Por que estamos revivendo “pseudo-ciências”?

E o que isso pode ter a ver com a atual crise do processo de validação do conhecimento científico?

A primeira vez que ouvi falar sobre a Lei de Alienação Parental (LAP) ficou imediatamente claro para mim do que se trata: uma legislação que protege pedófilos, agressores de crianças e mulheres e, em casos mais “leves”, sujeitos que não querem pagar pensão, utilizando uma antiga estratégia patriarcal: acusar mulheres de loucas, histéricas e mentirosas. 

Concebida na década de 1980, a ideia de “alienação parental” foi criada pelo psiquiatra estadunidense Richard Gardner (1931-2003), e se sustenta por meio do argumento de que mães divorciadas, desesperadas para ganhar processos de custódia, fazem lavagem cerebral e implantam “falsas memórias” nas crianças contra seus pais. Como forma de “tratar” as crianças que não querem “se reconciliar” com os genitores, Gardner recomendava uma noite em uma prisão juvenil, “no máximo duas”. O mesmo era válido para as mães. 

No entanto, a “alienação parental” nunca foi aceita como um distúrbio psiquiátrico e é recusada pela Organização Mundial da Saúde. Ainda assim, ela se espalhou como estratégia de defesa nos tribunais na última década, sendo acatada por juízes até mesmo quando não há um caso de divórcio e pedido de guarda prévios em andamento, e se mantém a despeito de casos como o de Jane Soares da Silva, mãe de Lucas e Mariah, de 9 e 6 anos. Após ser ameaçada pela justiça de ser denunciada de alienação parental, Jane foi obrigada a deixar seus dois filhos conviverem com o genitor, Mário Eduardo Paulino, que assassinou ambas as crianças em 4 de março de 2019

Com a LAP, basta um laudo médico que atesta a mãe como uma “alienadora” para as denúncias serem ignoradas e os abusadores voltarem a ter contato com as crianças. Em alguns casos, as mães podem chegar a perder a guarda total de seus filhos sem que as denúncias de abuso sejam sequer investigadas. A situação é tão alarmante que advogadas têm indicado mães a não denunciarem pais e padrastos, pois o risco de perder total contato com a criança e tornar a proteção contra o abusador impossível é muito alto. 

Sancionada por Lula (PT) em 2010, a relatora da LAP foi a também petista Maria do Rosário. O processo de aprovação levou menos da metade do tempo usual de tramitação, o que garantiu que não houvesse muita pressão contrária por parte da sociedade civil e interesse midiático sobre o tema. Maria do Rosário chegou a se arrepender publicamente pela LAP, mas, como afirmou uma mãe vítima da LAP entrevistada pela diretora do documentário, a mea-culpa não dá conta dos danos causados. Em pouco mais de uma década, e com o silêncio absoluto da mídia e de uma grande parte dos movimentos feministas e de “direitos humanos”, a LAP vitimizou milhares de mães e crianças, colaborando para a manutenção do cenário de abuso sexual infantil disseminado nos lares brasileiros como demonstrou o mais recente Anuário de Segurança Pública

Nesse período, a LAP também se tornou lucrativa para uma série de sujeitos que se especializaram nela: advogados, psicólogos, peritos. Não é muito difícil conseguir um laudo de “síndrome de alienação parental” com um psicólogo que vive de emitir laudos de condenação após normalmente apenas um encontro com a mãe. O importante, é claro, é ter o dinheiro para pagar, como demonstrou o The Intercept na série de reportagens Em Nome dos Pais, censurada pela juíza Flávia Gonçalves Moraes Bruno, da 14ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro, no dia 30 de maio de 2023. Em uma reportagem da série, a única que permanece fora do ar após recurso, a jornalista Nayara Felizardo até deu nome aos bois e contou como a psicóloga Glicia Brazil virou uma “garantidora” da emissão de laudos para fortalecer a defesa dos abusadores contra as mães. 

O Brasil é o único país a manter a LAP, indo contra recomendações da ONU e do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda). Na verdade, um dos motivos do adiamento da visita ao Brasil da Relatora Especial sobre Violência Contra Mulheres e Meninas Reem Alsalem por parte do Ministério das Mulheres, sob comando da ministra Cida Gonçalves, foi justamente a posição de Alsalem contra a LAP.

