O artigo argumenta que o ponto de partida filosófico d’O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir é a compreensão fenomenológica do corpo vivente, desenvolvida por Edmund Husserl e Merleau-Ponty. Mostra que a noção de Beauvoir de filosofia advém da interpretação fenomenológica do Cartesianismo, a qual enfatiza o papel da evidência, da autocrítica, e do diálogo.


Simone de Beauvoir não é geralmente considerada uma filósofa, e seus trabalhos, incluindo “Por uma moral da ambiguidade” (Pour une morale de l’ambiguïté, 1947) e “O segundo sexo” (Le Deuxième sexe, 1949), não são geralmente estudados como filosóficos [1]. Beauvoir é lida como ensaísta e escritora, e seus trabalhos de não-ficção são tidos como estudos socio-históricos — populares em vez de acadêmicos; morais em vez de éticos.

Essa visão comum é fundamentalmente errada. Eu demonstro que Simone de Beauvoir é uma filósofa e que ela própria considerava seu trabalho filosófico. Sua compreensão da filosofia, entretanto, era específica, e essa especificidade é o tema de meu trabalho.

Minha tese é de que o contexto filosófico em que Beauvoir operou é a fenomenologia do corpo que Edmund Husserl iniciou e que Maurice Merleau-Ponty desenvolveu. Então eu argumento contra a compreensão tradicional segundo a qual as noções filosóficas de Beauvoir emergiram dos trabalhos de Sartre; mas eu também questiono o argumento mais recente de que Beauvoir baseou suas visões no trabalho de Martin Heidegger. Eu quero demonstrar que no coração da escrita de Beauvoir sobre sexualidade e ética está uma compreensão particular sobre a prática e a tarefa do filósofo, e que ela compartilhava dessa compreensão com Husserl e Merleau-Ponty.

No caso d’O Segundo Sexo, eu argumento que o principal interesse de Beauvoir não é em explicar a posição subordinada das mulheres, nem em defender seus direitos. No lugar de impulsionar uma teoria sociohistórica ou uma tese liberalista, Beauvoir apresenta uma descrição fenomenológica. O fenômeno que ela descreve é a realidade chamada mulher, e seu objetivo é analisar os significados envolvidos nessa realidade. Seu trabalho inclui uma problematização radical de nossas ideias de mulheridade, feminilidade, e submissão das mulheres, além daquelas de sexualidade, corporificação, e o relacionamento eu-outro.

[[[n/t: corporificação, do inglês embodiment, do francês incarnation, vemos traduzidos para o português tanto como “corporificação” como “encarnação”. vou usar “corporificação”]]]

Para perceber a natureza fenomenológica da configuração do problema de Beauvoir, é necessário entender a natureza da filosofia fenomenológica — suas tarefas e métodos. Esse artigo começa com uma curta excursão adentro da fenomenologia conforme apresentada por Husserl e Merleau-Ponty [2].

Fenomenologia: uma ciência fundacional

Husserl define fenomenologia como um estudo de fenômenos, isto é, as formas como o mundo aparece, ou se apresenta, para nós em experiência. Frequentemente se alega que a fenomenologia, assim definida, é um retorno à filosofia introspectiva, mas isso é uma má compreensão tosca. Husserl argumenta de novo e de novo que a fenomenologia não é sobre os processos internos ou sobre as atividades da mente humana. É sobre as formas como nós nos relacionamos como o mundo e seus seres [3]. O fenomenólogo dá um passo atrás do mundo; ele suspende sua crença na realidade do mundo e seus seres. O objetivo, entretanto, não é examinar a si próprio, mas tornar-se consciente do envolvimento de si próprio na realidade do mundo, ou seja, na constituição do significado da realidade, e dos próprios apegos de si a essa realidade. A descrição de Merleau-Ponty da posição fenomenológica é esclarecedora: “A reflexão não se retira do mundo em direção à unidade de consciência enquanto base do mundo; — ela afrouxa os fios intencionais que nos vinculam ao mundo e portanto os evidencia” (Merleau-Ponty 1993, viii).

