Quando eu recebi o convite para escrever para a QG Feminista, eu tive que pensar bastante sobre. Ficou rapidamente aparente o porquê da minha hesitação: não era porque eu não sabia ou não tinha nada para dizer, ou eu não queria, era porque eu tinha medo de retaliação. Tinha não, tenho.
Eu nasci e cresci em favela da Zona Leste de São Paulo, eu vi de perto o que a pobreza extrema causa. Quando eu tinha 12 anos e estudava em colégio estadual, um estuprador em série estava a solta no meu bairro. Ele estuprou uma menina da minha classe, eu acredito que esse foi um ponto chave na minha vida em que eu entendi a seriedade do ódio contra as mulheres no Brasil. Muitas outras experiências ao decorrer da minha vida vieram a realçar e confirmar a conclusão que eu tinha chegado aos 12 anos.
Eu tive a sorte de crescer em uma família extremamente liberal; meu pai é budista e minha mãe é uma das pessoas mais desbocadas e guerreiras que conheço. Cresci ouvindo que apesar da minha biologia, não havia nada que meu irmão podia fazer que eu não podia também. Tive sorte, pois essa não era a mesma experiência de colegas de escola e até mesmo de primas na minha própria família. Eu nunca li muito sobre feminismo, minha visão era superficial: igualdade para todos, correto? Nunca tive que pensar muito sobre, mesmo vivendo cada dia o que a opressão e o ódio contra as mulheres provocava.
Minha mãe ainda mais do que eu, viveu na pele o que o ódio contra a mulher causa. Quando eu era pequena, ela sonhava em mudar de país e dar uma vida melhor a mim e meu irmão. Após um longo e doloroso processo, que se fosse detalhar precisaria de mais páginas, o sonho se tornou realidade no início de 2013, aos 23 anos de idade, eu me mudei para o Canadá com os meus pais, meu irmão já morando no país.
Volta e meia eu me pego tentando lembrar quando foi que eu “despertei” para o feminismo radical, e os problemas em volta da ideologia do gênero, e chego ao consenso que tudo aconteceu quase ao mesmo tempo, mas a primeira coisa que me despertou foi o seguinte:
Por volta de Outubro de 2016 eu estava no carro com meu então namorado e nós ouvimos a introdução de uma entrevista com um professor da Universidade de Toronto, Jordan Peterson, a mulher que o introduziu disse que ele estava em meio a uma controvérsia em que alunos da universidade estavam o acusando de violência contra alunos transgêneros (até então, eu tinha ouvido o termo “transgender” e genuinamente achava que era apenas uma tradução em Inglês para transsexual, mal sabia eu).
Uma pausa: Até por volta de 3 anos atrás, eu achava que pessoas trans eram transsexuais. Eu conhecia transsexuais brasileiros, homens pobres geralmente de família extremamente conservadora, gays e extremamente marginalizados. Ao ponto que achavam que a única forma de viverem a vida era se “se comportassem” como mulheres, tamanha é a homofobia no nosso país. Eu me simpatizava, nunca me senti ameaçada por eles e faria qualquer coisa para ajudá-los. Essa era a imagem mental que eu tinha quando ouvia o termo transgender. Isso é importante para o decorrer dessa história.
Voltando ao Dr Jordan Peterson em 2016: quando a entrevista começou e ele teve a oportunidade de se explicar, e eu e meu namorado prontos para odiá-lo; como assim incitar violência contra um grupo de pessoas? Uma minoria gay, ainda por cima? Que coisa mais sem pé nem cabeça, principalmente para um país como o Canadá.
Mas o que eu ouvi me surpreendeu. Ele parecia extremamente coerente; e nada do que foi apresentado provava que ele tinha cometido qualquer violência ou sequer incitado. Jordan Peterson havia postado um vídeo em seu canal do Youtube se opondo a Declaração C-16 no Canadá (a C16 altera a Lei de Direitos Humanos do Canadá para incluir “identidade ou expressão de gênero” como motivos protegidos da discriminação, assim como protege motivos como raça, religião, idade e orientação sexual), pois ele acreditava que se a declaração mudasse o código criminal, ele seria obrigado a usar linguagem que ele não concordava (nesse caso os pronomes que as pessoas escolhessem para si, entre outras definições que ele não acredita). Ele ressaltou o problema de um governo compelir a fala e os pensamentos das pessoas, baseado em nada mais que sentimentos e sem uma clara definição de “identidade e expressão de gênero” e que seria muito fácil ser usado de forma autoritária.