Mesmo em países onde não há uma legislação específica como no Brasil, a ideologia da alienação parental se tornou uma estratégia de defesa amplamente utilizada por pedófilos, abusadores e agressores de mulheres e crianças, o que podemos entender como uma ampla aceitação da “doutrina gardenista” pelos Estados. Durante o processo, mães são esgotadas psicológica e financeiramente, muitas perdem não só os filhos, como emprego, reputação, carreira e algumas acabam por cometer suicídio

A LAP é o patriarcado em sua melhor forma, utilizando duas de suas ferramentas forjadas ao longo do século XVI contra as mulheres: o Direito e a Ciência. Historicamente falando, é o Estado, o Grande Homem, garantindo a devida organização patriarcal e os direitos dos Grandes e pequenos homens sobre todos os seres e todas as coisas. 

“Pseudociência” para avalizar parafilias

Uma das coisas que mais me chama atenção na aceitação da LAP por parte do Estado é que, além de ser uma teoria que não pode ser comprovada, Gardner falava abertamente sobre como crianças gostam de se relacionar sexualmente com adultos, incluindo seus pais, e que a pedofilia só gera sofrimento e traumas por ser um ato socialmente mal visto. Ao longo de sua carreira, o psiquiatra testemunhou em mais de 400 casos de abuso sexual infantil, sempre a favor dos abusadores. Será que ninguém desconfiou do viés?

Além de defensor da pedofilia, Gardner também entendia a zoofilia, necrofilia, entre outras parafilias como comportamentos sexuais saudáveis, embora pouco compreendidos. Ainda, em True and False Accusations of Child Sex Abuse, Gardner (1992, p. 585) afirma que as mães podem melhorar a própria sexualidade para evitar que pais abusem sexualmente de sua filhas: 

“Sua própria culpa diminuída sobre a masturbação tornará mais fácil para ela encorajar a prática em sua filha, se isso for justificado. E sua maior sexualidade pode diminuir a necessidade de seu marido voltar para a filha em busca de gratificação sexual”.

É tão ruim quanto parece. Mas Gardner está longe de ser o único pedófilo cujas ideias estão se fortalecendo na lei, na academia e em parte da sociedade. Me parece que estamos vivendo um revival de tentativas prévias de normalizar parafilias. Veja, por exemplo, o caso de Volkmar Sigusch (1940-2023), sexólogo, médico e sociólogo alemão que atuou como diretor do Institut für Sexualwissenschaft (Instituto de Ciências Sexuais) na clínica da Universidade Goethe, Frankfurt, de 1973 a 2006. Sigusch é criador da ideia de “cissexualidade” e “cisgeneridade”. O termo “cis” aparece pela primeira vez em sua publicação de 1991, The transsexuals and our nosomorphic view. I: Against the totalitaristic viewpoint of transsexualism (Os transexuais e nossa visão nosomórfica. I: Contra o ponto de vista totalitário do transexualismo), publicado originalmente em alemão. Como não leio alemão, vou recorrer ao seu artigo de 1998 sobre “A revolução neosexual”, no qual ele retoma a questão e afirma:

A característica genuinamente neológica do transexualismo é que ele lança o que chamei de cissexualismo (Sigusch‚ 1991a‚ 1991b‚ 1995a‚ 1995b)‚ na verdade, sua contraparte lógica‚ sob uma luz altamente ambígua. Pois se há um trans, um além (gênero físico), deve haver também um cis, um aquém de. Ao provar que sexo/gênero é um fenômeno culturalmente composto, psicossocialmente comunicado, a transexualidade mostra que o gênero físico e a identidade de gênero entre os cissexuais, que até agora foram considerados as únicas pessoas saudáveis e normais, não mais inquestionavelmente e (supostamente) andam juntos naturalmente (grifo meu). 

Sigush, seguindo o estilo relativista pós-moderno de “fazer ciência”, mistura conceitos, anda em círculos e não oferece embasamento para suas afirmações. No entanto, não foi apenas a autogenifilia que Sigush tentou normalizar. Para ele, a pedofilia era uma orientação sexual como qualquer outra, e a diferença entre pedófilos e “pedosexuais” era que pedófilos seguem em frente com seus desejos enquanto os “pedosexuais” contêm o impulso. Em uma entrevista a Spigel em 2011, ele fala sobre isso e sobre outras coisas, como os “benefícios da pornografia digital”. 

