Eva e Pandora foram, em diferentes versões, a primeira mulher a habitar a terra. Ambas foram ideia de um criador (Deus ou Zeus) que as deu a vida com o objetivo de servir ao homem.
Ambos criadores apresentaram às mulheres um limite que não poderiam cruzar. A pandora foi entregue uma caixa bonita que ela não poderia abrir, a Eva foi mostrada uma árvore cujos belos frutos vermelhos não poderiam ser comidos. Em ambos os casos, a desobediência resultaria em catástrofe.
Você provavelmente conhece as duas estórias e sabe bem como elas terminam. Um suposto temperamento irracional que seria “tipico feminino” resulta na catástrofe que, por acaso, os criadores oniscientes não previram: Pandora abre a caixa e dela liberta todos os males do mundo, Eva come o fruto do conhecimento e cria o pecado original que justifica todo o sofrimento humano até hoje.
Esses são dois mitos que se encontram em vários aspectos e que trazem um significado em comum: a mulher como grande culpada de tudo. Até hoje, a constante de culpar a mulher está presente na nossa cultura e em tantas outras.
Quando uma mulher é estuprada, já nos acostumamos a ouvir em coro: “foi culpada”. Se algum mal acontece a uma criança, mesmo que tenha sido causado por um outro familiar do sexo masculino, como o próprio pai: “mas onde estava a irresponsável da mãe nessa hora?”. No afeganistão, mulheres estupradas são punidas por sexo fora do casamento.
Isso não se restringe à ignorância do senso comum: psicanalistas até hoje preferem culpar a mãe por todos os problemas de seus filhos, se contentando com uma análise rasa e essencialista ao invés de considerar o fato de que a sociedade patriarcal simplesmente entrega a construção do psiquismo de cada sujeito nas mãos de uma pessoa só.
Já há algumas décadas mulheres dentro de movimentos próprios tentam desmistificar essas crenças absurdas, mas se por um lado temos conseguido fazer muitas pessoas repensarem, por outro temos causado a ira de homens psicológicamente frágeis demais para suportar a ideia de que não os devemos nada: nem trabalho, nem filhos, nem acolhimento e muito menos sexo.
Em consequência disso, vemos então aberrações sociais como o grupo virtual que se autodenomina Incel, onde homens ressentidos por não serem suficientemente atraentes para as meninas na adolescência alimentam um ódio insano pelas mulheres. Isso me faz refletir como seria se mulheres vítimas de abuso sexual se comportassem da mesma forma e nutrissem os mesmos sentimentos contra os homens, provavelmente a população masculina já estaria praticamente dizimada.
Considerados mais aceitáveis por algumas ativistas e militantes desavisadas, mais próximos de nós como em um cavalo de troia, temos os homens “de esquerda” que desconsideram a exploração sexual que acontece em ambientes de prostituição para defender com unhas e dentes que esta necessita ser perpetuada. Ambos tem a mesma base de pensamento: a crença de que o sexo é um direito básico masculino e que mulheres devem concedê-lo aos pobres moribundos no cio.
Mas essa mágoa não se restringe apenas a homens heterossexuais, vários grupos de homens gays se demonstram igualmente mimados quando qualquer grupo de mulheres resolve, por um só instante, focar em pautas de interesse exclusivamente feminino. Isso demonstra bastante da expectativa masculina de que sejamos sempre maternais e deixemos nossas questões de lado para dar atenção aos seus dodóis. Afinal, não é esse o grande crime da mãe má? Ter seus próprios desejos e não ser apenas uma maquina provedora? Pois é.
Compreendemos então que a cultura heteropatriarcal faz com que homens nos considerem culpadas por suas próprias falhas, também sabemos que essa crença pode enchê-los de ódio e torná-los violentos diante de qualquer ação feminina que os fira emocionalmente. Mas também é importante analisar até que ponto nós mesmas compramos essa ideia.
Muitas de nós cultivam o péssimo costume de se culpar por tudo, e o que esperar de indivíduos que foram expostos a uma cultura que assim os retrata? Somos ditas culpadas e acreditamos nisso, até chegarmos ao ponto de não precisarmos mais de nenhum dedo nos apontando erros: podemos ser nossas próprias crucificadoras.
É interessante analisar também que a internalização dessa crença não acontece de forma que mulheres simplesmente passam a compreender que são seres ruins e culpadas por tudo a ponto de simplesmente aceitar isso como natural e cumprir o papel de megera que acreditam ser. Isso é totalmente possível considerando que homens são ditos naturalmente agressivos e agem de forma violenta com a desculpa de “característica inata”, não poderíamos fazer o mesmo? Não, porque existe também uma pressão que nos faz acreditar que somos responsáveis por consertar os erros de Pandora e Eva, assim sendo “diferente das outras mulheres”, como a Virgem Maria.
Por fim, gostaria de dizer que você não é culpada pelo assédio que sofreu aos 11 anos de idade, pelo estupro cometido por parte daquele familiar que você tem todo o direito de odiar, pelo ralado no joelho do seu filho. Você não está errada por ter rejeitado aquele “cara legal” pelo qual você não sentia a minima atração, por negar sexo ao seu marido ou por ser lésbica. Você não é culpada por ter perdido seu bebê ou pelo aborto que deu errado ou pelo sangue que vazou da sua roupa e constrangeu sei lá quem. Você não é uma megera, não somos megeras, mas talvez devêssemos trabalhar para ser.
Texto originalmente publicado na minha página profissional no instagram.