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Guia de Estudos: Trabalho Doméstico e Reprodutivo

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Guia de Estudos: Trabalho Doméstico e Reprodutivo

Para entender o conceito, propostas e as disputas internas no feminismo

Caso esteja sem tempo neste momento e queira ler uma coisa rápida e introdutória para ficar mais à vontade com o tema, os artigos abaixo são curtos e darão uma ideia sobre a temática:

Ambos os artigos acima são traduções, o que significa que são escritos por mulheres de outros contextos e países – e, mesmo que a questão central permaneça a mesma, se a leitora for brasileira, como eu, poderá não se identificar em alguns aspectos do texto. O primeiro texto, por exemplo, é de uma autora que escreve da Grã-Bretanha; o segundo, dos Estados Unidos. Portanto, se quiser uma leitura rápida contextualizada no Brasil, pode optar por esses textos mais recentes aqui do blog:

Também pode optar por ouvir sobre trabalho reprodutivo numa dessas participações:

Agora, se você está efetivamente interessada em entender as teorizações e disputas de narrativas dentro do movimento feminista — quem disse que as tarefas domésticas eram trabalho, quem afirmou que a reprodução era “trabalho reprodutivo”, como ela está ligada à opressão da mulher e que tipo de soluções os diversos setores do movimento feminista apontaram e apostaram, aí você vai ter que ler os materiais um pouco mais extensos.

Uma das mulheres marxistas contemporâneas que escreveu com mais pormenores sobre o tema, chamando de “teoria da reprodução social”, é Tithi Bhattacharya. É um texto bastante completo e esclarecedor, mas cujo público-alvo são marxistas, portanto, pessoas com conhecimento prévio dos conceitos básicos e da teoria (por isso, pode ser difícil de ler para quem não está acostumada). Podem encontrar a tradução abaixo:

Contudo, ainda que as disputas sobre o conceito de “trabalho reprodutivo” geralmente sejam frequentemente associadas à segunda onda feminista, o termo é muito mais antigo que isso. Até mesmo o ensaio “Um teto só seu”, publicado em 1929 por Virginia Wolf, já faz menção a essa conceitualização. Mas as verdadeiras raízes deste termo estão em Marx e Engels e na teorização sobre a divisão sexual do trabalho. Cito Evelynn Nakano Glenn, que afirma, em seu trabalho “Da servidão ao serviço: continuidades históricas na divisão racial do trabalho reprodutivo pago”:

O conceito de trabalho reprodutivo originou na observação de Karl Marx de que todo sistema de produção envolve tanto a produção das necessidades da vida e a reprodução das ferramentas e da força de trabalho necessárias à produção (marx e Engels, 1969, p. 31). As elaborações recentes do conceito emergem da máxima de Engels de que “a força determinante na história é, em última instância, a produção e reprodução da vida imediata”. Isto tem, ele observou, “um caráter duplo: de um lado, a produção da subsistência; e, do outro, a produção dos próprios seres humanos” (Engels, 1972, p. 71). Apesar de ser frequentemente equacionado com o trabalho doméstico ou estreitamente definido como uma referência à renovação da força de trabalho, o termo reprodução social chegou a ser mais amplamente concebido, particularmente por historiadores sociais, para referir à criação e recriação das pessoas como seres não só físicos, mas culturais e sociais (Ryan, 1981, p. 15). – Evelyn Glenn, no capítulo “Divisão Racial do Trabalho Reprodutivo”, p. 2-3, 1992.

Dentro das análises de Marx, Engels e mesmo de Lênin, os três grandes pensadores do comunismo, já muito se falava da necessidade de abolição da família e da divisão sexual do trabalho para a libertação da mulher (aliás, se deseja começar mesmo do começo, sugiro a leitura do clássico A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de Engels). Porém, como é sabido, nem todos os textos de Marx foram publicados sejam ainda conhecidos. Por outro lado, também é possível que Marx nunca tenha aprofundado nessa questão em particular porque, convenhamos, ninguém é obrigado a desvendar todos os problemas do mundo.

É a partir da necessidade de responder algumas questões ainda nebulosas sobre a opressão da mulher, sobre a falsa divisão entre as esferas pública e privada, e também para entender de que modo o trabalho doméstico e reprodutivo impactavam a exploração do trabalho dito produtivo que os e, principalmente, as teóricas marxistas e feministas se debruçam sobre a questão.