Tudo que ele disse fez sentido para mim, e eu não via o que isso tinha a ver com violência. A alusão ao autoritarismo me alarmou: meus pais cresceram na ditadura do Brasil, e tinham muitas histórias.
Chegando em casa eu procurei mais sobre o assunto e achei videos de estudantes histéricos o insultando na internet, chorando e falando que ele estava causando a morte de pessoas trans. Eu não conseguia acreditar que isso era real, e a partir de então é como se todo um mundo que eu não tinha a menor ideia que existia se abriu para mim. O pior de tudo? Todas as pessoas que eu tentava conversar sobre isso agiam exatamente como os estudantes acusando Jordan Peterson. Eu comecei a achar que estava ficando louca.
Em 2017 eu me mudei com meu marido para Vancouver. Em Vancouver, ainda procurando pessoas que pensavam como nós, eu ouvi falar sobre lésbicas contra a prostituição sendo impedidas de marchar na “Dyke March” (Marcha Lésbica) em Vancouver (esse ano, grafite feito por lésbicas com slogans como “resista o apagamento das lésbicas” foi defecado nas ruas de Vancouver por grafite trans) através de um artigo do site feminista Feminist Current, e através de Meghan Murphy, eu abri os olhos ainda mais para a loucura e perigosa ideologia de gênero. Eu finalmente entendi a diferença entre transsexual e transgênero — e inclusive achei uma variedade de aliados transsexuais no twitter, que estão tão assustados como nós.
Os transgêneros que conheci no Canadá eram todos, sem exceção, parte de duas categorias: homens jovens brancos de classe média alta e estudantes de universidades caras ou homens velhos também brancos e de classe média alta, muitas vezes casados e que me lembram muito a definição de Blanchard de Autogynephilia. Muitos deles, apesar de homens, se identificam como “trans lésbicas”. Isso mesmo, homens com pênis se identificam como lésbicas. Bem diferente da idéia de transsexual que eu, brasileira, conhecia. Esses homens dizem que para ser mulher basta apenas “se sentir” mulher, quando questionados sobre o que isso quer dizer, eles dizem que sempre gostaram de vestidos, bonecas, e maquiagem. Isso mesmo, esses homens acham que para ser mulher basta apenas gostar de vestidos, bonecas e maquiagem. Uma caricatura (opressora) de feminilidade. Esses são os homens trans que estão exigindo espaço em lugares para mulheres.
Em Janeiro de 2019 eu atendi um evento da Meghan Murphy na Biblioteca Central de Vancouver. Como vocês devem saber, o evento quase foi cancelado — ativistas trans pressionaram a biblioteca falando que Meghan estava incitando ódio. A biblioteca só não cancelou o evento porque Meghan se armou com advogados, mas os ativistas conseguiram fazer com que o evento mudasse para as 9 da noite.
No dia do evento, eu estava com medo de ir. Eu tinha ouvido falar no twitter que ativistas iriam filmar pessoas com a intenção de descobrir suas identidades e contatar seus locais de trabalho. Meu marido disse que iria sem mim se eu não quisesse, pois ele não gostava de me ver com medo. Eu acabei indo, fui filmada, chamada de vários nomes diferentes e aturei os ativistas gritando na minha cara enquanto tudo que eu fiz foi tomar meu lugar a fila e não dizer nada. Eu não conseguia acreditar que isso estava acontecendo comigo, não no Canadá.
Enquanto eu esperava para entrar na biblioteca, eu assisti um homem que se identifica como mulher que é vice-presidente de um partido local, o partido em poder no momento, dar uma entrevista para um canal de televisão gritando em um microfone que esse evento era a mesma coisa que pessoas dizerem que o holocausto não aconteceu. Esse indivíduo continuou dizendo que o que ia acontecer no evento era discurso de ódio e ele estava lá para presenciar e levar as autoridades o que ele achasse.
