulheres são estúpidas e os homens são inteligentes; os homens têm direito ao mundo e as mulheres não.
Um homem perdido é uma inteligência perdida; uma mulher perdida é uma mãe perdida (ou outra função qualquer), dona de casa, objeto sexual. Classes de homens foram desperdiçadas, foram jogadas fora; sempre houve homens que lamentaram e lutaram por recusarem a aceitar esse desperdício. Não há luto pela inteligência desperdiçada das mulheres porque não há convicção de que tal inteligência era real e foi destruída.
A inteligência é, na verdade, vista como uma função da masculinidade; e as mulheres são desprezadas quando se recusam a ser desperdiçadas.
As mulheres têm ideias estúpidas que não merecem ser chamadas de ideias. Marabel Morgan escreve um livro horrível, bobo e terrível no qual ela afirma que as mulheres devem existir para seus maridos, fazer sexo e ser sexo para seus maridos. D. H. Lawrence escreve ensaios vis e estúpidos nos quais ele diz a mesma coisa basicamente com muitas referências ao falo divino; mas D. H. Lawrence é inteligente.
Se uma ideia é estúpida, presumivelmente é estúpida independentemente se a pessoa que a articula é homem ou mulher. Mas aqui não. A mulher, sub-educada como classe, não precisa ler Ésquilo para saber que um homem planta o esperma, a criança, o filho; a mulher é o solo; ela faz nascer o humano que ele criou; ele é o criador, o pai da vida.
As mulheres podem ter suas próprias fontes provinciais e moralistas para este conhecimento: clero, cinema, professores de ginástica. O conhecimento é conhecimento comum: respeitado nos escritores masculinos porque os escritores masculinos são respeitados; estúpido nas mulheres porque as mulheres são estúpidas como condição de nascença.
As mulheres articulam o conhecimento recebido e são ridicularizadas por fazê-lo. Mas os escritores masculinos com as mesmas ideias recebidas são aclamados como novos, brilhantes, interessantes, mesmo rebeldes, corajosos, enfrentadores do mundo do pecado e do sexo de forma direta.
As mulheres têm preconceitos ignorantes e moralistas; os homens têm ideias. Chamar isso de padrão duplo é entregar-se a um eufemismo cruel. Este sistema de avaliação de ideias de gênero é um martelo de forja que aniquila a inteligência feminina.
Mailer e Lawrence sempre assumiram o mundo; eles sabiam que tinham direito a ele; sua prosa toma esse direito como garantido; é o campo gravitacional no qual eles se movem. Marabel Morgan e Anita Bryant vêm ao mundo como mulheres de meia-idade e tentam agir nele; é claro que são jovens e imprecisas no estilo, até mesmo ridículas.
Tanto Mailer como Lawrence escreveram volumes tão ridículos e juvenis quanto, apesar do que eles podem tomar como certo como homens, apesar do domínio da língua, apesar de suas realizações genuínas, apesar da beleza de uma história ou romance. Mas eles não são chamados de estúpidos, mesmo quando são ridículos.
Quando as ideias de Lawrence não podem ser distinguidas das ideias de Morgan, ou ambas são inteligentes ou ambas são estúpidas; e o mesmo é verdade sobre Mailer e Bryant. Somente as mulheres, no entanto, merecem e recebem nosso desprezo. As ideias de Anita Bryant são perniciosas? Então as de Norman Mailer também são. As ideias de Marabel Morgan são risíveis? E as de D. H. Lawrence também são.
A mulher deve manter sua inteligência pequena e tímida para sobreviver. Ou ela deve escondê-la completamente ou escondê-la atrás do estilo. Ou ela deve ficar louca como um relógio para pagar por isso. Ela tentará encontrar uma boa maneira de exercitar a inteligência. Mas a inteligência não é uma dama. A inteligência é cheia de excessos.
A inteligência rigorosa abomina o sentimentalismo e as mulheres devem ser sentimentais para valorizar a horrorosa tolice dos homens que as rodeiam. A inteligência mórbida abomina o raio de luz alegre do pensamento positivo e da eterna doçura; e a mulher deve ser um raio de luz e alegre e doce ou ela não conseguiria subornar seu caminho com sorrisos nem mesmo por um dia. A inteligência selvagem abomina qualquer mundo estreito; e o mundo das mulheres deve permanecer estreito ou a mulher é uma fora-da-lei.
Nenhuma mulher poderia ter sido Nietzsche ou Rimbaud sem terminar num bordel ou lobotomizada.
Qualquer inteligência vital tem perguntas apaixonadas, respostas agressivas: mas as mulheres não podem ser exploradoras; não pode haver Lewis e Clark, da mente feminina. Mesmo a inteligência contida é contida não por ser tímida, como as mulheres devem ser, mas porque é pensar cautelosamente as impressões e os fatos que lhe chegam de um exterior que os tímidos não ousam enfrentar.
A mulher deve agradar e a inteligência contida não procura agradar; procura saber através do discernimento. A inteligência também é ambiciosa e sempre quer mais: não o mais de ser mais fodida, não o mais de mais gravidez; mas quer mais de um mundo maior. A mulher não pode ser ambiciosa por direito próprio sem também ser condenada.
Pegamos as meninas e enviamo-las para as escolas. É legal da nossa parte, porque as meninas não devem saber muito e, em muitas outras sociedades, as meninas não são enviadas para a escola ou ensinadas a ler e escrever. Em nossa sociedade, tão generosa para com as mulheres, as meninas são ensinadas sobre alguns fatos, mas não sobre a investigação ou a paixão do saber. As meninas são ensinadas a fim de torná-las conformes: a aventura intelectual é drenada, punida e ridicularizada nas meninas.
Usamos as escolas primeiro para restringir o escopo da menina, sua curiosidade, depois para ensinar-lhe certas habilidades, necessárias para o marido abstrato. As meninas são ensinadas a serem passivas em relação aos fatos.
As meninas não são vistas como as potenciais originadoras de ideias ou como as potenciais pesquisadoras da condição humana. O bom comportamento é o objetivo intelectual de uma moça. Uma garota com ímpeto intelectual é uma garota que tem que ser contida. Uma garota inteligente deve usar essa inteligência para encontrar um marido mais inteligente.
Simone de Beauvoir juntou-se a Sartre quando ela determinou que ele era mais inteligente do que ela. Em um filme feito quando ambos eram velhos, no final de sua vida, Sartre pergunta a Beauvoir, a mulher com quem ele compartilhou uma vida surpreendente de ação e realização intelectual: qual era a sensação de ter sido uma senhora literária?
Carolina Maria de Jesus escreveu em seu diário: “Todos têm um ideal na vida. O meu é poder ler”. Ela é ambiciosa, mas é uma ambição estranha para uma mulher. Ela quer aprender. Ela quer o prazer de ler e escrever. Os homens lhe pedem em casamento, mas ela suspeita que vão interferir na sua leitura e escrita. Eles ficarão ressentidos com o tempo que ela aproveita sozinha. Eles ficarão ressentidos com o fato dela focar sua atenção em outro lugar. Eles se ressentirão de sua concentração e se ressentirão de seu autorrespeito. Eles ressentir-se-ão de seu orgulho em si mesma e de sua relação não mediada com um mundo maior de ideias, descrições, fatos.
Seus vizinhos veem-na curvada sobre livros ou com caneta e papel na mão, no meio do lixo e da fome da favela. Seu ideal faz dela uma pária: seu desejo de ler faz dela mais uma pária do que se ela estivesse sentada na rua pondo punhos de pregos em sua boca. Onde ela conseguiu seu ideal? Ninguém lhe ofereceu.
Dois terços dos analfabetos do mundo são mulheres. Para ser fodida, para parir crianças, não é preciso saber ler.
As mulheres são para sexo e reprodução, não para literatura. Mas as mulheres têm histórias para contar. As mulheres querem saber. As mulheres têm perguntas, ideias, argumentos, respostas. As mulheres sonham em estar no mundo, não apenas passar a linhagem e mandar bebês molhados para fora dos úteros no trabalho de parto.