A jornalista feminista e fundadora do Reduxx, Genevieve Gluck, mostrou que Sigush fazia parte de um grupo de homens ouvidos pelo Parlamento Alemão nos anos 1970 durante as tentativas de descriminalização do sexo com menores. Em um artigo publicado no Journal of the History of Sexuality (vol. 25, número 2, p. 219-245, maio de 2016), intitulado Feeling Like a Child: Dreams and Practices of Sexuality in the West German Alternative Left during the Long 1970s (“Sentindo-se como uma criança: sonhos e práticas de sexualidade na esquerda alternativa da Alemanha Ocidental durante a longa década de 1970”, em tradução livre) que cita Sigush, o historiador e pesquisador da esquerda europeia, Joachim C. Häberlen, levanta exemplos de como parte da esquerda alemã, incluindo o Partido Verde, apoiava a legalização do sexo entre menores e adultos durante a revolução sexual. Embora a maior parte dos pedófilos nas fileiras esquerdistas da época fossem homens, mulheres também apareceram em defesa do sexo com menores como forma de “romper fronteiras” e “liberar a sexualidade das normas burguesas”.

As ideias sobre o caráter “natural” do sexo entre crianças e adultos também fizeram parte das elaborações de filósofos e teóricos pós-modernos como Michael Foucault, Jacques Derrida, Judith Butler e Gayle Rubin (confira esse vídeo rápido para ter uma noção superficial sobre isso) reforçando que a naturalização da pedofilia era parte integrante do zeitgeist, sendo disseminada na cultura, na política e na academia. 

Sobre lutar velhas batalhas

A ideia de que crianças são capazes de consentir com o sexo com adultos, incluindo seus pais, e que “pessoas sexualmente atraídas por menores” não devem ser criminalizadas por sua orientação sexual está novamente ganhando tração na academia (digite no Google Acadêmico “minor-attracted persons” para encontrar dezenas deles), na mídianas demandas de muitos “ativistas” queer e até em orientações legais, como as do Grupo Internacional de Juristas. Quando a proteção de pedófilos não aparece na defesa aberta da legalização do sexo com menores, aparece por meio da defesa de teorias e legislações que expõe crianças ao abuso e a sexualização, como a própria LAP.

A ideia de que crianças podem consentir com o sexo com adultos acompanha a hipersexualização infantil que estamos presenciando, incluindo por meio das ideologias acerca das “crianças trans” e de projetos de “educação sexual” um tanto esquisitos, como no caso recente alemão, onde pais de crianças da pré-escola foram informados que o Ministério da Educação implementou, por meio da principal associação profissional de sexualidade da Alemanha, Pro Familia, uma recomendação para que as creches (sim, creches) implementassem “salas de exploração corporal” e “jogos sexuais” para crianças onde:

Cada criança decide por si mesma se e com quem quer jogar jogos físicos e sexuais. Meninas e meninos acariciam e examinam uns aos outros apenas o quanto for confortável para eles e para as outras crianças.

O programa foi tão mal recebido que foi suspenso antes mesmo de entrar em vigor. E essa não é a primeira vez que algo assim acontece. Em 2013, a Deutsche Welle afirmou que a “Pro Família está presa no pântano da pedofilia”, destacando o fato de que a organização de educação sexual publicou repetidamente as obras de lobistas pró-pedófilos. A reportagem também volta ao histórico dos Verdes nos anos 80 e as tentativas prévias de legalização do sexo com menores no país.

Nós não precisamos de nenhum pós-doc em história para perceber as similaridades do atual momento de backlash patriarcal contra mulheres e crianças com parte do cenário dos anos 1970 e 1980, bem como o fato de que várias das pessoas levando tais demandas adiante, seja por convicção, desconhecimento ou interesse próprio, estão, novamente, sentadas nas fileiras da esquerda e um tanto dessas pessoas são mulheres. Algumas delas, inclusive, podem lutar ativamente contra a “pseudociência” de Gardner enquanto defendem em igual intensidade a de Sigush, o que torna tudo ainda mais complicado.

Ciência, pseudociência e a crise da Ciência

Estou usando pseudociência entre aspas porque a linha que separa a pseudociência da Ciência nem sempre é tão clara como gostaríamos, afinal, nem todas as ciências são exatas e me questiono até que ponto podemos chamar uma determinada teoria ou crença de pseudociência sem a devida ironia quando esta consegue adentrar (e se manter em) universidades, periódicos qualificados e instituições públicas. 

Fique à vontade para tirar suas próprias conclusões sobre o uso de conceitos. Por hoje, o que me interessa é refletir sobre o fato de vermos um fôlego renovado de antigas “pseudociências” bem como o surgimento de novas, como a de que sexo é um espectro, que constelação familiar é útil para resolver conflitos familiares e que terreiros de candomblé podem ser considerados espaços de cura paralelos aos tratamentos oferecidos no SUS. Nada contra práticas espirituais e religiosas, sei do poder da fé, mas crenças devem ser tratadas pelo que são: crenças.