No evento não houve nem um pingo de discurso de ódio, Meghan e suas companheiras foram categóricas, compassivas, engraçadas e brilhantes. Foi nesse evento que eu fui introduzida ao Vancouver Rape Relief, um centro de acolhimento para mulheres vítimas de abuso; Lee Lakeman, uma mulher extraordinária e membro honorário do coletivo do Rape Relief falou nesse evento. Seu discurso foi fervoroso e acendeu uma coisa dentro de mim: eu não podia ficar calada.
No final do evento eu me aproximei de Lee e disse que a admirava e gostaria de ajudar. Ela disse para eu fazer trabalho voluntário com o Rape Relief, e quando eu disse que eu sou brasileira ela sorriu e falou “o Brasil tem as mulheres mais fortes que eu conheço, nós precisamos de gente como você”. Não havia mais volta para mim.
Pouco de um mês depois eu comecei o meu trabalho voluntário com o Rape Relief. Desde as primeiras sessões de treinamento você sente uma calma e um senso de justiça: todas as mulheres ali te entendem. Elas entendem o que você passa, elas viveram o que você vive, e o problema com a identidade de gênero é apenas uma parte pequena de todo o trabalho que elas fazem. Lendo o livro de Phyllis Chesler, “A Politically Incorrect Feminist”, eu aprendi que o feminismo começou porque mulheres se juntaram e falaram dos seus problemas, dos seus medos e se organizaram para combatê-los; pela primeira vez, no Vancouver Rape Relief, eu senti o que essas mulheres devem ter sentido.
O “feminismo liberal” ou “feminismo legal” jamais me ofereceu esse suporte. Era apenas eu contra o mundo, mulheres contra mulheres e nenhum suporte de umas com as outras.
O Vancouver Rape Relief existe há mais de 30 anos. Já foi vítima de diversas campanhas que tentou fechar suas portas, e nos anos 90 gastou mais de 100 mil dólares nas cortes Canadenses para manter seu direito de se organizar apenas entre mulheres que nasceram mulheres, e venceram. Recentemente está sendo vítima de mais uma campanha de ativistas trans: o político que comentei acima? Sucedeu em cortar um fundo que o abrigo recebe do governo para usar em educação e eventos, e mais recentemente um rato foi pregado na porta do local onde temos treinamentos e grupos de suporte a mulheres marginalizadas, e essa semana o mesmo local foi vandalizado com slogans como “Vão embora” e “Morte às TERFs”.
O abrigo tem uma linha que oferece ajuda pelo telefone para qualquer indivíduo, independente do sexo, se você é homem (homem trans — que “se identifica” como mulher — ou não) eles ajudam você a achar o abrigo que te atenda. Se você é biologicamente mulher (isso inclui mulheres trans, que “se identificam” homens) eles iniciam o processo para te abrigar.
O motivo pelo qual o Rape Relief trabalha dessa forma é simples: eles dão prioridade a mulheres. Eles acreditam, e sabem, que sexo biológico é real e imutável, e é o principal fator da opressão das mulheres. Isso é um fato, e não um sentimento. Por isso, apenas mulheres biológicas podem ser voluntárias no abrigo (homens, trans ou não, podem ser voluntários de outras formas), o abrigo acredita que é preciso ser mulher e crescer como mulher para entender os problemas que afetam mulheres (isso é a essência do feminismo, afinal de contas). Existem diversos abrigos para homens na cidade de Vancouver. O Rape Relief é o único abrigo no país que dá prioridade a mulheres. E por isso vem sofrendo ataques de misoginia desde de sua criação em 1975. Antigamente, porém, eles não se escondiam atrás de disfarces de progresso de esquerda.
As vezes eu me sinto sozinha, e sinto que estou numa realidade paralela. Sair do Brasil, um dos lugares com o maior índice de violência a mulher, e vim para cá, onde sofremos ataques por nossos pensamentos, onde exigem que pensamos como eles pensam e que neguemos ciência, biologia e nossas experiências como mulher. Tudo para agradar machos que acham que ser mulher é uma identidade, e não uma realidade biológica. É humilhante, mas nós não vamos a lugar algum. E nós não vamos ceder.