“As mulheres sonham”, escreveu Florence Nightingale em Cassandra, “até não terem mais forças para sonhar; aqueles sonhos contra os quais elas tanto lutam, tão honesta, vigorosa e conscientemente, e tão em vão, mas que são suas vidas, sem as quais elas não poderiam ter vivido; pelo menos os sonhos vão… (…) Mais tarde na vida, elas não desejam nem sonham, nem com atividade, nem com amor, nem intelecto.”
Virginia Woolf, a mais esplêndida escritora moderna, nos disse repetidamente como era horrível ser uma mulher de inteligência criativa. Ela nos disse quando carregou uma grande pedra no bolso e entrou no rio; e nos disse cada vez que um livro era publicado e ela enlouquecia — não me faça mal pelo que fiz, eu me machucarei primeiro, serei incapaz e sofrerei e serei punida e então talvez você não precise me destruir, talvez tenha pena de mim, há tanto desprezo na pena e eu estou tão orgulhosa, não será isso suficiente?
Ela nos disse de novo e de novo também em sua prosa: em sua ficção ela nos mostrou, sempre tão delicadamente, para não nos ofendermos; e em seus ensaios ela se empilhou no encanto, sendo educada para nos manter educadas. Mas ela também escreveu diretamente, embora não tenha sido publicado em sua vida, e ela estava certa:
É necessária uma certa atitude — o que eu chamo de atitude de despejar cá para fora — uma mulher do clube, atitude de domingo à tarde. Eu não sei. Acho que o ângulo é quase tão importante quanto a coisa. O que eu valorizo é o contato nu de uma mente. Muitas vezes não se pode dizer nada de valor sobre um escritor — exceto o que se pensa. Porém, vi meu ângulo incessantemente obscurecido, sem dúvida inconscientemente, pelo desejo do editor e do público de que uma mulher visse as coisas a partir do delicado ângulo feminino. Meu artigo, escrito desse ponto de vista oblíquo, sempre decepcionava.
Valorizar “o contato nu de uma mente” é ter uma inteligência viril, não envolta em vestidos e gestos bonitos. O seu trabalho sempre foi reduzido pelo peso do que ser mulher exigia. Ela se tornou uma mestre da indireta requintada. Ela escondia seus significados e suas mensagens em um estilo feminino. Ela trabalhava sob esse estilo e se escondia atrás dessa máscara: e ela era menos do que poderia ter sido. Ela morreu não só pelo que ela ousou, mas também pelo que ela não ousou.
Estas três coisas estão indissoluvelmente ligadas: literacia, intelecto e inteligência criativa. Elas distinguem, como diz o clichê, o homem dos animais. Àquele a quem é negado estes três é negada uma vida totalmente humana e lhe é roubado o direito à dignidade humana.
Agora mudemos o gênero. Literacia, intelecto e inteligência criativa distinguem a mulher dos animais: não. A mulher não é distinguível dos animais porque foi condenada em virtude de sua classe sexual a uma vida de funções animais: ser fodida, reproduzir-se. Para ela, as funções animais são o seu significado, sua chamada ‘humanidade’, o mais humana que ela pode ser, as mais altas capacidades humanas nela, porque ela é fêmea.
Para os ortodoxos da cultura masculina, ela é animal, a antítese da alma; para os liberais da cultura masculina, ela é natureza.
Ao discutir as chamadas “origens biológicas do domínio masculino”, os meninos podem se comparar a babuínos e insetos: eles estão escrevendo livros ou ensinando nas universidades quando o fazem. Um professor de Harvard não recusa a continuidade porque tal coisa nunca foi concedida a um babuíno.
A biologia do poder é um jogo que os meninos jogam. É a maneira masculina de dizer: ela é mais parecida com a babuína do que comigo; ela não pode ser uma Eminência Parda em Harvard porque ela sangra, nós a fodemos, ela carrega nossas crias, nós a espancamos, nós a estupramos; ela é um animal, sua função é procriar. Eu quero ver o babuíno, a formiga, a vespa, o ganso, o ciclídeo que escreveu Guerra e Paz. Quero ainda mais ver o animal, o inseto, o peixe ou a ave que escreveu Middlemarch.
A literacia é uma ferramenta, como o fogo. É uma ferramenta mais avançada do que o fogo e tem feito tanto ou mais para mudar a compleição do mundo natural e social. A literacia, como o fogo, é uma ferramenta que deve ser usada pela inteligência.
A literacia também é uma capacidade: a capacidade de ser letrado é uma capacidade humana; a capacidade existe e pode ser usada ou pode ser negada, refutada, feita para atrofiar. Às pessoas socialmente desprezadas, ela é negada. Mas a negação não é suficiente, porque as pessoas insistem em fazer sentido. A humanidade encontra sentido em experiências, eventos, objetos, comunicações, relacionamentos, sentimentos.
A literacia funciona como parte da busca pelo sentido; ela ajuda a tornar essa busca possível. Os homens podem negar que as mulheres têm a capacidade de aprender o grego antigo, mas algumas mulheres aprenderão mesmo assim. Os homens podem negar que mulheres pobres ou mulheres da classe trabalhadora ou mulheres prostituídas têm a capacidade de ler ou escrever em sua própria língua, mas algumas dessas mulheres lerão ou escreverão em suas línguas de qualquer maneira; arriscarão tudo para aprendê-la.
No Sul dos Estados Unidos, era proibido por lei ensinar escravizados a ler ou escrever; mas alguns proprietários de escravizados ensinavam, alguns escravizados aprendiam, alguns escravizados ensinavam a si mesmos e alguns escravizados ensinavam outros escravizados.
Na lei judaica, é proibido ensinar Talmud às mulheres, mas algumas mulheres aprenderam Talmud na mesma. As pessoas sabem que a literacia traz dignidade e um mundo mais amplo.
As pessoas são fortemente motivadas a experimentar o mundo em que vivem através da língua: falada, cantada, cantada e escrita. É preciso punir as pessoas terrivelmente para impedi-las de querer saber o que a leitura e a escrita trazem, porque as pessoas são curiosas e motivadas tanto para a experiência quanto para a conceituação da mesma.
A negação da literacia a qualquer classe ou categoria de pessoas é uma negação da humanidade fundamental.
Aos seres humanos vistos como animais, não humanos, classicamente é negada a alfabetização: escravizados nas sociedades de escravos; mulheres nas sociedades de domínio-sobre-mulheres; grupos racialmente degradados nas sociedades racistas. O escravo masculino é tratado como uma besta de carga; ele não pode ser autorizado a ler ou escrever. A mulher é tratada como uma besta de procriação; ela não deve ler ou escrever.
Quando às mulheres como classe é negado o direito de ler e escrever, as que aprendem se envergonham de seu conhecimento: são masculinas, desviadas; negaram seu útero, suas bocetas; em sua alfabetização repudiam a definição de sua espécie.
A certas classes de mulheres foram concedidos alguns privilégios de alfabetização — não direitos, privilégios. As cortesãs da Grécia antiga eram educadas quando outras mulheres eram mantidas na ignorância, mas não eram filósofas, eram prostitutas. Somente aceitando sua função como prostitutas elas podiam exercer o privilégio da alfabetização.
Às mulheres de classe alta são tradicionalmente ensinadas algumas habilidades de literacia (claramente mais circunscritas do que as habilidades ensinadas aos homens de sua classe de acasalamento): elas podem exercer o privilégio de alfabetização se aceitarem sua função decorativa.
Afinal, o homem não quer à sua mesa de jantar a vadia reprodutora que sangra ou a vagabunda na sala de estar enquanto lê seu jornal ou fuma seu charuto. A linguagem é refinamento: é a prova de que ele é humano, não ela.
O aumento do analfabetismo entre os pobres urbanos nos Estados Unidos bate com um novo aumento do racismo ostensivo e do desprezo pelos pobres. O analfabetismo está programado no sistema: uma criança inteligente pode ir à escola e não ser ensinada a ler ou a escrever.