Em “A Crise Das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental” (Die Krisis der europaischen Wissenschaften und die transzendentale Phiinomenologie, 1954), Husserl dá um conjunto de problemas fenomenológicos para futuro estudo; ele se refere a problemas de morte e vida, o problema da inconsciência, e os problemas de historicidade e vida social (suas “formas essenciais”). E então, ele afirma, “há o problema dos sexos” (Husserl, 1954, p. 192). A tarefa dos fenomenólogos é estudar os significados desses fenômenos, sua constituição enquanto diferentes tipos de realidades e objetividades, isto é, entidades, ocorrências, processos, eventos, fatos, etc. Então as questões envolvendo morte, por exemplo, não são, “O que é a morte? Como a morte acontece? Qual é seu mecanismo?”. No lugar disso, a pergunta é, “Como acontece que vivenciamos a morte enquanto ocorrência (Vorkommniss)?”. Da mesma forma, podemos perguntar, “Por que a relação sexual é vivenciada como uma diferença e uma oposição? Isso é necessário? A experiência pode ter alguma outra estrutura?”. As experiências relevantes a serem estudadas não são apenas desejos eróticos mas todas as ações e paixões nas quais o outro é percebido como homem ou mulher (Fink, 1988, 274).

A fenomenologia de Husserl envolve uma visão forte da relação entre filosofia e as ciências empíricas. Filosofia, entendida como fenomenologia, é uma ciência fundacional no sentido de que estuda a base das ciências empíricas, as ideias em que as ciências empíricas precisam se basear: as ideias de natureza, história, sociedade, e humanidade — mente e corpo.

Isso não significa que a filosofia é independente ou autônoma. Husserlf aponta que as ciências e a filosofia têm uma raiz comum na atitude teórica que suspende os interesses práticos da vida cotidiana e estuda o universo como um todo. O filósofo-cientista não tem interesse apenas nas atualidades (o presente) mas também no possível. Quando ele constrói uma teoria da sexualidade, por exemplo, ele não meramente descreve essa ou aquela sexualidade, mas tenta compreender a sexualidade em toda a sua complexidade e variações. Sua descrição deve objetivar incluir todas as sexualidades possíveis assim como as formas de fato de nossa vida sexual.

A diferença importante entre o cientista e o filósofo está na natureza radicalmente crítica da filosofia. Husserl caracteriza essa diferença ao dizer que a tarefa da filosofia é fazer as perguntas derradeiras. O filósofo se volta para investigar as fundações do empreendimento teórico, as presunções e os compromissos escondidos nas quais ele depende. A sua tarefa é fazer as questões radicais sobre as condições da possibilidade do pensamento científico, sobre as ideias de verdade, realidade, objetividade e universalidade. O interesse de seu estudo é, portanto, não prático nem puramente teórico, mas crítico [4].

As questões filosóficas não podem ser respondidas da mesma forma como questões empíricas podem ser respondidas. No lugar de serem resolvidas, elas podem nos levar a novos problemas e paradoxos (Merleau-Ponty, 1996). Isso não nos dá licença para contorná-las. Apesar de não haver soluções finais, o questionamento filosófico é indispensável: ele sozinho pode nos tornar conscientes de nosso envolvimento na constituição da realidade, dos significados de ser e real (Merleau-Ponty, 142).

Pontos de partida fenomenológicos de Beauvoir

Quando se estuda a relação de Beauvoir com a filosofia fenomenológica, as fontes mais interessantes são as seções filosóficas de sua autobiografia e seus ensaios éticos [5]. Esses textos mostram que Beauvoir não apenas estudou os textos de Husserl detalhadamente, mas também considerava sua noção de filosofia a mais atraente.

Beauvoir dá informações significativas sobre sua relação com a fenomenologia em sua autobiografia. Em “A força da idade” (La force de l’âge, 1960), ela nos conta que, quando estava estudando as aulas de Husserl sobre consciência temporal ela sentiu que ela estava “chegando mais próxima da verdade do que nunca antes” (Beauvoir, 1995a, 231). Depois ela explica sua relação com a filosofia fenomenológica ao comparar sua própria atitude com a de Sartre:

Sartre alegava que eu compreendia doutrinas filosóficas, a de Husserl, dentre outros, mais rápido e com mais precisão do que ele. De fato, ele tendia a interpretar filosofias de acordo com seu próprio esquema; para ele era muito difícil esquecer de si mesmo e adotar sem reservas um ponto de vista estranho. Mas eu não tive tal resistência a lutar; meus pensamentos se adaptavam imediatamente ao pensamento que eu tentava compreender. Eu não o aceitava passivamente; mesmo quando eu concordava, eu também percebia lacunas e incoerências, e explorava elaborações possíveis. Se uma teoria me convencia, ela não permanecia exterior a mim, ela mudava minha relação com o mundo, coloria minha experiência. Em suma, eu tinha uma capacidade sadia para adotar; um senso crítico para desenvolver; para mim filosofia era uma realidade viva. (Beauvoir, 1995a, 254)

O ensaio ético de Beauvoir, “Por uma moral da ambiguidade” (Pour une morale de l’ambiguïté, 1947), é um testamento de suas capacidade e compromisso. Ele mostra que a compreensão de Beauvoir dos objetivos e métodos da fenomenologia de Husserl era profundo e frutífero.