Sem dúvidas, há mais de um motivo pelo qual estamos vendo o fortalecimento de ideias anti-científicas em espaços onde elas definitivamente não deveriam estar, mas vou me ater aqui em apenas um dos possíveis elementos: o fato disso tudo estar acontecendo em um momento onde o próprio processo de validação do conhecimento científico se encontra em um tipo de crise. Embora a mídia nacional não esteja falando sobre isso, o tema está relativamente em alta nos EUA e na Europa porque algumas coisas estão se tornando públicas e, portanto, incontornáveis.

Em julho, o neurocientista Dr. Marc Tessier-Lavigne renunciou ao cargo de reitor da Stanford após a conclusão das investigações acerca de denúncias de fraude em alguns artigos acadêmicos nos quais era o autor principal. Tentando resumir uma longa história, as primeiras falhas apontadas nos artigos surgiram pela primeira vez anos atrás em um site chamado PubPeer, destinado a publicação e discussão de artigos científicos. Pouca atenção foi dada às acusações, que ressurgiram com mais força em novembro, quando o jornal estudantil The Stanford Daily trouxe alegações de imagens manipuladas em artigos nos quais Tessier-Lavigne era autor principal ou co-autor. Em fevereiro, o mesmo jornal publicou alegações de fraude envolvendo um artigo de 2009 sobre Alzheimer na Nature, quando Tessier-Lavigne era cientista sênior da Genentech.

Um painel para investigar as acusações fez mais de 50 entrevistas e revisou mais de 50.000 documentos e concluiu não ter encontrado fraudes até onde conseguiram investigar. No entanto, o relatório demonstrou que membros dos laboratórios chefiados por Tessier-Lavigne se envolveram em manipulação inadequada de dados de pesquisa e práticas científicas deficientes, resultando em falhas significativas em cinco artigos nos quais o pesquisador era o autor principal, incluindo o de 2009. O painel também constatou medidas insuficientes para corrigir erros como, por exemplo, não buscar as correções dos artigos. No total, as falhas citadas envolveram 12 artigos. Por sua vez, o The Stanford Dailyafirmou manter as acusações de fraude que reportou, mas mantiveram suas fontes anônimas.

Em sua declaração, Tessier-Lavigne afirmou que tentou corrigir os artigos publicados na Cell e Science, mas que a Cell se recusou a publicar uma correção e a Science não publicou a correção mesmo depois de concordar em fazê-lo. Segundo Ivan Oransky e Adam Marcus, fundadores da organização “cão de guarda” de periódicos acadêmicos Retraction Watch, a Science tem um longo histórico de não publicar correções. Mas ela não é a única. Universidades também evitam lidar com fraudes e quando o fazem, tentam manter total sigilo. 

A Retraction Watch estima que cerca de 100 mil artigos científicos deveriam ser retratados ao ano, mas como os periódicos são relutantes em fazê-las, as retratações não ultrapassam a casa dos 5 mil. A maior parte dos artigos que precisam ser retratados não envolvem pesquisadores e revistas de “alto pedigree”, mas, como demonstrou o caso Tessier-Lavigne, algumas deles podem envolver. Uma pesquisa de 2016 da Nature, com 1576 pesquisadores, descobriu que mais de 70% tentaram e falharam em replicar resultados previamente publicados, mas ou os pesquisadores não viram problemas nisso, acharam melhor não engajar em uma conversa com o autor do estudo original ou ainda tentaram publicar as correções, mas os periódicos foram relutantes em fazê-los. Ao todo, apenas 13% dos entrevistados afirmaram que publicaram uma replicação negativa. 

Vamos pegar o caso da própria Nature envolvendo os quatros artigos popularmente conhecidos como “artigos pangolins”, nos quais os pesquisadores afirmavam que o Covid-19 teve origem em alguns pangolins, bem no início do caos pandêmico em 2020. Uma pesquisadora do MIT e Harvard logo reconheceu as falhas nos quatro artigos, que já haviam se espalhado como fogo no palheiro na mídia internacional. A Nature levou seis meses para publicar uma retratação e, é claro, com baixa ou nenhuma cobertura midiática. Até hoje, não se sabe com certeza a real origem do Covid-19, ao passo que vários artigos acadêmicos acerca da Covid-19 estão sendo retratados.