Quando o sistema educacional dispensa a leitura e a escrita para subgrupos particulares, ele dispensa a dignidade humana para esses grupos: torna-se estritamente prisional, mantendo os animais presos; não traz vida humana para os seres humanos.
Culturalmente, meninas e mulheres são analfabetas, com dois terços dos analfabetos do mundo sendo do sexo feminino e a taxa aumentando de forma constante. As meninas precisam de maridos, não de livros. As meninas precisam de casas ou barracos para manterem limpas ou esquinas para se manterem em pé, não de um vasto mundo no qual vaguear.
Recusar a dar a ferramenta da literacia a alguém é recusar-lhe dar acesso ao mundo. Se ela mesma puder fazer seu próprio fogo, ler um livro, escrever uma carta ou um registro de seus pensamentos ou um ensaio ou uma história, será mais difícil conseguir que ela tolere a foda indesejada, que carregue as crianças indesejadas, que veja isso como vida e veja a vida através disso. Ela poderá ter ideias. Mas, pior ainda, ela pode saber o valor das ideias que lhes são transmitidas.
Ela não deve saber que as ideias têm valor, apenas que ser fodida e se reproduzir são o seu próprio valor.
Nos Estados Unidos, tem sido difícil educar as mulheres: ainda há muitos tipos de educação fora dos limites da mulher. Na Inglaterra, utilizar uma biblioteca acadêmica foi difícil para Virginia Woolf. A alfabetização simples é o primeiro passo, e, como Abby Kelley disse a uma convenção de direitos das mulheres em 1850, “Irmãs, os pés ensanguentados aplainaram o caminho pelo qual vocês chegaram aqui.”.
O acesso a toda a língua foi negado às mulheres; supõe-se que só devemos usar as partes femininas dela. Alice James observou em seu diário que “é uma perda imensa ter todos os expletivos robustos e refinados mantidos longe de alguém”!
Mas é no exercício real da alfabetização como ferramenta e como capacidade que as mulheres enfrentam punição, ostracização, exílio, recriminação, o mais virulento desprezo.
Para ler e ser feminina ao mesmo tempo, ela lê romances góticos, não livros de texto médicos; livros de cozinha, não jurisprudência; histórias de mistério, não biologia molecular. A linguagem da matemática não é uma linguagem feminina. Ela pode aprender astrologia, não astronomia. Ela pode ensinar gramática, não inventar estilo ou originar ideias. Ela tem permissão para escrever um pequeno livro sobre mulheres neuróticas, ficção ou não-ficção, se o pequeno livro for banal e sentimental o suficiente; é melhor que ela se mantenha completamente afastada da filosofia. Na ficção, é melhor que ela tenha cuidado para não exagerar os severos limites impostos pela feminilidade.
“Este então”, escreveu Virginia Woolf, “é outro incidente; e um incidente bastante comum na carreira de uma mulher romancista. Ela tem que dizer ‘eu vou esperar’. ‘Eu esperarei até que os homens se tornem tão civilizados que não fiquem chocados quando uma mulher fala a verdade sobre seu corpo’. O futuro da ficção depende muito de até que ponto os homens podem ser educados para manter a liberdade de expressão nas mulheres.”
O constrangimento é a aniquilação: a linguagem que deve evitar o próprio corpo é a linguagem que não tem lugar no mundo. Mas falar a verdade sobre o corpo de uma mulher não é a simples explicação das partes do corpo — é o lugar de esse corpo particular neste mundo particular, seu valor, seu uso, seu lugar no poder, sua vida política e econômica, suas capacidades, tanto as potencialmente realizadas e as habitualmente abusadas.
Em certo sentido, o intelecto é a combinação de literacia e inteligência: as disciplinas de alfabetização inteligência e inteligência expandem os usos da alfabetização; há um corpo de conhecimento que muda e aumenta e também uma habilidade em adquirir conhecimento; há uma memória repleta de ideias, um depósito do que já foi antes no mundo.
O intelecto é o domínio das ideias, da cultura, dos produtos e processos de outros intelectos. Intelecto é a capacidade de aprender a linguagem disciplinada para aprender. O intelecto deve ser cultivado: mesmo nos homens, mesmo nos mais inteligentes. Deixado sozinho em um mundo privado de isolamento, o intelecto não se desenvolve a menos que tenha um cultivador privado: um professor, um pai do intelecto, por exemplo.
Mas o intelecto na mulher não deve exceder o do professor — ou a mulher será repreendida e negada. Walt Whitman escreveu que uma aluna necessariamente rejeita e destitui uma professora; mas a aluna deve sempre ficar menor do que a professora, sempre mais aberta; sua inteligência nunca deve se tornar mestra.
A inteligência em uma mulher é sempre um sinal de privilégio: ela foi criada acima de sua espécie, geralmente por causa do benefício de um homem que se mostrou apto a educá-la.
Os insultos às mulheres intelectuais são um mar sem fim: as chamadas “bluestockings” são motivo de riso; as mulheres intelectuais são feias, senão não se preocupariam em ter ideias; o prazer de cultivar a mente é perversão sexual na mulher; os trabalhos dos homens letrados são cheios de comentários viciosos contra as mulheres intelectuais.
O intelecto em uma mulher é maligno. A mente afiada não enobrece a mulher, mas a deforma.
A mente criativa é a inteligência em ação no mundo. O mundo não precisa ser definido como rios, montanhas e planícies. O mundo está em qualquer lugar em que o pensamento tenha consequências. Na filosofia mais abstrata, o pensamento tem consequências; a filosofia faz parte do mundo, às vezes de seu próprio mundo autocontido. Pensar é ação; assim como escrever, compor, pintar; a inteligência criativa pode ser usada no mundo material para fazer produtos de si mesmo.
Mas há mais na inteligência criativa do que aquilo que ela produz. A inteligência criativa é inteligência de busca: ela exige conhecer o mundo, exige seu direito à consequência. Não é contemplativa: a inteligência criativa é ambiciosa demais para isso; ela quase sempre se anuncia. Pode se comprometer com a pura busca pelo conhecimento ou pela verdade, mas quase sempre quer reconhecimento, influência ou poder; é uma inteligência realizadora. Não se satisfaz pelo reconhecimento da personalidade que a carrega; ela quer respeito por si própria, respeito por si mesma.
Às vezes, este respeito pode ser demonstrado em relação ao seu produto. Às vezes, quando esta inteligência se exercita no reino mais efêmero da conversa pura ou da ação mundana, o respeito pela inteligência criativa deve ser demonstrado através do respeito pela pessoa que a manifesta.
Às vezes, quando esta inteligência se exerce no domínio mais efêmero da pura conversa ou ação mundana, o respeito pela inteligência criativa deve ser demonstrado através do respeito pela pessoa que a manifesta. Não é suposto que as mulheres tenham inteligência criativa, mas quando o fazem, é suposto que renunciem a ela. Se elas querem o amor dos homens, sem o qual elas não são realmente mulheres, é melhor que não se apeguem a uma inteligência que busca e que é ação no mundo; o pensamento que tem consequências é hostil ao grilhão da feminilidade.
A inteligência criativa não é animalesca: ser fodida e se reproduzir não a satisfaz, nunca; e a inteligência criativa não é decorativa — nunca é meramente ornamental como, por exemplo, as mulheres de classe alta, por mais bem instruídas que sejam.
Para permanecer mulher, no sentido supremacista masculino dessa palavra, as mulheres devem renunciar à inteligência criativa: não apenas renunciar verbalmente a ela, embora as mulheres o façam o tempo todo, mas, na pior das hipóteses, mantê-la tímida e contida na melhor das hipóteses.
O preço do exercício da inteligência criativa para aquelas nascidas do sexo feminino é um sofrimento indescritível. “Todas as coisas na terra têm seu preço”, escreveu Olive Schreiner, “e, pela verdade, pagamos o mais caro. Trocamos por amor e simpatia”. O caminho para a honra está pavimentado de espinhos; mas o caminho da verdade, a cada passo você pisa no seu coração.