Isso é evidente na comparação de Beauvoir entre sua postura ética e a atitude fenomenológica. Ela segue Husserl e Merleau-Ponty em insistir que o objetivo da suspensão fenomenológica (mettre entre parenthèses, “colocar entre parênteses”) não é se voltar para si, mas se tornar consciente de nossa verdadeira existência, ou seja, nossas relações com o mundo e os outros (Beauvoir 1947, 20–21). Além disso, Beauvoir enfatiza que a suspensão não “contesta” a realidade do mundo, apenas recusa a tomar essa realidade como um dado absoluto e não problemático. Ela explica que o fenomenólogo não rejeita a realidade do mundo, seus fatos e eventos, mas questiona seu “modo de realidade” (mode de réalité) (1947, 21).

A evidência mais direta do compromisso fenomenológico de Beauvoir se encontra n’O Segundo Sexo. Lá, ela nos diz que os conceitos básicos de seu trabalho — os conceitos de corpo e sexualidade — são tomados da tradição fenomenológica do pensamento. Ela enfatiza repetidamente que sua discussão da diferença sexual é baseada no conceito do corpo vivente (Leib, corps vivant, corps vécu) [6]. Husserl introduziu pela primeira vez esse conceito em suas aulas sobre objetividade e espacialidade, Ding und Raum, em 1907. Seis anos depois, Husserl deu uma explicação extensa sobre isso na segunda parte de sua obra Ideias (Ideen). Essa obra permaneceu não publicada por muito tempo, mas Merleau-Ponty a estudou nos arquivos de Husserl em Louvain em 1937, e ele faz referência a ela repetidamente em sua Fenomenologia da Percepção (Phénoménologie de la perception, 1945), ao desenvolver sua noção do corpo [7].

O núcleo do conceito de Husserl do corpo vivente (Leib) é que ele difere essencialmente dos objetos materiais (Körper) que nós manipulamos em nossas condutas e práticas científicas cotidianas. Husserl faz essa vasta distinção ao apontar que o corpo se apresenta para nós de duas formas diferentes: como o ponto de partida de todas as nossas atividades (Leib) e como um objeto passivo ou resistente (Körper). Ele então argumenta que o corpo vivente é primário e que ele aparece essencialmente como a expressão e o instrumento do espírito. Não é uma realidade separada, mas é o horizonte de todas as nossas atividades, ambas condutas cotidianas e idealizações científicas (Husserl, 1952, 157, 281; Merleau-Ponty, 1993, 106–13).

Os existencialistas aplicaram e desenvolveram mais além a análise de Husserl do corpo vivente. Merleau-Ponty particularmente submeteu o corpo vivente a um estudo extenso e meticuloso na segunda parte de seu Fenomenologia da Percepção. Beauvoir conhecia bem esse estudo; Ela o revisou para [a revista] Temps Modernes em 1945, e ela se refere a ele repetidamente quando apresentando sua compreensão de corporificação n’O Segundo Sexo.

Beauvoir começa sua resenha da fenomenologia de Merleau-Ponty escrevendo: “um dos grandes méritos da fenomenologia — está em abolir a oposição entre o sujeito e o objeto. É impossível definir um objeto separado do sujeito do qual e para o qual ele é o objeto; e o sujeito se revela apenas em relação aos objetos com os quais ele se engaja” (Beauvoir, 1945a, 363).

Essas afirmações podem soar triviais, Beauvoir pontua, mas elas têm implicações filosóficas vastas: só se pode desenvolver uma ética genuína ao se tomar a compreensão fenomenológica da relação sujeito-objeto como base (Beauvoir, 1945a, 363). De acordo com Beauvoir, tal compreensão é necessária para um comprometimento total sincero e ético.