Uma vez que as penas estão voando, fica difícil recolhê-las. Não só a mídia costumeiramente não reporta as retratações como, mesmo depois de retratados, os estudos continuam sendo citados em novos artigos acadêmicos publicados. No site da Retraction Watch é possível ver o ranking dos artigos retratos mais citados bem como os autores com mais artigos retratados. A maior parte deles são homens. Mesmo considerando a desigualdade entre os sexos na academia, com ambientes de pós-doutorado e pesquisa sendo majoritariamente masculinos, homens falsificam e fabricam dados mais do que mulheres (chegando a 94% dos casos). Para Ivan Oransky e Adam Marcus, o poder que muitos desses pesquisadores detêm na academia também serve de escudo para suas fraudes, pois os cientistas podem ir longe para defender a própria reputação:

Eles punem subalternos denunciantes, às vezes culpando-os por seus erros. Eles processam os críticos. Embora raramente prevaleçam no tribunal, a ameaça de tais processos e o custo da defesa contra eles exercem um efeito inibidor sobre aqueles que se apresentam. Em um caso particularmente terrível e trágico em 2006, um acadêmico de Bangladesh assassinou um denunciante. O acadêmico foi enforcado 17 anos depois.

Periódicos e editores também falham em fazer sua parte, encontrando maneiras de ignorar as críticas ao que publicaram, deixando de lado trabalhos fatalmente falhos. Eles permitem que as raposas guardem o galinheiro, limitando os críticos a breves cartas ao editor que devem ser aprovadas pelos autores da obra criticada. Outras vezes, eles atrasam as correções e retratações por anos, ou nunca as fazem.

E, como ambos alertam, isso traz problemas reais para pessoas reais, sobretudo quando estamos falando de medicina. Especialista em medicina intensiva, Joachim Boldt (líder do ranking de retratações) publicou uma série de artigos entre 1990 e 2009, amplamente citados, sugerindo que um produto substituto do sangue utilizado em hospitais em toda Europa estava “salvando vidas”. Quando outros pesquisadores reanalisaram todos os dados disponíveis, descobriram que, na verdade, o substituto estava “associado a um aumento significativo do risco de mortalidade e lesão renal aguda”. Alguns de seus artigos só foram retratados esse ano, mais de dez anos depois de sua fraude ser descoberta.

O lado bom da história é que fraude, ou seja, fabricação ou falsificação de dados, não é a razão mais comum pelas quais artigos acadêmicos precisam de retratação. P-hacking, a prática de “espremer” dados para obter o resultado desejado, é um problema muito mais generalizado e conhecido, que deveria ser evitado por esquemas de revisão por pares. Porém, na prática, a revisão por pares se tornou uma forma de manter os “heréticos” do lado de fora e reforçar vieses ao invés de atenuá-lo, geralmente para garantir mais cliques ou, tão ruim quanto, a posição política dos editores.

Recentemente, publiquei aqui no lado b a tradução de um texto da médica pediatra Dra. Julia Mason, membro fundadora do Society for Evidence-Based Gender Medicine, no qual ela detalha a dificuldade de médicos e pesquisadores em publicarem artigos acadêmicos que demonstram que cirurgias e hormonização em crianças com disforia de gênero não apresentam os resultados desejados. O retorno dos editores dos periódicos é surpreendente, com um deles afirmando que o artigo não poderia ser publicado, pois poderia “ofender crianças que leem periódicos médicos”. 

Se a bagunça está complicada nesse nível nas ciências biológicas, imaginem só o caos nas ciências humanas. No ano passado, compartilhei aqui no lado b o caso do Grievance Studies (ou “Estudos de queixas”). Basicamente, três pesquisadores pegaram uma bolsa de estudos dentro do campo dos estudos culturais ou de identidade para provar como essas bolsas estão sendo destinadas a pesquisas acadêmicas ruins e publicações científicas de qualidade duvidosa. Eles passaram um ano escrevendo artigos acadêmicos com nível elevado de especulação (para não dizer absurdidade) para publicações revisadas por pares. Sete dos artigos produzidos foram publicados, incluindo na conceituada Hypatia.