A verdade é o objetivo da inteligência criativa, qualquer que seja seu tipo e caminho; o emaranhado com o mundo está emaranhado com o problema da verdade. Confrontamo-nos com a sujeira do mundo, mas a nossa busca é pela verdade. A verdade particular ou o caráter último da verdade que se descobre não é a questão. A intrusão de um eu inteligente e criativo no mundo para encontrar a verdade é a questão.
Não há nada aqui para as mulheres, exceto intimidação e desprezo. Isoladamente, em particular, a mulher pode ter prazer no exercício da inteligência criativa, por mais contida que seja ao exercê-la; mas essa inteligência terá que voltar-se contra si própria, visto que não há outro mundo, complexo e humano no qual ela possa ser usada e desenvolvida. Seja o que for que escape, dará a cada uma das pessoas o direito de criticar sua feminilidade, que é a única identidade disponível para ela; sua mulheridade é defeituosa porque a inteligência dela é viril.
“Por que têm as mulheres paixão, intelecto, atividade moral? (…)” questionou Florence Nightingale em 1852, “e um lugar na sociedade no qual nenhum dos três pode ser exercido?”. Quando ela se referia à atividade moral, não era sobre moralismo; ela referia à inteligência moral.
Moralismo é o conjunto de regras aprendidas mecanicamente que mantém as mulheres presas, de modo que a inteligência nunca pode encarar o mundo de frente. O moralismo é uma defesa contra experimentar o mundo. O moralismo é a esfera moral designada às mulheres, que devem aprender as regras de seu próprio, adequado e predefinido comportamento.
A inteligência moral é ativa; ela só pode ser desenvolvida e refinada se for usada no reino da experiência real e direta. A atividade moral é o uso dessa inteligência, o exercício do discernimento moral.
O moralismo é passivo: ele aceita a versão do mundo que lhe foi ensinada e estremece com a ameaça da experiência direta. A inteligência moral é caracterizada pela atividade e movimento através de ideias e da história: ela assume o mundo e insiste em participar das grandes e terríveis questões sobre o certo e o errado, a ternura e a crueldade.
A inteligência moral constrói valores; e porque esses valores são exercidos no mundo real, eles têm consequências.
Não há inteligência moral que não tenha consequências reais em um mundo real ou que seja simples e passivamente recebida, ou mesmo que possa viver em um vácuo no qual não há ação.
A inteligência moral não pode ser expressa somente através do amor ou somente através do sexo ou somente através da domesticidade ou somente através da ornamentação ou somente através da obediência; a inteligência moral não pode ser expressa somente através da foda ou da reprodução.
A inteligência moral deve agir num mundo público, não numa relação privada, refinada e rarefeita com uma outra pessoa, com exclusão do resto do mundo. A inteligência moral exige um exercício quase infinito da capacidade de tomar decisões: decisões significativas; decisões dentro da história, não periféricas a ela; decisões sobre o sentido da vida; decisões que surgem de uma consciência aguda da própria mortalidade; decisões sobre as quais se pode, honesta e voluntariamente, apostar a própria vida.
A inteligência moral não é o material de que são feitas as putas. O moralismo é o esforço da puta para encontrar alguma base de autorrespeito, um gesto penoso para que possa ser humana, gesto do qual os homens riem e pelo qual as mulheres têm pena de outras mulheres.
Possivelmente, existe também a inteligência sexual, capacidade humana de discernimento, manifestação e construção da integridade sexual. A inteligência sexual não pode ser medida em número de orgasmos, ereções ou parceiros; nem poderia se mostrar colocando lábios clitorianos pintados na frente de uma câmera; nem poderia ser medida pelo número de crianças nascidas; nem se manifestaria como vício.
A inteligência sexual, como qualquer outro tipo de inteligência, seria ativa e dinâmica; precisaria do mundo real, da experiência direta dele; colocaria não nádegas, mas perguntas, respostas, teorias, ideias — na forma de desejo ou ato ou arte ou articulação.
Estaria no corpo, mas nunca poderia estar em um corpo aprisionado e isolado, um corpo a quem seria negado o acesso ao mundo. Não seria mecânica; nem poderia ser vista como inerte e estúpida; nem poderia ser explorada por outro sem que isso diminuísse o seu vigor; e ser vendida no mercado como uma mercadoria ser-lhe-ia necessariamente um anátema, uma afronta direta à sua necessidade intrínseca de encarar o mundo em termos autodefinidos e autodeterminantes.
A inteligência sexual seria provavelmente mais como a inteligência moral do que como qualquer outra coisa: um ponto que as mulheres vêm tentando provar há séculos. Mas como nenhuma inteligência nas mulheres é respeitada, e como ela está condenada ao moralismo porque é definida como um ser incapaz da inteligência moral, e como ela é definida como uma coisa sexual a ser usada, o significado da mulher em comparar inteligência moral e sexual não é compreendido.
A inteligência sexual se afirma através da integridade sexual, uma dimensão de valores e ações proibidas às mulheres. A inteligência sexual teria que estar enraizada antes de tudo na posse honesta do próprio corpo, e as mulheres existem para serem possuídas por outros, ou seja, pelos homens. A posse de seu próprio corpo teria que ser absoluta e inteiramente realizada para que a inteligência prospere no mundo da ação.
A inteligência sexual, como a inteligência moral, teria que enfrentar as grandes questões sobre crueldade e ternura; mas onde a inteligência moral deve se emaranhar com questões de certo e errado, a inteligência sexual teria que se emaranhar com questões de dominância e submissão. Uma pessoa predestinada a ser fodida não tem necessidade de exercer a inteligência sexual, não tem oportunidade de exercê-la, não tem argumento que justifique exercê-la.
Para manter a mulher sexualmente aquiescente, a capacidade de inteligência sexual lhe deve ser proibida. E é. Seu clítoris é negado. Sua capacidade de prazer é distorcida e difamada. Seus valores eróticos são difamados e insultados. Seu desejo de valorizar seu corpo como dela própria é paralisado e mutilado.
Ela se transforma em uma ocasião de prazer masculino, um objeto de desejo masculino, uma coisa a ser usada; e qualquer expressão voluntária de sua sexualidade no mundo que não seja mediada por homens ou valores masculinos é punida. Ela é usada como uma puta ou como uma dama; mas a inteligência sexual não pode se manifestar em um ser humano cujo propósito predestinado é ser explorado através do sexo, pelo sexo, no sexo e como sexo.
A inteligência sexual constrói seu próprio uso: ela começa com um corpo inteiro, não um que já tenha sido particionado e fetichizado; começa com um corpo dotado de autorrespeito, não um que é caracterizado, como classe, como um corpo sujo, arbitrário e escravizável. Age no mundo, um mundo que adentra por si mesma, com liberdade e com paixão.
A inteligência sexual não pode viver trancafiada em quatro paredes, assim como nenhum outro tipo de inteligência poderia. A inteligência sexual não pode existir defensivamente, tentando manter longe o estupro. A inteligência sexual não pode ser decorativa ou bonita ou tímida, nem pode viver sob uma dieta de desprezo e abuso e ódio à sua forma humana.
A inteligência sexual não é animal, é humana; ela tem valores; ela estabelece limites que são significativos para a pessoa como um todo e a sua personalidade, que deve viver na história e no mundo. As mulheres descobriram que o desenvolvimento e o exercício da inteligência sexual era mais difícil do que qualquer outra: as mulheres aprenderam a ler; as mulheres adquiriram intelecto; as mulheres tiveram tanta inteligência criativa que nem mesmo o desprezo e o isolamento e a punição foram capazes de esmagá-las; as mulheres lutaram por uma inteligência moral que, por sua própria existência, repudia o moralismo; mas a inteligência sexual é cortada pelas raízes, porque o corpo da mulher não é dela.