Beauvoir vê o principal valor do trabalho de Merleau-Ponty aqui. Para Merleau-Ponty, ela escreve, a consciência pessoal “não é um puro para-si, nem uma lacuna no ser, como Hegel escreveu, e Sartre repetiu, mas é ‘uma curva, uma dobra que pode ser desdobrada’” (1945a, 367). Ela explica mais profundamente que Merleau-Ponty rejeita a oposição de Sartre entre o para-si e o em-si e descreve o sujeito corporizado em sua existência concreta; suas simpatias estão claramente com Merleau-Ponty (1945a, 366). Para ela, as descrições fenomenológicas de Merleau-Ponty do corpo, suas espacialidade, movimento, sensações, fala, e sexualidade são uma fonte “rica” e “convincente”. Seu mérito adicional é que não são “violentas”: pelo contrário, elas sugerem que devemos adotar o movimento da vida em si (Beauvoir, 1945a, 367).

A resenha é testemunho do compromisso de Beauvoir com a fenomenologia. Também demonstra que Beauvoir via claramente a diferença entre as interpretações de Merleau-Ponty e de Sartre do trabalho de Husserl, e que ela considerava a modificação não-dualista de Merleau-Ponty mais promissora relativamente a suas implicações éticas (Beauvoir 1945a, 367).

A vasta e original inovação de Beauvoir foi colocar a questão da diferença sexual dentro e em termos de uma fenomenologia do corpo [8]. O Segundo Sexo nos dá uma descrição rica do corpo sexual vivente, seus aspectos corporais e espirituais, e suas relações com outros corpos e com o mundo como um todo. Portanto, sugere a questão fundamental da sexualidade da própria filosofia. Na compreensão de Beauvoir, a sexualidade não é um detalhe do ser mas um elemento que atravessa nossa existência inteira — incluindo nossas reflexões filosóficas.

O filósofo e a escritora

Podemos nos perguntar por que tantos intérpretes têm negligenciado as afirmações filosóficas explícitas de Beauvoir. Uma razão para essa negligência é que os trabalhos de Beauvoir são geralmente estudados no contexto de sua vida pessoal, e sua vida pessoal é quase sempre reduzida a seu relacionamento com Sartre [9]. Aqui a comum comparação é entre “Beauvoir — a novelista” e “Sartre — o filósofo”. Tais representações geralmente se referem a uma entrevista que Beauvoir concedeu em 1979, publicada [na revista] Feminist Studies. Lá ela afirmou: “Sartre é um filósofo. Eu não sou” (Benjamin e Simons, 1979, 330–45). A conclusão prevalecente é de que Beauvoir não possuía interesses filosóficos ou fenomenológicos, e que seus trabalhos podem ser interpretados e avaliados sem qualquer referência a conceitos ou métodos filosóficos.

Essa conclusão é um erro. A relação de Beauvoir com a filosofia é muito mais complexa do que tais simples oposições nos levam a crer. Em sua autobiografia, ela caracteriza suas atividades e interesses filosóficos em várias seções diferentes. Ela clarifica seus compromissos filosóficos ao rejeitar certas abordagens e afirmar outras. Ela dá uma imagem clara de suas habilidades intelectuais e de suas fraquezas, e ela expressa seu entusiasmo e seu amor (ver, por exemplo, Beauvoir 1997b, 220–22, 324). Mais do que isso, Beauvoir explica como sua literatura fazem parte das discussões filosóficas da relação eu-outro e da relação entre universalidades e particularidades (1997a, 92–98; 1995a, 625–29). A imagem simples da escritora mulher e do filósofo homem ignora a rica evidência que Beauvoir fornece de sua vida filosófica.

Mas o que é mais problemático — ao menos, filosoficamente mais problemático — é que a imagem é baseada numa noção ingênua de filosofia, e o que é pior, uma que a própria Beauvoir não aprovava: o filósofo é visto como um construtor de sistemas, como um inventor original e criador que trabalha independentemente da tradição intelectual, ou até contra ela.