Um bom exemplo desse questionamento às ‘lacunas’ deixadas por Marx, Engels e Lenin sobre a esfera da reprodução pode ser encontrado no texto “Questões Feministas sobre Teoria Marxista”, originalmente publicado no jornal União Proletária, n. 26, Mar/Mai 1982, pelo Comitê Nacional de Mulheres do En Lluita (EL!), movimento trotskista na Catalunha (Espanha). Citando um trecho inicial do texto para dar uma ideia:

“Para o Comitê Nacional de Mulheres (CNM) do EL!, existem duas questões teóricas importantes sobre a opressão das mulheres que devem ser abordadas por nossa Organização:

1) Qual é a natureza e o papel das contradições entre homens e mulheres? Deveria a contradição entre os sexos ser colocada em pé de igualdade com a contradição de classe?

2) O que é uma verdadeira estratégia revolucionária para a libertação das mulheres?

Ao examinar a literatura marxista clássica, ficamos impressionadas com a quase ausência de uma análise da situação das mulheres em nossa sociedade, como nas sociedades anteriores. De fato, podemos afirmar claramente que, se o Programa do EL! contém sérias fraquezas, omissões e erros na questão das mulheres, isto porque nosso Programa é uma fiel cópia em carbono da linha marxista clássica sobre a questão e que a teoria marxista contém as mesmas fraquezas, omissões e erros.”

A conclusão desse texto, na verdade, reforça as dúvidas iniciais, vou citar algumas dessas dúvidas e a conclusão do artigo para fins de elucidação:

“Como vamos garantir o controle das mulheres sobre seus corpos e sua reprodução? Na prática, em todos os países “socialistas” do mundo, tem havido uma disputa entre os direitos das mulheres e os requisitos da população. As mães são fortemente encorajadas a produzir filhos para a pátria socialista ou, como é o caso na China, são punidas por isso. Dependendo das necessidades da população do país, o aborto e a contracepção são amplamente acessíveis ou quase ilegais. Os direitos das mulheres tendem a ficar em segundo lugar atrás das necessidades do “socialismo”.

Finalmente, se admitirmos que não podemos socializar totalmente todos os aspectos do trabalho doméstico e dos cuidados infantis, como vamos travar a luta para que os homens renunciem a algum tempo livre para compartilhar esse trabalho? Pois se as mulheres forem iguais, os homens terão que renunciar a seus privilégios. E esta é uma luta que deve ser iniciada hoje.

Nós não acreditamos que os homens de repente vejam a luz do dia após a revolução.”

Pode ler o texto traduzido no link abaixo:

Esse artigo já é da década de 70 e é de fato nessa altura, a chamada segunda onda feminista, que as propostas para a “solução” (mais ou menos) desse problema começam a pipocar entre o movimento feminista, com não poucas discordâncias entre o setor de feministas dito “socialistas” e o feminismo radical.

As autoras mais conhecidas por aprofundar essa questão são Silvia Federici, Mariarosa Dalla Costa e Selma James. Tenham atenção que, apesar de estarmos falando em “marxistas” e “marxismo”, existe uma miríade de fraccionismo dentro do marxismo e, portanto, nenhuma dessas teorizações ou das propostas apresentadas por elas pode ser considerada consenso entre grupos marxistas (ou de partidos “de esquerda”). Na verdade, ainda há muita disputa e divergência. Silvia Federici, por exemplo, é da tradição marxista autonomista (mais anarquista que comunista) e, por isso, não é difícil encontrar resistência e divergência às suas posições dentro dos partidos comunistas e socialistas (embora, em geral, ela esteja sendo muito referenciada e reivindicada, estranhamento, por partidos trotskistas, como o PSOL no Brasil). Pode ler seus textos clássicos sobre a questão aqui:

Sinto que é necessário fazer uma nota importante aqui, nessa disputa de teoria e solução em volta do “trabalho doméstico” e “trabalho reprodutivo” entre autoproclamadas feministas. Uma questão que até hoje é relatada por mulheres feministas organizadas em partidos marxistas em todo lado: a dificuldade de argumentar, debater e expor qualquer aspecto da opressão das mulheres tendo que enquadrá-los na terminologia e na teoria marxista.