O uso incestuoso de uma garota mata a inteligência sexual. A intimidação sexual ou violação de uma garota mata a inteligência sexual. A castidade forçada de uma garota mata a inteligência sexual. Separar uma menina de outra menina mata a inteligência sexual. Transformar uma garota na esposa de um homem mata a inteligência sexual. Vender uma garota para a prostituição mata a inteligência sexual. O uso de uma mulher como esposa mata a inteligência sexual. O uso de uma mulher como objeto sexual mata a inteligência sexual. A venda de uma mulher como mercadoria sexual, não apenas na rua, mas na mídia, mata a inteligência sexual. O valor econômico dado ao corpo de uma mulher, seja alto ou baixo, mata a inteligência sexual. Manter uma mulher como brinquedo ou ornamento ou uma buceta domesticada mata a inteligência sexual. A necessidade de ser mãe para não ser vista como puta mata a inteligência sexual. A exigência de que a mulher deve gestar mata a inteligência sexual.
O fato de que a sexualidade da mulher é predeterminada e que ela é forçada a ser o que os homens dizem que ela é mata a inteligência sexual: não há nada para a inteligência sexual discernir ou construir; não há nada para ela descobrir, exceto o que os homens lhe farão e como ela será punida se resistir ou ceder.
Ela vive em um mundo privado — mesmo uma esquina é um mundo privado de uso sexual, não um mundo público de confrontação honesta; e seu mundo privado de uso sexual tem fronteiras estreitas e uma série de dádivas. Nenhuma inteligência pode funcionar em um mundo que consiste fundamentalmente de duas regras que, por sua própria natureza, proíbem a invenção de valores, identidade, vontade, desejo: ser fodido e reproduzir-se.
Os homens construíram a sexualidade feminina e, ao fazê-lo, aniquilaram a possibilidade de inteligência sexual nas mulheres. A inteligência sexual não pode viver na sexualidade superficial e predestinada que os homens contrafizeram para as mulheres.
“Respeito e honro a mulher necessitada que, para obter alimento para si e para sua criança, vende o próprio corpo a um estranho qualquer em troca do dinheiro necessário; mas aquela virtuosa pela lei que se vende para toda a vida por um lar, tendo horror ao comprador, e que ao mesmo tempo diz à primeira: “Sou mais santa que você”, tenho apenas o mais supremo desprezo.”
— Victoria Woodhull, 1874
A discussão entre esposas e prostitutas é antiga; cada uma pensando que, não importa o que ela seja, pelo menos não é a outra. E não há dúvida de que a esposa inveja a prostituta — ou as senhoras de Marabel Morgan não se enrolariam em plástico filme nem usariam botas pretas com lacinhos rendados — e que a prostituta inveja a domesticidade da esposa — especialmente seu abrigo físico e sua relativa privacidade sexual.
Ambas as categorias de mulheres — especulativas como as categorias acabam por ser — precisam do que os homens têm para dar: a solicitude material dos homens, não dos seus paus, mas do seu dinheiro.
O pinto é a condição prévia inevitável; sem ele, não há homem, não há dinheiro, não há abrigo, não há proteção. Com ele, pode não haver muito, mas as mulheres preferem os homens ao silêncio, ao exílio, a serem párias, a serem refugiadas solitárias, a serem marginalizadas: indefesas.
Victoria Woodhull — a primeira corretora de bolsa em Wall Street, a primeira mulher a concorrer à presidência dos Estados Unidos (1870), a editora da primeira tradução do Manifesto Comunista nos Estados Unidos (1871), a primeira pessoa detida ao abrigo da notoriamente repressiva Lei de Comstock (1872) travou uma cruzada contra a dependência material das mulheres em relação aos homens porque sabia que qualquer pessoa que tivesse trocado o seu corpo, trocava a sua dignidade humana.
Ela odiava a hipocrisia das mulheres casadas; odiava a condição de prostituição, que degradava tanto as esposas como as prostitutas; e, especialmente, odiava os homens que lucravam sexual e economicamente com o casamento:
“É um truque engenhoso dos homens sobre as mulheres, através do qual eles adquirem o direito legal de se servirem delas sem custos, e que torna desnecessário, para eles, visitar prostitutas profissionais, cujos serviços sexuais só podem ser obtidos com dinheiro. Ora, não é verdade? Os homens sabem que sim.” [13]
Woodhull não romantizava a prostituição; ela não a defendia como uma forma de se libertar do casamento ou de liberdade em si mesma ou como liberdade sexual. A prostituição, Woodhull deixou claro, era por dinheiro, não por diversão; era sobrevivência, não por prazer.
A paixão de Woodhull era a liberdade sexual e ela sabia que a prostituição e a violação de mulheres eram antitéticas a isso. Ela era uma organizadora de massas, e as massas de mulheres eram casadas, sexualmente subordinadas aos homens pelo casamento.
Numa altura em que as feministas não analisavam o sexo diretamente ou articulavam ideias explicitamente antagónicas ao sexo como praticado, Woodhull expunha o estupro conjugal e a relação sexual obrigatória como o objetivo, significado e método do casamento: “De todas as brutalidades horrendas desta época, não conheço nenhuma tão horrenda como as que são sancionadas e defendidas pelo casamento.”.
Woodhull escreveu e expôs o caso adúltero de Henry Ward Beecher com Elizabeth Tilton, esposa de seu melhor amigo. Beecher era um ministro eminente. E sua hipocrisia era a questão principal para Woodhull. Woodhull publicou a exposição no seu próprio jornal, “Woodhull and Clafin’s Weekly”. Foi presa, tal como a sua irmã e coeditora, Tennessee Clafin, por enviar literatura obscena pelo correio. Foi presa durante quatro semanas sem julgamento.
Noite após noite, milhares de violações são cometidas sob o pretexto desta maldita permissão; e milhões — sim, digo-o corajosamente, sabendo de onde falo — milhões de esposas pobres, de coração partido e em sofrimento são obrigadas a atender à luxúria de maridos insaciáveis, quando cada instinto de seu corpo e alma se revolta em sentimentos de repugnância e nojo. Todas as pessoas casadas sabem que isto é verdade, embora possam fingir não ver nem ouvir essa coisa horrível, e fingir acreditar que é mentira.
“O mundo tem de se assustar com este fingimento para perceber que não existe agora mais nada, entre nações pretensamente iluminadas, exceto o casamento, que invista homens com o direito de se servirem das mulheres, sexualmente, contra a sua vontade. No entanto, o casamento é considerado sinônimo de moralidade! Que o diabo carregue tal moralidade!” [14]
As esposas eram a maioria, as prostitutas a minoria, a prostituição a condição de cada uma, violação era o umbigo da prostituição.
O repúdio agressivo de Woodhull pela síndrome da mulher boa/mulher má (com a qual as mulheres na altura, como agora, se sentiam tão confortáveis), os seus ataques implacáveis à hipocrisia da “mulher boa” e a sua grosseira recusa de chamar “virtude” ao sofrimento da violação tinham um propósito: unir as mulheres numa percepção comum da sua condição comum.
Vender a si própria era o crime desesperado, necessário e imperdoável das mulheres; não reconhecer a venda dividia as mulheres e obscurecia como e porquê as mulheres eram usadas sexualmente pelos homens; o casamento, o único refúgio das mulheres, era o lugar da violação em massa. Woodhull proclamou-se uma “Amante Livre”, pelo que significava que não podia ser comprada, nem em casamento, nem na prostituição, como geralmente se entende.
Ao dizer às mulheres casadas que tinham de fato vendido seu sexo por dinheiro, ela dizia-lhes que tinham trocado mais do que a prostituta alguma vez vendera: toda a privacidade, toda a independência econômica, toda a individualidade legal, todo o controlo sobre os seus corpos, tanto no sexo como na reprodução.
A própria Woodhull era amplamente considerada como uma puta porque se proclamava sexualmente autodeterminante, sexualmente ativa; ela cuspia na face do duplo padrão sexual. Chamada de puta por um homem numa reunião pública, Woodhull respondeu:
“Um homem a questionar a minha virtude! Terei eu algum direito, como mulher, de lhe responder? Atiro-lhe de novo à cara a intenção, senhor, e ponho-me corajosamente perante si e esta convenção, e declaro que nunca tive relações sexuais com nenhum homem de quem me envergonho de estar lado a lado perante o mundo com o ato. Não tenho vergonha de qualquer ato da minha vida. Na altura, era o melhor que eu conhecia. Nem tenho vergonha de qualquer desejo que tenha sido gratificado, nem de qualquer paixão a que tenha aludido. Cada uma delas faz parte da vida da minha própria alma, pela qual, graças a Deus, não sou imputável perante vós.” [15]
Poucas feministas a apreciavam (Elizabeth Cady Stanton foi uma excepção, como habitual) porque confrontava as mulheres com a sua própria vitalidade sexual, o significado político do sexo, a apropriação sexual e económica do corpo das mulheres pelos homens, a usurpação do desejo feminino pelos homens para os fins de seu próprio poder ilegítimo. Ela era direta e apaixonada e fez com que as mulheres se lembrassem que tinham sido violadas.