Beauvoir apresenta uma visão diferente de filosofar, uma noção alternativa de filosofia. Em sua escrita, a atividade filosófica é vista primariamente como a busca por verdade e evidência, e como questionamento e comunicação com outros. Sua autobiografia deixa essa noção bastante explícita e argumenta por ela. Quando ela descreve, por exemplo, quando tentou estudar o sistema de Hegel e finalmente começou a compreendê-lo, Beauvoir é cuidadosa em distinguir entre compreensão e afirmação:

Eu segui adiante lendo Hegel, e comecei a entendê-lo melhor; a riqueza de detalhes me deslumbrava, e o sistema como um todo me deixava tonta. — Mas os movimentos mais modestos do meu coração refutavam tais especulações: esperança, raiva, expectativa, ansiedade se afirmavam contra todas essas transcendências [dépassements]. O vôo ao universal era apenas um episódio passageiro na aventura pessoal de minha vida. Eu voltei a Kierkegaard, que eu estivera lendo com paixão; a verdade que ele afirmava desafiava a dúvida tão vitoriosamente quanto a evidência Cartesiana. Nem o Sistema, nem a História poderiam, não mais do que o Demônio Malicioso, cancelar a certeza viva de “Eu sou, eu existo, nesse lugar e nesse momento, eu”. (Beauvoir, 1995a, 537)

Beauvoir contrasta o sistema Hegeliano com suas próprias paixões. Isso não é uma rejeição do pensamento filosófico; é um desafio a certa compreensão de filosofia: Beauvoir questiona as doutrinas de Sartre e de Hegel ao apelar à evidência de sua experiência vivida (ver também Beauvoir 1997b; 341; 1995a, 498–499, 627–628; 1947, 104–105, 158–59) [10]. Não deveríamos tomar a afirmação como testemunha de um foco na vida pessoal ou em afazeres cotidianos. Ao desafiar sistemas filosóficos em nome da intuição e da paixão, Beauvoir apresenta uma afirmação filosófica, uma afirmação sobre a natureza do pensamento filosófico. Ela afirma a noção Cartesiana que dá prioridade a evidências presentes, e isso a leva a rejeitar todas as teorias filosóficas e todas as “finalidades da história” que falham em justificar a si mesmas com tais evidências (Beauvoir 1947, 145–46) [11].

O contexto do trabalho de Beauvoir é a tradição continental de filosofia, que dá bastante crédito ao radicalismo de René Descartes. Nessa tradição, Descartes não é apenas criticado como dualista, mas também apreciado como um crítico do pensamento habitual. As fontes mais relevantes são o texto metodológico de Descartes, no qual ele sugere que devemos — pelo menos uma vez na vida — questionar todas as nossas convicções. O objetivo é não se envolver em criticar os outros; em vez disso, o objetivo é questionar as próprias pré-concepções, assumir responsabilidade pelas próprias crenças e convicções por meio de tal autocrítica.

Ao especificar sua atitude filosófica, Beauvoir se refere a Soren Kierkegaard, Husserl, Merleau-Ponty, e Heidegger, que desenvolveram para mais além a noção Cartesiana de filosofia enquanto pensamento radical. No movimento fenomenológico-existencial, a ideia de Descartes de radicalismo filosófico é intensificado a tal ponto que se torna o requisito de uma recorrente autocrítica. O trabalho do filósofo nunca está completo; ele/ela deve retornar do claro e distinto foco de sua reflexão em direção a suas margens escuras e ambíguas. Esse Cartesianismo radical é o coração da ideia de Beauvoir de atividade e de prática filosófica.

Adicionalmente a crítica e evidência, Beauvoir enfatiza o papel da linguagem. Ela vê a filosofia como uma tentativa de buscar a verdade por meio do questionamento radical, mas ela não pensa que isso pode ser conquistado ou mesmo praticado em solidão. Pensar não é um monólogo interno, é cooperação, e como tal depende essencialmente de outros, de seus pensamentos expressos em palavras e textos. Para Beauvoir, filosofia significa um diálogo, uma discussão com os outros por meio da fala e da escrita. Em sua autobiografia, ela afirma que a escrita é o único lugar (lieu) em que a intersubjetividade e a transcendência podem ser concretizadas (1995b, 242; 1996, 498).

Assim, os contrastes que Beauvoir faz entre filosofia e literatura não são uma rejeição da filosofia por arte, mas uma rejeição de filosofias que não prestam atenção à experiência vivida e sua expressão na linguagem.

