A crise gerada pela pandemia no Brasil parece realmente estar criando oportunidades, já nos disse o querido Lemann — cuja fortuna ultrapassa os R$100 bilhões. Esqueça investimentos em políticas públicas, taxação de grandes fortunas, revogação da reforma trabalhista e da PEC do Teto de Gastos; quem vai nos salvar é ninguém menos que a Natura. A empresa fechou a quarta-feira (29/07) com a maior alta da Ibovespa após anunciar a participação de Thammy Miranda na campanha de dia dos pais. O rebuliço aconteceu seguindo a cartilha (muito previsível) do universo virtual tuiteiro pós-moderno, que funciona assim:
- uma empresa conhecida toma algum posicionamento (isto é, basicamente, fazer um post ou campanha mostrando que mulheres têm pelos ou que casais homoafetivos existem. Uau);
- a notícia chega aos ouvidos dos fascistas e conservadores, que se mobilizam em massa para boicotar a empresa e atacar as pessoas retratadas;
- setores progressistas (sinto vergonha de ter que gastar vocábulo dizendo esquerda, então assim será mencionado aqui) não deixam barato e mostram toda a sua $olidariedade a empresa.
Só um pequeno adendo: no dia 24 de julho, a Petrobrás, maior empresa do país, entregou três plataformas de petróleo em um leilão para um comprador do Rio de Janeiro pelo valor de R$7,5 milhões. Para se ter uma ideia, o iate do Eike Batista foi leiloado por R$14,4 milhões. O fato foi pouquíssimo noticiado; progressistas não mostraram solidariedade às reservas nacionais de petróleo sendo entregues a preço de banana para a iniciativa privada. Por falar em iniciativa privada, adivinhem qual empresa tomou os holofotes prafrentex nessa semana?
Não é preciso ter um enorme conhecimento sobre marketing ou ser um economista com uma vasta biblioteca para entender quem sai ganhando com essas jogadas de marketing. Spoiler: não são as minorias.
O nome disso é posicionamento de marca. Uma rápida busca no Google nos diz que “posicionamento de marca é o lugar que a empresa quer ocupar nos coração e mente do seu público-alvo” (fofo). Isso envolve criar uma forma própria de se comunicar, capaz de atender às demandas do seu nicho. Assim nasceram o black money, o pink money e até o red money.
É isso o que a C&A (sim, aquela empresa condenada a pagar R$100 mil reais por trabalho escravo) faz quando vende camisetas com dizeres “feministas”; quando o Burger King (sim, aquela rede de fast food — que vende até hambúrguer vegetariano — que não dá descanso semanal aos funcionários) doa coroas de papelão coloridas aos clientes; ou quando o Carrefour (sim, aquele supermercado onde um jovem negro foi sufocado até a morte) faz um post celebrando o dia da visibilidade trans.
O caso da Natura parece ainda mais problemático. É inconcebível a ideia de ter como prioridade política parabenizar uma empresa que lucrou R$2,5 bilhões de reais no ano passado, enquanto a população da vida real (fora do Twitter) morre de fome à espera do auxílio emergencial; enquanto o dinheiro público destinado ao combate à pandemia é desviado para a compra de votos; enquanto 1,2 milhão de trabalhadores brasileiros perderam seus empregos no primeiro semestre; enquanto casos de violência doméstica sobem durante a quarentena.
É sobretudo inconcebível que em 2020 algumas pessoas progressistas e de esquerda ainda não entendam que a indústria da beleza lucra com a opressão e a submissão das mulheres. O ideal de beleza que nos machuca e enfia mais e mais procedimentos horripilantes em nossos corpos está cada vez mais distante de ser alcançado (é essa a ideia, na verdade). O mercado desumaniza, pornifica e rebaixa as mulheres para que precisemos de seus produtos em busca de um padrão simplesmente inalcançável, vendendo a feminilidade como bem-estar e autocuidado. Uma indústria que sobrevive às custas da baixa autoestima das mulheres não pode ser sustentável nem a favor das minorias. Ela está a serviço do trisal mais apaixonado desse universo: capitalismo-patriarcado-racismo. É indefensável em qualquer circunstância.
Não dá para defender empresas bilionárias e se dizer antifascista, anticapitalista, antipatriarcal e/ou antirracista. Parece até ingênuo pensar que algumas pessoas que levantam essas bandeiras ainda comprem a falácia da representatividade na publicidade. Neste momento de profunda crise econômica, social e sanitária, o lucro dos bilionários brasileiros aumentou U$34 bilhões de dólares. Não dá para olhar para isso e achar que empresas que cooptam movimentos sociais são revolucionárias. Capitalismo e patriarcado nunca serão revolucionários, mesmo fantasiados de solidários às causas que nos são importantes.
É um erro grotesco pensar que uma reação progressista ao boicote à Natura a fez fechar em alta na bolsa. O que dá lucro é a feminilidade que nos aprisiona e nos mata. Não é uma propaganda diferentona que vai inserir debates sobre direito das mulheres e diversidade dentro das casas brasileiras. Muito pelo contrário: priorizar a discussão sobre o posicionamento de uma empresa de cosméticos bilionária enquanto o Brasil ultrapassa as 90 mil mortes por coronavírus no país só afasta as pessoas do contato com questões como machismo e preconceito; cria um ressentimento de classe, uma sensação de estar duplamente à margem — pelo governo Bolsonaro e, agora, também por setores progressistas. Se queremos, de fato, trabalhar por mudanças estruturais na sociedade, precisamos urgentemente nos mostrar como alternativa à barbárie, e não cega a ela.