Ao concentrar-se no valor sexual aparente e real das esposas e prostitutas, ela fez a reivindicação básica do feminismo radical: toda a liberdade, incluindo a liberdade sexual, começa com um direito absoluto ao próprio corpo — à autopropriedade física. Ela sabia também, tanto em termos práticos como políticos, que o sexo forçado no casamento levava a uma gravidez forçada no casamento: “Protesto contra esta forma de escravatura, protesto contra o costume que obriga as mulheres a dar o controle das suas funções maternas a qualquer pessoa.” [16]
Victoria Woodhull exerceu a inteligência sexual no discurso público, nas ideias e no ativismo. Ela é uma das poucas mulheres que o fez. Este esforço exigiu todos os outros tipos de inteligência que distinguem os humanos dos animais: alfabetização, intelecto, inteligência criativa, inteligência moral. Algumas consequências da inteligência sexual tornam-se claras no exercício da mesma por Woodhull: ela fez com que as mulheres a quem se dirigiu pessoalmente e de forma impressa enfrentassem o sistema sexual e econômico construído sobre seus corpos.
Ela era uma das grandes filósofas e agitadoras da liberdade sexual — mas não como os homens entendem, pois Victoria abominava a violação e a prostituição, reconhecia-as quando as via dentro do casamento ou fora dele, não aceitava ou condescendia a violência contra as mulheres implícita nelas.
“Ouso afirmar”, ela chegou a dizer, “que a partir do momento em que a mulher se emancipa da necessidade de ceder o controle de seus órgãos sexuais ao homem para assegurar um lar, comida e roupas, a desgraça da desmoralização sexual será selada.” [17]
Uma vez que as mulheres experimentavam a desmoralização sexual da forma mais abjeta nas relações sexuais, Woodhull não se esquivou da conclusão inevitável: “A partir desse momento, não haverá relações sexuais, exceto as desejadas pelas mulheres. Será uma completa revolução em matéria sexual…” [18]
A relação sexual não desejada e iniciada pela mulher era estupro, na análise de Woodhull. Ela antecipou as críticas feministas atuais das relações sexuais — modestas e raras como são — em um século. Como para celebrar o centenário do repúdio de Woodhull às relações sexuais supremacistas masculinas, Robin Morgan, em 1974, transformou a visão de Woodhull em um firme princípio: “afirmar que o estupro existe quando as relações sexuais não são iniciadas pela mulher, a partir de seu próprio e genuíno afeto e desejo” [19]
Isso choca, desconcerta — quem poderia imaginar, o que poderia significar? Agora, como antes, é uma mulher falando, não um movimento. Woodhull não foi levada a sério como pensadora, escritora, editora, jornalista, ativista, pioneira, por aqueles que a seguiram — nem pelos historiadores, professores, intelectuais, revolucionários, reformistas; nem pelos amantes ou estupradores; nem pelas mulheres.
Se ela fizesse parte do diálogo cultural sobre as questões sexuais, todo o desenvolvimento subsequente dos movimentos pela liberdade sexual teria tido um caráter diferente: porque ela odiava o estupro e a prostituição e, em um ensaio recente, a romancista Alice Walker escreveu: “Declaro que qualquer relação sexual entre um homem livre e um ser humano que ele possui ou controla é estupro”. (ver “Embracing the Dark and the Light”, Essence, julho de 1982, p. 117).
Essa definição tem a vantagem de articular o poder, que é tanto o contexto como a substância do ato. Ela compreendeu-os como violações da liberdade sexual, coisa que os homens liberais não entenderam. E então foi por isso que ela foi excluída: os homens queriam o estupro e a prostituição.
Ela ameaçava não apenas aquelas instituições sagradas, mas as alucinações masculinas que embelezavam essas instituições: aquelas visões alegres de mulheres felizes, engaioladas, domesticadas ou desesperadas, indiferentes ao estupro, indiferentes a serem compradas e vendidas. Sua inteligência sexual foi desprezada, depois ignorada, por causa daquilo que ela revelou: quem odeia a verdade odeia a inteligência que a traz.
A inteligência sexual nas mulheres, essa inteligência mais rara em um mundo de supremacia masculina, é necessariamente uma inteligência revolucionária, o oposto da pornográfica (que simplesmente reitera o mundo como ele é para as mulheres), o oposto da vontade de ser usada, o oposto do masoquismo e do ódio a si mesma, o oposto da “mulher boa” e da “mulher má”, ambas.
Não é em ser uma prostituta que a mulher se torna uma fora-da-lei nesse mundo de homens; mas sim na posse de si mesma, em ter propriedade e controle efetivo de seu próprio corpo, de sua separatividade e distinção, da integridade de seu corpo como dela, e não dele.
A prostituição pode ser contra a lei escrita, mas nenhuma prostituta desafia as prerrogativas ou o poder dos homens enquanto classe através da prostituição. Nenhuma prostituta cria qualquer modelo de libertação ou de ação num mundo de liberdade que possa ser usado com inteligência e integridade por mulheres; o modelo existe para seduzir as falsas revolucionárias da sexualidade, garotas ingênuas liberacionistas, e para servir os homens que as desfrutam.
A prostituta não é uma mulher honesta. Ela manipula como a mulher manipula. Da mesma forma, nenhuma mulher honesta pode viver em casamento: nenhuma mulher honesta na sua vontade de ser livre. O casamento entrega o seu corpo a outro para ser usado: e não há base para o autorrespeito neste arranjo carnal, por muito santificado que seja pela igreja e pelo Estado.
Esposa ou prostituta: ela é definida pelo que os homens querem; a inteligência sexual é interrompida. Esposa ou prostituta: parafraseando Thackeray, seu coração está morto (“O seu coração estava morto muito antes do seu corpo. Ela teve de vendê-lo para se tornar a esposa de Sir Pitt Crawley. Mães e filhas fazem a mesma barganha todos os dias em Vanity Fair.” [20]).
Esposa ou prostituto: ambas são fodidas, gestam crianças, ressentem, sofrem, crescem indiferentes, querem mais. Esposa ou prostituta: a ambas lhes é negada uma vida humana, forçadas a viver apenas uma vida fêmea. Esposa ou prostituta: inteligência negada, aniquilada, ridicularizada, obliterada, preparada para se render. Esposa ou prostituta: os dois tipos de mulheres que os homens reconhecem, que os homens deixam viver. Esposa ou prostituta: espancadas, estupradas, prostituídas; os homens desejam-nas. Esposa ou prostituta: a puta vem do frio lá de fora para se tornar esposa, se o puder fazer; a esposa, jogada ao frio, torna-se na puta, se tiver que o fazer.
Há algum jeito de sair de casa que não leve, inevitável e horrivelmente, à esquina da rua? Essa é a questão com se deparam as mulheres de direita. Essa é a questão com que todas as mulheres se deparam, mas as mulheres de direita o sabem. E no caminho — de casa para a rua, da rua para casa — há algum lugar, motivo ou chance para a inteligência feminina que não seja simplesmente procurar pelo melhor comprador?
“Por isso, senhoras, vós que preferis o trabalho à prostituição, que passais dias e noites a prover às necessidades da vossa família, compreende-se naturalmente que estais degradadas; uma mulher não deve fazer nada; o respeito e a honra pertencem à ociosidade. Vós, Victoria de Inglaterra, Isabella de Espanha — vós comandais, por isso estais radicalmente degradadas.”