Em tese, o materialismo histórico dialético deveria ser o bastante para analisar também as nossas questões – também as feministas usam esse método para entender, por exemplo, a evolução dos papéis sexuais (gênero) ao longo dos tempos, nas diferentes sociedades, de modo a responder à necessidade do poder vigente em termos de produção, consumo e dominação. Isso em tese. Na prática, não raramente os membros dos partidos com quem temos de dialogar, quase sempre homens, caem num economicismo incapaz de responder a complexidade da opressão das mulheres (como já teorizaram Beauvoir em “O Segundo Sexo” e também Firestone no seu livro “A Dialética do Sexo”). Na prática, as mulheres percebem que é preciso enquadrar sua opressão nos moldes do “trabalho” para conseguir apontar a exploração contida (é o que acontece, por exemplo, com o debate sobre prostituição na esquerda, que só pode terminar num tiro no pé das próprias mulheres, que veem sua opressão mais escabrosa, um exercício último da dominação masculina, legitimada como um “trabalho”).

O mesmo acontece no debate sobre trabalho doméstico e reprodução, com algumas autoras, como Silvia Federici, chegando ao ponto de falar no sexo cotidiano como um “trabalho” e também teorizando sobre “trabalho emocional”.

Isso da parte das feministas que disputavam narrativas dentro do marxismo. Por outro lado, as feministas radicais — que não raramente também eram marxistas e parte da esquerda — nunca arredaram o pé de chamar a isto opressão, não trabalho. Apesar de reconhecerem o caráter de trabalho no trabalho doméstico e de cuidados (afinal, foi uma parte significativa do período colonial a escravização de mulheres para fazer o trabalho doméstico e de cuidados da casa-grande e ninguém tem dúvidas de que isso era trabalho), as feministas radicais nunca viram a legitimação dessas situações nos termos do trabalho livre assalariado como resposta para a opressão das mulheres já que, além do capitalismo, elas apontavam a existência de uma dominação masculina na sociedade.

Feita esta contextualização das divergências de análise e sua conjuntura, durante a segunda onda, na década de 70, emerge a campanha por Salários para o Trabalho Doméstico, liderada por Federici e outras “feministas marxistas”. Podem ler a proposta de Silvia Federici no seu texto clássico:

As feministas radicais, no entanto, não viam com bons olhos a proposta de salários para o trabalho doméstico. Temos de lembrar, aqui, que a segunda onda era um ‘fenômeno’ que acontecia nos Estados Unidos e no Reino Unido dos anos 60 e 70. Nos Estados Unidos, o as mulheres brancas ainda sofriam com a propaganda neoliberal do pós-guerra que trouxe com toda a força a “família margarina”, mais formalmente chamada “família atomizada” ou “família nuclear”: pai provedor, mãe dona de casa, dois filhos comportadinhos na escola.

Essa era a família da classe média branca, é claro, nunca uma família negra ou qualquer outra família da classe trabalhadora, que vivia em condições péssimas demais até para que o homem pudesse se dar ao luxo de “manter uma esposa” e explorar sua mão-de-obra gratuita (que, na verdade, explorava, mas a mulher fazia o que ainda hoje chamamos “dupla jornada”: trabalhava fora e dentro de casa, o que fez questionar algumas proposições marxistas de que a opressão da mulher desapareceria com a sua igual participação na força de trabalho).

Contudo, ainda que fosse a família branca, o cenário não era melhor para mulheres racializadas (fossem elas negras, chicanas ou asiáticas): ainda eram as mulheres as responsáveis pelo trabalho doméstico em suas casas e, adicionalmente, só eram maioritariamente admitidas em trabalhos que não eram mais que uma extensão do trabalho doméstico “lá fora”, porém pago. Aliás, isso era especialmente duro para mulheres negras, dado a herança escravagista pujante nos Estados Unidos dos anos 60/70, a política anti-aborto ou de esterilização forçada, a falta de creches e saúde, etc.

Por isso, as feministas radicais estavam, antes, nas frentes de luta por creches 24h, pelo aborto gratuito e seguro, contra as biotecnologias reprodutivas que prometiam um mercado sobre a autonomia reprodutiva das mulheres (ver: FINRRAGE), ou seja: na luta para tirar o trabalho doméstico e a reprodução de dentro do ambiente privado, onde foi colocado para ser mascarado de “amor”, e colocá-lo lá fora, na esfera pública, para ser socializado.

E aqui podem ler, então, uma resposta feminista radical à campanha da Federici:

E também podem ver este vídeo, feito no instagram do blog em parceria com a Cila da QG Feminista e do site Militância Materna, onde discutimos a proposta de assalariar o trabalho doméstico e de cuidados: