Feche os olhos e imagine a seguinte situação: você conhece uma mulher maravilhosa, vocês começam a sair, o assunto flui muito bem e em determinado momento surge uma pergunta: “você é genitalésbica?”
Só eu acho de péssimo gosto uma paquerinha te questionar se você é algo que nem sequer existe?
Procurando no dicionário não há significado, sinônimo ou antônimo que explique essa palavra, não há um artigo científico que a apresente, nem se você jogar no google a encontrará sem que ele corrija: “você quis dizer genital lésbica”.
Tive a infelicidade de conhecê-la por um texto curto e raso publicado em uma revista que propõe ser “para mulheres que se relacionam com mulheres”, que traz a seguinte definição para “genitalésbica”: “lésbicas cis que se recusam a relacionar-se com mulheres trans por causa de seus genitais” (Alícia Moreira, para a revista LésBi)
Portanto, “genitalésbica” foi nada mais, nada menos, que uma palavra criada para segregar lésbicas deslegitimando a sua sexualidade, tendo em vista que, se a mulher se recusa a se relacionar com trans por causa dos seus genitais, para a revista, para autora do texto e para todos que aplaudem esse absurdo, ela deixa de ser lésbica (?), passando a ser algo que não existe, que foi inventado para desmerecê-la e invisibilizá-la.
Estão tentando nos colocar na marginalidade porque, pelo que parece, “o respeito a pluralidade no universo das lésbicas” só acontece se seguirmos as regras impostas por aqueles que entendem que “o falocentrismo na sociedade em que vivemos é meramente simbólico”, assim sendo, por exemplo, teremos de avisar a todas as vítimas de estupro, que tiverem seus corpos penetrados, violados, feridos e humilhados, que a violência que sofreram foi por um falo meramente simbólico, já que a biologia não existe mais!!!!
Seria uma piada de péssimo humor se não fosse verdade que uma revista que escreveu um projeto para uma Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte, projeto 1444/2018, propondo que ela “seria voltada para mulheres lésbicas e bissexuais – cisgêneros (sic) e transgêneros”, teve a IRRESPONSABILIDADE de publicar um texto que visa redefinir o que é ser lésbica, que é uma SEXUALIDADE legítima, para satisfação do sadismo, da lesbofobia e do ódio daqueles que insistem que LÉSBICAS DEVEM SE RELACIONAR com A ou com B, porque do contrário deixam de ser lésbicas, tanto que o texto em questão chega ao absurdo de afirmar que “genitalésbicas sequer são lésbicas e, sim, bi ou pansexuais, no mínimo.”
Isso é compromisso com a pluralidade ou é dar espaço à perseguição a lésbicas? E as mulheres bissexuais, como se sentem lendo isso? Não seria também essa uma forma de invisibilizar/questionar/desmerecer a sexualidade delas?
Parece que a resposta a essa pergunta não importa às responsáveis pela revista, tanto que escolheram fechar os olhos e ouvidos para a violência cometida, como se as que se revoltaram contra ela não fossem dignas do “cuidado de contemplar todas as mulheres” que a revista diz ter.
Não priorizaram o debate, nem sequer buscaram fazê-lo, tanto que deixaram no ar o texto sem dar “abertura para reconhecer a existência de outras vozes e corpos”, sendo eles, o de mulheres que têm o orgulho, prazer, desejo e direito de se relacionarem, as citando, “exclusivamente com vulvas”.
Nem sequer na nota que publicaram lamentaram que mulheres lésbicas tenham se sentido ofendidas e as convidaram/se abriram para que fossem ouvidas/consideradas.
Para a revista, tudo que foi legitimamente apontado por mulheres não significou NADA, escolheram o descaso e o deboche.
Proteção a mulheres? Óbvio que NÃO!
Desta forma, tomada por uma fúria imensa, já que sei a força das palavras, afinal quem as domina detém o discurso, percebo a urgência de um grito de BASTA!
O debate não está sendo ampliado e muito menos é plural, não há uma luta conjunta e nem mesmo igualdade de armas para que o diálogo seja feito de forma horizontal, o que essa revista fez/faz e diversos outros seguimentos do movimentos trans têm feito é segregar, silenciar e ignorar a materialidade dos nossos corpos, o direito a vivermos nossa sexualidade como bem entendermos, chamam de “rompimento com a ordem falocêntrica” a perseguição e o apagamento do que é ser mulher, no texto em questão, do que é ser lésbica.
Dizem que estão “rompendo padrões”, mas estão apenas dando uma nova cara, agora salpicada de glitter e confetes, para a velha e conhecida cura gay, propondo sexo heterossexual como se fosse a única forma de vivência saudável da sexualidade.
Não quer se relacionar com pênis? ERRADA! TRANSFÓBICA! GENITALESBICA! PRECONCEITUOSA! INOMINADA!
E sabem do que chamam isso? De “dar visibilidade a comunidade T”.
O movimento LGB lutou por anos para que fosse compreendido e respeitado que sexualidade tem relação com o sexo (biologia) e não com o gênero (cultura). Quantas paradas, caminhadas, marchas, manifestos e protestos foram feitos para que esse direito nos fosse garantido, para que nossa orientação sexual e nossa liberdade de nos relacionarmos com pessoas do mesmo SEXO não fosse mais considerada doença, crime ou perversão?
O que estão tentando fazer é monstruoso porque não é uma mera palavra, é a tentativa violenta de apagar toda a nossa história de luta e conquistas!
Lésbicas não devem nada a ninguém, nem relacionamento, nem satisfação, nem afeto, nem desejo, na-da!
Lésbicas não são um problema.
Somos livres, entendam isso de uma vez por todas, somos livres para o “Não é Não” como toda mulher é!
Ser sapatão, é ser uma mulher que ama/deseja/se relaciona com outras mulheres, para ilustrar esse ponto pacífico entre nós, ninguém melhor que a incrível Vange Leonel
Sim, sou tríbade, sáfica, lésbia, lesbiana, entendida, invertida, transviada, sapatão, sapa, sapata, francha, bolacha, fanchona, paraíba masculina, mulher-macho, gay, sim senhor, machuda, macha, “dyke”, como dizem as americanas, ou como as mexicanas, tortillera, do tupinambá çacoãimbeguira, do latim virago e, brasileiramente falando, roçadeira, saboeira, moquetona, madrinha, pacona, do aló, do babado ou, se preferirem algo mais erudito, ginófila, andrógina, homófila, fricatrix e homossexual.
Então essa história/invensão/violência de nos chamar de “genitalésbicas” é uma forma pós moderna, pós verdade, pós decência, pós coerência, pós honestidade de serem lesbofóbicos, não há outra explicação.
E isso me deixa furiosa, não apenas porque sou feminista radical, mas PORQUE SOU LÉSBICA e já apanhei, já quase fui expulsa de casa, já perdi amigas que se mataram porque não suportaram a crueldade da sociedade (o caso recente da egípciaSarah Hegazi, mulher lésbica, que suicidou após ser presa e torturada) e já vi lésbicas sendo mortas em razão da lesbofobia (nunca me esquecerei de Luana Barbosa e sua dor após a sessão de espaçamento que sofreu da PM).
O desgaste de ler textos irresponsáveis como esses me causa um asco com o terrível cinismo com que estão sendo tratados nossos afetos e lutas, só quem já amou, ama, já foi amada e é amada por mulheres, mesmo com todos os temores que isso trás, entende a revolta que revistas como a LésBi causam.
Nos comentários da postagem do texto que usa “genitalésbica” para tentar (equivocadamente)nos redefinir, li mulheres diversas indignadas com tamanha violência sendo respondidas como se seus gatilhos, traumas, sentimentos, dores e aflições fossem “discurso de ódio”, “transfobia”, “rad”, “terf”, “cisgênera branca”, “conservadora” e mais uma infinidade de descaso, desrespeito e desumanidade vinda da revista e dos seus apoiadores.
Sendo que a maioria de nós que ali nos manifestamos não pretendíamos calar uma travesti de contar a sua história (claro, desde que para isso ela não recorra a desonestidade e desinformação como fez), muito menos tentar que a revista não desse voz a ela, nós nos unimos para que a Alicia (escritora do texto) e para que as responsáveis pela revista entendessem que não aceitamos ser renomeadas, agredidas e desmerecidas, para deixar claro que não iremos ser apagadas da nossa própria história em nome da tal pluralidade e quebra com os padrões que dizem estar propondo.
Estamos sendo caladas pela acusação de sermos transfóbicas, quando na realidade estamos apenas exercendo nosso direito ao debate, de discordar e não permitir que sejamos destruídas para que construam seus achismos em cima de nós.
Quando foi que travestis e transexuais se tornaram seres intocados? Quando se tornaram portadores da verdade absoluta? Quando foi que se tornou proibido questioná-los? Quando foi que conferiram a travestis o poder de dizer quem somos?
Já que gostam tanto de nomear as coisas, direi o nome disso que a revista fez conosco, é censura em seu estado mais bruto.
Gostar de buceta, vagina, clitóris, vulva, monte de vênus e sejam quais mais nomes lindos e fortes cabem ao sexo de uma mulher é uma liberdade, não é uma obrigação e muito menos transfobia.
Nunca li textos sendo dedicados a renomear gays e heterossexuais, como nunca vi ninguém obrigando que travestis, transexuais ou heterossexuais a se relacionem com A ou B para serem legitimados.
Isso também tem nome, é lesbofobia.
Recorro a Audre Lorde, que no texto “Usos do erótico: o erótico como poder” diz as seguintes e deliciosas palavras
O erótico para mim, opera de várias formas, e a primeira delas consiste em fornecer o poder que vem de compartilhar intimamente alguma atividade com outra pessoa. Compartilhar o gozo, seja ele físico, emocional, psíquico ou intelectual, cria uma ponte entre as pessoas (…)
Buceta pode sim ser parâmetro de atração, considerando que corpos, toques, beijos, gozo, orgasmo, cheiro, gosto, encaixe, tribadismo, dedos, língua e saliva são parte do sexo, da vivência da sexualidade, da liberdade sexual e da construção dos gostos particulares de mulheres lésbicas.
E isso não é reduzir pessoas a genitais, como adoram tanto dizer, é admitir ser um direito da mulher adulta escolher para quem irá “fornecer o poder que vem de compartilhar intimamente alguma atividade”.
Acredito que todo debate seja válido, mas para isso é necessário que haja o mínimo de honestidade.
Tentar renomear lésbicas as chamando de “genitalésbicas”, para satisfazer o ego de quem quer que seja é cruel, além de apagamento histórico de todas as lésbicas que, para que fosse possível existir livremente revistas (privadas ou financiadas por dinheiro público, como é a LésBi), blogs, páginas e sites para “mulheres que se relacionam com mulheres”, tiveram de lutar nas ruas, na política, na sociedade, contra a heterossexualidade compulsória, a violência masculinista e o medo de serem presas, caladas, torturadas, assassinadas e estupradas.
Por isso digo, sem medo de errar, para todos aqueles que desejam uma nova palavra para os seus achismos/teorias/fetiches que criem uma definição/palavra/termo para vocês, que os contemple, mas saiam da nossa sombra!
CHEGA!
Por que não usam “genitalésbicas” para vocês?
Acredito que sei o motivo, não apenas porque é ridículo, da mesma forma que dizer “pinto lésbico” também é, mas assim como os colonizadores fizeram com os povos originais, invadir, dizer ser deles o que é do outro, usupar, apagar, deturpar fatos, recontar a história e se dizerem legítimos, salvadores e descobridores é mais fácil.
Mas aviso, não vai ser fácil não, enquanto houver uma de nós dizendo “não”, milhares de vocês poderão berrar que “sim”, mas essa única lésbica valerá por todas!
Você se relaciona com a pessoa ou com a genital dela? A resposta é ambos!
E se quiserem seguir o exemplo do presidente atual, esbravejando xingamentos para todas que discordam de vocês, tampando os ouvidos, censurando comentários e não admitindo falhas, se a proposta da revista é ser pública, mas sem dar conta do debate e sem ter a coragem de nos encarar sem a cartada do “fóbicas”, apenas lamento o triste caminho que insistem em trilhar, pois desde Safo nós lésbicas seguimos existindo e resistindo, apesar de vocês…
P.S: É importante que façamos um esforço consciente para entender como a misoginia (clássica ou internalizada), o ódio às conquistas das mulheres em razão do sexo, o rancor/inveja que sentem das lésbicas, a dificuldade de nomear a violência masculinista e esse desejo alucinado de nos invalidar tem se manifestado nas expressões e batalhas de vocês que inventam e aplaudem palavras como “genitalésbicas”.
Que fique claro: no topo da minha autoestima de lésbica, de militante da causa negra, feminista radical, abolicionista, que priorizo em todas as minhas batalhas as mulheres, não quero forçar ninguém a absolutamente nada, mas quero sim trazer uma última reflexão: será que alguma lésbica está se importando com quem travestis e transexuais se relacionam? Ou essa é uma pauta que só existe porque atacar mulheres é o pilar que sustenta práticas patriarcais, como a de querer definir para mulheres quem elas são ou deixam de ser?
P.S 2: Sobre os comentários do Instagram, elas estão trancando/reabrindo, acredito que para tentar silenciar/confundir quem está denunciando. Mas seja como for, a postura de ignorar as lésbicas e as pautas exclusivas das mulheres permanece firme na revista. Elas não tentaram de forma alguma diminuir o estrago feito, mostrando assim a falta de ética profissional e responsabilidade com a pluralidade que elas afirmam ter. De LésBi poderiam trocar o nome para QUEER, seria mais honesto (ainda assim nada criativo, mas mais próximo do que de fato desejam/fazem/demonstram).
Mais uma vez nossos nomes estão sendo usados para o marketing oportunista , quando nos fatos e na mensagem passada, somos o nada, o que deve corrigido, o problema, o que precisa ser renomeado…
Chorei com seu texto. De tristeza pela postura da revista, pela situação grave denunciada, mas tbm de orgulho e amor às mulheres feministas radicais, em especial às lésbicas.
Pensa num amor muito grande?
Vamos seguir sendo resistência.
Obrigada pela “fúria”, pela força e pela coragem.
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