— Jenny P. D’Hericourt, A Woman’s Philosophy of Woman; ou Woman Affranchised, 1864
O trabalho sexual das mulheres é, na sua maioria, privado — no quarto ou em segredo — as prostitutas podem ser vistas, mas a forma como os compradores as usam não pode. Idealmente, as mulheres não fazem nada; as mulheres são simplesmente mulheres. Na verdade, as mulheres são usadas em privado ou em segredo, sendo mulheres.
Na concepção ideal de feminilidade, as mulheres não fazem trabalho que possa ser visto: as mulheres só fazem trabalho sexual oculto. No mundo real, as mulheres que trabalham por salários fora do sexo estão perigosamente fora da esfera feminina; e as mulheres são denegridas (sic) por não serem ideais – — aparentemente ociosas, intocadas pelo trabalho visível.
Por detrás da cortina de fumaça do ócio ideal, há sempre o trabalho das mulheres.
O trabalho da mulher, em primeiro lugar, é o casamento.
“De manhã estou sempre nervosa”, escreveu Carolina de Jesus. “Tenho medo de não conseguir dinheiro para comprar comida para comer… (…) O Senhor Manuel apareceu dizendo que queria casar comigo. Mas eu não quero. (…) Nenhum homem vai gostar de uma mulher que não consegue parar de ler e sai da cama para escrever e dorme com papel e lápis debaixo da sua almofada. É por isso que prefiro viver sozinha, pelos meus ideais.” [21]
A mulher casada muitas vezes está num casamento porque o seu ideal é comer, e não escrever.
O trabalho da mulher, em segundo lugar, é a prostituição: serviço sexual fora do casamento por dinheiro.
“Gostaria tanto de ter a ilusão de ter alguma liberdade de escolha”, disse J. em “The Prostitution’s Papers”, de Kate Millett. “Talvez seja apenas uma ilusão, mas eu preciso de pensar que tive alguma liberdade. No entanto, depois percebi quão determinada eu estava na forma como entrei na prostituição, o quanto a minha vida tinha sido determinada, o quanto eu estava fodida. (…) Por isso, acreditei que foi isso que eu escolhi. O que é mais aterrador é olhar para trás, perceber o que passei e o que aguentei.” [22]
A mulher na prostituição aprende, como disse Linda Lovelace em Ordeal, “a se contentar com os menores triunfos imagináveis, a ausência de dor ou a diminuição momentânea do terror”. [23]
A mulher na prostituição muitas vezes está na prostituição porque seu ideal é a sobrevivência física — sobreviver ao cafetão, sobreviver à pobreza, não ter para onde ir.
A condição social da mulher é construída sobre uma premissa simples: as mulheres podem ser fodidas e ter bebês, portanto as mulheres devem ser fodidas e ter bebês. Às vezes, especialmente entre os sofisticados, “penetrada” é substituído por “fodida”: as mulheres podem ser penetradas, portanto, as mulheres devem ser penetradas.
Essa lógica não se aplica aos homens, seja qual for a palavra utilizada: os homens podem ser fodidos, portanto os homens devem ser fodidos; os homens podem ser penetrados, portanto os homens devem ser penetrados. Essa lógica se aplica somente às mulheres e ao sexo. Não se diz, por exemplo, que as mulheres têm mãos delicadas, portanto, as mulheres devem ser cirurgiãs. Ou as mulheres têm pernas, portanto, as mulheres devem correr, pular, escalar. Ou as mulheres têm mentes, portanto, as mulheres devem usá-las.
Aprende-se, entretanto, que as mulheres têm órgãos sexuais que devem ser usados por homens, ou as mulheres não são mulheres: elas são de alguma forma menos ou mais, o que é ruim e completamente desencorajado.
As mulheres são definidas, valorizadas, julgadas de uma única maneira: como mulheres — ou seja, com órgãos sexuais que devem ser usados. Outras partes do corpo não são significativas, a menos que usadas no sexo ou como indicadores de disponibilidade ou desejabilidade sexual. A inteligência não conta. Ela não tem nada a ver com o que é uma mulher.
Mulheres já nascem numa reserva de trabalho específica para mulheres: o trabalho é sexo. A inteligência não altera, reforma ou revoluciona esse fato basilar da vida para as mulheres. Mulheres são marcadas para o casamento e a prostituição através de uma ferida entre as pernas, reconhecidas como tal quando homens demonstram seu estranho pavor de mulheres. A inteligência não cria nem destrói essa ferida; nem muda os usos da ferida, a mulher, o sexo.
O trabalho da mulher é feito da cintura pra baixo; a inteligência está mais acima. Mulheres estão mais abaixo. Homens estão mais acima. É um esquema simples e estúpido; mas, aparentemente, os órgãos sexuais nas e das mulheres são repulsivos o bastante para justificar esse esquema, e torná-lo auto-evidentemente verdadeiro.
A inteligência natural das mulheres, embora expandida por aquilo que as mulheres dão um jeito de aprender apesar de seu baixo status, manifesta-se na sobrevivência: aguentar, contar o tempo, suportar a dor, alhear-se, absorver o luto — especialmente, o luto de seu próprio eu.
As mulheres sobrevivem ao uso masculino de si próprias — casamento, prostituição, estupro; a inteligência das mulheres se expressa em encontrar maneiras de suportar e encontrar significado no insuportável, aguentar ser usada por causa do seu sexo. “Sexo com homens… como posso dizer… falta pessoalidade” [24], escreveu Maryse Holder em “Give Sorrow Words”.
Algumas mulheres querem trabalhar: não trabalho sexual, mas trabalho real; trabalho que os homens, aqueles humanos de verdade, fazem para ganhar a vida. Elas querem um salário honesto por trabalho honesto.
Uma das prostitutas que Kate Millet entrevistou fazia U$800 dólares por semana no seu auge. “Com um PhD. e depois de dez anos de experiência na docência”, escreveu Millet, “só me foi permitido fazer U$60 dólares por semana.” [25].
O trabalho das mulheres que não seja casamento ou prostituição é maioritariamente segregado, sempre mal pago, estagnante e sexualmente estereotipado. Mulheres recebem significantemente menos que homens em trabalhos equivalentes.
Não é fácil encontrar trabalho equivalente. As consequências dessa inequidade — independentemente do que dizem as porcentagens em um dado ano, em qualquer país — não são novas para as mulheres. Incapazes de vender trabalho sexualmente neutro para ganhar a vida, mulheres devem vender sexo.
“Subordinar mulheres a uma ordem social em que ela deve trabalhar para viver”, escreveu Jenny D’Hericourt para o socialista francês Joseph Proudhon em meados de 1800, “é desejar a prostituição; pois o desdém do produtos extende-se ao valor do produto (…) A mulher que não consegue viver do trabalho, só pode fazê-lo em se prostituir; ser igual ao homem ou à cortesã, tal é a alternativa” [26]
A visão igualitária de Proudhon não poderia se estender para incluir mulheres. Ele escreveu para D’Hericourt:
“(…) Não admito que, qualquer que seja a reparação que possa ser devida à mulher, de terços conjuntos com seu marido (ou pai) e seus filhos, a justiça mais rigorosa jamais poderá fazer dela uma IGUAL do homem; (…) nem admito que esta inferioridade do sexo feminino constitua para ela ou servidão ou humilhação ou uma diminuição da dignidade, liberdade ou felicidade. Eu sustento que o contrário é verdadeiro.” [27]
O argumento de D’Hericourt constrói o mundo das mulheres: as mulheres devem trabalhar por salários justos em trabalho não-sexual ou devem vender-se aos homens; o desprezo dos homens pelas mulheres faz com que o trabalho das mulheres valha menos simplesmente porque as mulheres valem menos; a desvalorização do trabalho das mulheres é predeterminada pela desvalorização das mulheres como uma classe sexual; as mulheres acabam tendo que se vender porque os homens não comprarão trabalho que não seja trabalho sexual a salários que permitam às mulheres se despojarem do sexo como uma forma de trabalho.