O esquema foi revelado quando um perfil no Twitter chamado Real Peer Review, uma plataforma dedicada a expor bolsas de estudos de má qualidade, divulgou um dos sete artigos publicados pelo trio intitulado: “Reações humanas à cultura do estupro e performatividade queer em parques urbanos para cães em Portland, Oregon”. A hipótese era de que “os parques para cães são espaços de tolerância ao estupro e um lugar de cultura desenfreada de estupro canino e opressão sistêmica contra “o cão oprimido” através do qual as atitudes humanas para ambos os problemas podem ser medidas. Isso fornece informações sobre como treinar os homens para fora da violência sexual e do fanatismo a que são propensos”.

O grupo tinha como objetivo entender se os periódicos aceitariam argumentos “claramente ridículos e antiéticos se fornecerem uma maneira (infalsificável) de perpetuar noções de masculinidade tóxica, heteronormatividade e viés implícito”. As cartas recebidas das revisões por pares deixavam claro a necessidade de aumentar o nível do absurdo e aprofundar o viés. Antes do esquema ser revelado, os pesquisadores foram convidados a fazer revisão por pares de outras revistas e o artigo ganhou destaque positivo no meio acadêmico. Atualmente, o grupo está envolvido em um documentário sobre o projeto. Fazer estudos falsos para provar um ponto não é uma estratégia nova dos pesquisadores para chamar atenção para os problemas atuais da pesquisa acadêmica.

Parte da inação tem a ver com fontes de financiamento, necessidade de cliques e baixa disponibilidade de bolsas de pesquisa públicas. Um dos casos mais flagrantes do qual tenho conhecimento em se tratando de nítida interferência dos financiadores na conclusão de artigos acadêmicos um artigo pró-prostituição que faz parte de um simpósio financiado pela Bill e Melinda Gates Foundation disponível na conceituada The Lancet com informações infundadas e dados controversos sobre “trabalho sexual” e HIV.

Por fim, bolsas de pesquisa, bônus e cargos sendo atrelados a quantidade de artigos acadêmicos publicados em periódicos têm se mostrado uma fonte inesgotável de problemas, sobretudo quando os recursos públicos continuam baixos e altamente disputados. Como pesquisas levam tempo e não é possível alcançar metas no ritmo de padaria atualmente exigido, pesquisadores “fatiam” suas pesquisas com objetivo de gerar mais artigos, estilo Frankenstein. 

As “fábricas de artigos” também se tornaram relevantes – lojas científicas que chegam a vender manuscritos inteiros a pesquisadores que precisam “publicar para não perecer.” Afinal, como é possível um professor publicar 279 artigos em cinco anos em uma única revista? Ao mesmo tempo, essa lógica acaba por incentivar a mudança de foco: ao invés de perseguir melhores métodos e a relevância das hipóteses, busca-se fazer o necessário para que o artigo seja publicado. Com editores e o sistema de revisão por pares mantendo os “heréticos” do lado de fora, é melhor jogar o jogo se não quiser ficar sentado no banco de reservas. 

A despeito de minha convicção de que a academia e a Ciência (assim como, por exemplo, o Estado) não podem fundamentalmente serem reformuladas, é evidente que precisamos de novos mecanismos de incentivo à produção científica e melhor controle das publicações (e dos revisores). Quanto menos a produção científica for confiável, mais “pseudociências” surgirão e ganharão campo, dentro e fora do ambiente acadêmico e dos periódicos científicos. Mas quando não estamos nem perto de debater o problema, e sujeitos tratam “a ciência” como o Santo Graal ao passo que escolhem à pinça quais “pseudociências” endossam e quais combatem, fica difícil manter o otimismo.


Notas:

  1. Para o autor, “Enquanto a antiga sexualidade era baseada principalmente no instinto sexual, no orgasmo, e no casal heterossexual, as neossexualidades giram predominantemente em torno da diferença de gênero, emoções, autogratificação e substituição protética”.
  2. O artigo pode ser acessado em: https://www.jstor.org/stable/44862298.
  3. O Brasil foi pioneiro em adotar medidas de proteção à criança e ao adolescente com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e isso só aconteceu em 1990.
  4. RAPHAEL, Jody. Decriminalization of prostitution: the Soros effectDignity, [online], vol. 3, número 1, 1 jan. 2018. Disponível em: https://doi.org/10.23860/dignity.2018.03.01.01. Acesso em: 28/06/2023.


Artigo escrito por Marina Colerato e originalmente publicado em sua newsletter, lado b. O artigo original pode ser acessado aqui. Marina Colerato é jornalista independente, mestre em Ciências Sociais e pesquisa e reporta sobre temas de interesse ecofeminista. Você pode acompanhá-la no Instagram @marinacolerato.