A resposta de Proudhon constrói o mundo dos homens: no melhor de todos os mundos possíveis — reconhecendo que aconteceu alguma discriminação econômica contra as mulheres — nenhuma justiça na Terra pode tornar as mulheres iguais aos homens porque as mulheres são inferiores aos homens: esta inferioridade não humilha ou degrada as mulheres; as mulheres encontram felicidade, dignidade e liberdade nesta desigualdade precisamente porque são mulheres — esta é a natureza das mulheres; as mulheres estão sendo tratadas com justiça e são livres quando são tratadas como mulheres — isto é, como os inferiores naturais dos homens. O admirável mundo novo que Proudhon queria era, para as mulheres, o mesmo mundo antigo que as mulheres já conheciam.
D’Hericourt reconheceu o que Victoria Woodhull não reconheceria:
“O desprezo do produtor se estende ao valor do produto. O trabalho por salários fora do trabalho sexual não libertaria efetivamente as mulheres do estigma de serem mulheres, porque o estigma precede a mulher e predetermina a subvalorização de seu trabalho”.
Isto significa que as mulheres de direita estão corretas quando dizem que valem mais dentro de casa do que fora dela. Em casa, seu valor é reconhecido e no local de trabalho não o é.
No casamento, o trabalho sexual é recompensado: à mulher é geralmente “dado” mais do que ela mesma poderia ganhar em um emprego. No mercado, as mulheres são exploradas como mão-de-obra barata. O argumento de que o trabalho fora de casa torna as mulheres sexual e economicamente independentes dos homens é simplesmente falso. As mulheres recebem muito pouco. E as mulheres de direita sabem disso.
As feministas sabem que se as mulheres receberem salário igual por trabalho igual, elas ganharão independência sexual e também econômica. Mas as feministas têm se recusado a enfrentar o fato de que, num sistema social que odeia mulheres, as mulheres nunca serão pagas com salários iguais.
Os homens, em todas as suas instituições de poder, são sustentados pelo trabalho sexual e pela subordinação sexual das mulheres. O trabalho sexual das mulheres deve ser mantido; e os baixos salários sistemáticos por trabalho sexualmente neutro forçam efetivamente as mulheres a vender sexo para sobreviver.
O sistema econômico que paga às mulheres salários mais baixos do que aos homens realmente pune as mulheres por trabalharem fora do casamento ou da prostituição, uma vez que as mulheres trabalham muito por salários baixos e ainda devem vender sexo.
O sistema econômico que pune as mulheres por trabalharem fora do quarto pagando salários baixos contribui significativamente para a percepção das mulheres de que servir homens sexualmente é uma parte necessária da vida de qualquer mulher: ou de que outra forma ela poderia viver?
As feministas parecem pensar que o salário igual por trabalho igual é uma reforma simples, enquanto não é nenhuma reforma; é uma revolução. As feministas têm se recusado a enfrentar o fato de que salário igual por trabalho igual é impossível enquanto os homens governarem as mulheres; e as mulheres de direita têm se recusado a esquecê-lo.
A desvalorização do trabalho feminino fora de casa empurra as mulheres de volta para casa e incentiva as mulheres a apoiar um sistema no qual, aos seus olhos, ele recebe por ambos — sendo a sua parte do salário mais do que ela própria conseguiria ganhar.
No local de trabalho, o assédio sexual fixa irreversivelmente o baixo status das mulheres. As mulheres são sexo; mesmo arquivando ou datilografando, as mulheres são sexo. A violência debilitante e insidiosa do assédio sexual é difundida no local de trabalho. Ela faz parte de quase todos os ambientes de trabalho. As mulheres distraem; as mulheres apaziguam; as mulheres se submetem; as mulheres desistem; as raras e corajosas mulheres que lutam são postas nos tribunais, muitas vezes ficando sem trabalho durante anos. Também há estupro no local de trabalho.
Onde está o lugar para a inteligência — alfabetização, intelecto, criatividade, discernimento moral? Onde, neste mundo em que as mulheres vivem, circunscrito pelos usos a que os homens colocam os órgãos sexuais das mulheres, está o cultivo de habilidades, o cultivo de dons, o cultivo de sonhos, o cultivo de ambições? De que serve a inteligência humana para uma mulher?
“Claro que”, escreveu Virginia Woolf, “as mulheres cultas eram muito feias; mas depois eram muito pobres. Ela gostaria de alimentar Chuffy para chegar a um acordo sobre as rações de Lucy e ver o que ele diria então sobre Henrique Oitavo.” [28]
“’Não, não faria bem nenhum se ele lesse meu manuscrito (…)’” escreveu Ellen Glasgow em seu livro de memórias. ’O melhor conselho que posso lhe dar’, disse ele, com uma franqueza encantadora, ‘é parar de escrever, voltar para o Sul e ter alguns bebês’. E eu acho, embora possa ter ouvido essa sabedoria madura de outros homens, provavelmente de muitos, que ele acrescentou: ‘A maior mulher não é a mulher que escreveu o melhor livro, mas a mulher que teve os melhores bebês. Isso pode ser verdade’. Eu não fiquei para disputar isso’. Entretanto, também era verdade que eu queria escrever livros, e nunca tinha sentido o desejo mais tênue de ter bebês.” [29]
Woodhull pensava que a liberdade da coerção sexual viria com o trabalho no mercado. Ela estava errada; o mercado tornou-se, como os homens queriam, outro lugar para intimidação sexual, outra arena de perigo para as mulheres já sobrecarregadas com demasiadas arenas desse tipo.
Wolf colocou sua fé na educação e na arte. Ela também estava errada. Os homens apagam; a misoginia distorce; a inteligência das mulheres ainda é tanto punida quanto desprezada.
As mulheres de direita pesquisaram o mundo: elas o consideram um lugar perigoso. Elas veem que o trabalho as sujeita a mais perigos por parte de mais homens; isso aumenta o risco de exploração sexual. Veem que a criatividade e a originalidade de sua espécie são ridicularizadas; veem as mulheres expulsas do círculo da civilização masculina por terem ideias, planos, visões e ambições.
Elas veem que o casamento tradicional significa vender a um homem, não a centenas: o melhor negócio. Elas veem que as ruas são frias e que as mulheres nelas estão cansadas, doentes e machucadas. Elas veem que o dinheiro que podem ganhar não as tornará independentes dos homens e que ainda terão que jogar os jogos sexuais de sua espécie: em casa e no trabalho também.
Elas não veem nenhuma maneira de tornar seus corpos autenticamente seus e de sobreviver no mundo dos homens. Elas também sabem que a esquerda não tem nada melhor para oferecer: os homens de esquerda também querem esposas e prostitutas; os homens de esquerda valorizam muito as prostitutas e muito pouco as esposas. As mulheres de direita não estão erradas.
Elas temem que a Esquerda, ao enfatizar o sexo impessoal e a promiscuidade como valores, as torne mais vulneráveis à agressão sexual masculina e que sejam desprezadas por não gostarem disso. Elas não estão erradas.
As mulheres de direita veem que dentro do sistema em que vivem não podem tornar seus corpos delas próprias, mas podem concordar em privatizar a propriedade masculina: mantê-las uma a uma, por assim dizer. Elas sabem que são valorizadas por seu sexo — seus órgãos sexuais e sua capacidade reprodutiva — e assim tentam elevar seu valor: através da cooperação, manipulação, conformidade; através de demonstrações de afeto ou tentativas de amizade; através da submissão e obediência; e especialmente através do uso do eufemismo — “feminilidade”, “mulher total”, “boa”, “instinto materno”, “amor materno”.
Seu desespero é silencioso; escondem suas contusões de corpo e coração; vestem-se cuidadosamente e têm boas maneiras; sofrem, amam a Deus, seguem as regras. Veem que a inteligência exibida em uma mulher é uma falha, que a inteligência percebida em uma mulher é um crime. Elas veem o mundo em que vivem e não estão erradas.
Elas usam o sexo e os bebês para se manterem valorizadas porque precisam de um lar, comida, roupas. Elas usam a inteligência tradicional da mulher fêmea, não humana: elas fazem o que têm que fazer para sobreviver.