Para resumir, Beauvoir não pensava que o aspecto mais importante da filosofia é concretizado na construção solitária de sistemas. Em vez disso, ela enfatizava o papel do questionamento, da problematização, e do diálogo. Quando ela afirmou que ela não é uma filósofa, ela quis dizer que ela não é uma construtora de sistemas ou uma construtora de teorias. Isso não implica que a seu trabalho faltavam empenhos filosóficos. Pelo contrário, Beauvoir tentou concretizar em sua própria escrita a atitude aberta e autocrítica que ela considerava o núcleo vivo de toda filosofia e que ela encontrou na tradição fenomenológica de pensamento moderno.

Essa é minha interpretação da ideia de Beauvoir de filosofia. No que se segue, eu argumento que deveríamos levar a ideia a sério e usá-la como chave ao tentar desvendar o trabalho complexo de Beauvoir sobre sexualidade. As seções seguintes oferecem uma leitura precisa das primeiras páginas d’O Segundo Sexo, no qual Beauvoir expõe a base conceitual e metodológica para seu estudo. Meu objetivo é demonstrar que Beauvoir começa seu trabalho colocando uma série de questões filosófico-fenomenológicas. Ela não está levando adiante uma investigação empírica, nem está interessada em declarar direitos. Em vez disso, ela quer questionar as ideias básicas que pressupomos quando discutimos e argumentamos sobre relações sexuais.

A questão da mulher

Beauvoir começa O Segundo Sexo, não colocando uma tese, mas colocando uma pergunta. Em suas primeiras palavras no livro, ela nos diz que por muito tempo ela pensou em escrever um livro sobre a mulher (sur la femme), mas, em vez de começar definindo e descrevendo seu objeto de pesquisa, ela então pergunta qual deveria ser a pergunta, como ela deveria ser posta: “Ademais, haverá realmente um problema? Em que consiste?” (Beauvoir, 1993, 11 [2009, 10]).

A interpretação aceita presume que Beauvoir toma a noção de mulher como dada e segue para explicar a existência e a situação desse ser chamado “mulheres”. Mas, na verdade, Beauvoir começa problematizando o tópico de discussões feministas e antifeministas. Ela pontua que a questão da mulher não é um problema bem definido; ele tem diferentes significados, e mesmo seu senso e relevância podem ser postos em dúvida. A formulação da questão é, assim, parte do problema a ser estudado, e é por isso que devemos começar pelo exame de diferentes perguntas [12].

Primeiro, Beauvoir apresenta uma série de perguntas sobre ser e existência. Ela pergunta, Em verdade, haverá mulher?, e, mais adiante, Não sabemos mais exatamente se ainda existem mulheres, se existirão sempre, se devemos ou não desejar que existam (1993, 11 [2009, 10]). Podemos pegar todas essas perguntas como perguntas comuns factuais sobre sujeitos no mundo, e então podemos respondê-las com “sim” ou “não”, dependendo de nossas experiências, interesses, e uso de palavras. Também podemos pegar as perguntas de Beauvoir num sentido filosófico, enquanto perguntas sobre o significado do ser e da realidade, e eu sugiro que isso era parte do propósito de Beauvoir [13]. Ela não está tentando provar (ou desprovar) a realidade da existência das mulheres, mas mira em primeiro lugar em colocar questões fundamentais sobre a forma de ser da mulher: Como ela existe? O ser dela é real? E, O que se entende por realidade quando ela é afirmada? Se seguirmos essa linha de pensamento, então os problemas não podem ser solucionados simplesmente ao nos referirmos às nossas experiências; devemos estudar também a base e os significados das experiências.

Então as primeiras páginas do livro de Beauvoir nos apresentam questões sobre ser, mas as deixam sem solução: a realidade das mulheres não é nem afirmada nem negada. Assim, o foco é mudado para investigações ontológicas fundamentais sobre o significado do ser. Beauvoir continua ao pedir uma definição de mulher, nomeadamente, O que significa essa realidade?

Mas nem mesmo essa pergunta é respondida diretamente. Em vez de definir seu objeto de pesquisa, Beauvoir passa a estudar a possibilidade de diferentes definições. Ela distingue, primeiramente, entre três realidades diferentes — o fato de se ser fêmea (femaleness), a feminilidade (femininity), e o ser mulher ou mulheridade (womanhood) — e apresenta uma definição provisória: “Todo ser humano do sexo feminino não é, portanto, necessariamente mulher; cumpre-lhe participar dessa realidade misteriosa e ameaçada que é a feminilidade” (1993, 11 [2009, 10]).

Isso equivale a dizer que o fato de se ser fêmea é necessário mas não suficiente para fazer uma mulher. Em acréscimo, é preciso se ter a qualidade vaga de feminilidade. Então a pergunta se torna, Qual é a natureza dessa qualidade? E: Será mesmo uma qualidade, ou, em vez disso, algum outro tipo de realidade? É importante acertar a pergunta. Beauvoir não está buscando pelo conteúdo da feminilidade; ela quer estudar seu status ontológico; como a feminilidade existe, como ela se apresenta a nós, qual é sua forma de ser. Aqui, de novo, Beauvoir considera diversa alternativas. Ela pergunta se a feminilidade é um produto da imaginação ou uma realidade ideal. Ou será um modelo ou um objetivo de ação e comportamento? (Beauvoir, 1993, 12).

Às vezes se afirma que Beauvoir nega a realidade da feminilidade. Mas se estudarmos seu livro com cuidado, fica claro que isso é uma interpretação equivocada. Beauvoir formula a maioria das suas perguntas e descrições em termos de existência feminina. Em vez de se referir à escrita de mulheres, às experiências sexuais de mulheres ou ao mundo das mulheres, ela fala sobre “literatura feminina” (la littérature féminine 1993, 30), “erótica feminina” (l’érotisme féminin 1991, 176), e “o mundo feminino” (le monde féminin 1993, 30). O que é mais importante é que quando ela define sua tarefa descritiva, ela usa o conceito de existência feminina (existence féminine), não o conceito de mulher: “Não se trata aqui de enunciar verdades eternas, mas de descrever o fundo comum sobre o qual se desenvolve toda a existência feminina singular” (1991, 9; ver também 1993, 13 [2009, 308]).

A introdução ao livro põe a questão da natureza da feminilidade em termos da controvérsia entre universalismo e particularismo. Beauvoir apresenta as alternativas Medievais de conceitualismo e nominalismo e faz alusão à solução Platônica. Entretanto, ela não considera essas alternativas como filosoficamente satisfatórias. O livro é uma tentativa de defender uma visão mediativa que não postula essências eternas imutáveis mas não cai nem no particularismo, nem no nominalismo (Beauvoir 1993, 13). Beauvoir não rejeita a realidade da feminilidade apesar de não aceitá-la como uma essência imutável e estática. Ela a pensa em termos dinâmicos: ser uma mulher — tomar parte na realidade comum, geral da feminilidade — não é estar subsumida a um conceito ou uma regra geral, e não é para justificar uma ideia perpétua ou uma essência Platônica. Ser uma mulher é ter se tornado uma mulher (1993, 25). Para Beauvoir, a mulher “não é uma realidade imóvel, e sim um vir-a-ser” (1993, 73 [2009, 57]). [14]

Conseguimos compreender essa ideia apenas se levarmos a sério o comprometimento de Beauvoir com a compreensão fenomenológica do corpo vivente. Como demonstrado acima, para Beauvoir, o corpo não é uma coisa, mas uma forma de se relacionar com coisas, uma forma de agir sobre elas e de ser afetado por elas. É “nossa tomada de posse do mundo e o esboço de nossos projetos” (1993, 73 [2009, 57]).

Como tal, o corpo é uma abertura, mas como uma melodia do que uma estrutura sólida e estável. Suas realizações anteriores não determinam suas manifestações futuras, mas elas de fato sugerem e motivam diferentes alternativas, e abrem horizontes de ações possíveis. Beauvoir enfatiza que a condição humana é indefinida e ambígua: ela possibilita diferentes variações e modificações (1995a, 21). Sua generalidade não é aquela de um conceito ou uma ideia imóvel; não reside nas particularidades nem acima delas, mas reside nas relações entre as particularidades. Em A força das coisas (La force des choses, 1963), ela afirma seu ponto de vista bem explicitamente: “(…) a dimensão dos empreendimentos humanos não é o finito nem o infinito, mas o indefinido: esta palavra não se deixa encerrar em nenhum limite fixo; a melhor maneira de abordá-la é divagar sobre suas possíveis variações” (Beauvoir 1997a, 97–98 [2009, 64]).

Para Beauvoir, corpos femininos e masculinos não são dois tipos de entidades, mas diferentes variações de corporificação humana. Ambos dão forma e recriam “em suas diferentes formas” a condição humana, que é caracterizada pela ambiguidade fundamental (Beauvoir 1947, 11–12). No final d’O Segundo Sexo, ela escreve: “Em verdade, o homem é, como a mulher, uma carne, logo uma passividade, joguete de seus hormônios e da espécie, presa inquieta de seu desejo; e ela é, como ele, consentimento, doação voluntária, atividade em meio à sua febre carnal; vivem cada qual à sua maneira o estranho equívoco da existência feita corpo.” (1991, 658 [2009, 812]; ver também 1947, 11–15).

Compreendida dessa forma, a feminilidade é como um tema musical: não é determinada por suas performances anteriores, mas vive e evolui no ambiente criado por elas. Não reside em órgãos, pessoas, ou práticas específicas, mas reside dentre elas. Então se manifesta e desenvolve na inteireza de ações e paixões, e sua especificidade está em seu modo de mudar.

Alteridade e submissão

Nós vimos que Beauvoir começa seu livro com uma série de questões radicais, questões ontológicas, e questões de definição. Mas isso não é tudo. A discussão da feminilidade é seguida por uma série de novas questões, questões sobre questionar. Beauvoir pergunta, Quem é ela para pôr a mulher em questão? Por que ela está fazendo a pergunta? Qual é sua motivação?

Essas perguntas autocríticas levam Beauvoir a apresentar e estudar as noções de alteridade e submissão. Ela nota que um homem nunca escreveria um livro sobre “a situação singular que ocupam os machos na humanidade” (1993, 14 [2009, 12]). Assim, a relação entre homem e mulher não é simétrica. Homem representa ambos os aspectos neutro e positivo da humanidade, mulher representa apenas o negativo (1993, 14). Homem descreve a si mesmo em suas teorias e histórias da humanidade, mulher fica em silêncio. Ele equivale a ambos o normal e o ideal; ela, ao divergente. Beauvoir comenta instando sua conhecida tese: “O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro” (1993, 15 [2009, 13]).

A afirmação de Beauvoir é geralmente tomada como uma afirmação da Alteridade das mulheres [15]. Mas se lermos cuidadosamente, mantendo em mente seu interesse filosófico, vemos que sua discussão envolve uma problematização radical dessas noções básicas, ambas a ideia da Alteridade das mulheres e a noção de sua submissão. No que se segue, eu sigo sua discussão e estudo essas ideias separadamente. Primeiro, eu foco na forma como Beauvoir problematiza a ideia da Alteridade da mulher e, então, discuto sua noção de submissão.

Ao se estudar a noção de diferença sexual de Beauvoir é extremamente importante perceber que o parágrafo que descreve a mulher como o Outro não é a última palavra de Beauvoir sobre o assunto. Ela acrescenta uma nota de rodapé para explicar que essa é uma definição dada por um homem (1993, 15–16, 403). Ela se refere a um texto específico, O tempo e o Outro (Temps et l’autre, 1933) de Emmanuel Lévinas, no qual Lévinas sugere que “A alteridade realiza-se no feminino. Termo do mesmo quilate, mas de sentido oposto à consciência” (Lévinas 1933, 77). Beauvoir responde a isso criticamente argumentando que Lévinas ignora o fato de que também a mulher é uma consciência para si mesma. Ela resume: “o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele” (Beauvoir 1993, 15 [2009, 13]).

Para compreender essa argumentação, devemos uma vez mais retornar aos textos de Husserl porque a discussão de Lévinas sobre a feminilidade é largamente baseada no trabalho de Husserl. É uma crítica da análise que Husserl apresenta em sua quinta Meditações Cartesianas (Méditations cartésiennes 1931; Cartesianische Meditationen 1950) da relação eu-outro. Nela, Husserl estuda o caso simples de perceber o outro. Ele aponta que para ver outro ser consciente, outra pessoa, é ver alguém que é capaz de ver você, alguém que que é semelhante a você relativamente à capacidade de ver. Então a reciprocidade, de acordo com Husserl, é uma condição necessária para se relacionar com o outro: ver o outro requer que você o/a veja como um ser que vê (Husserl 1950, 122) [16]. Beauvoir repete essa ideia em sua análise: “Só há presença do outro se o outro é ele próprio presente a si; isso significa que a verdadeira alteridade é a de uma consciência separada da minha e idêntica a ela” (Beauvoir 1993, 237 [2009, 179]).

Quando Lévinas pergunta se há um caso de Alteridade absoluta, ele está perguntando se é possível vivenciar o outro sem pressupor a identidade de atividades, por exemplo, ver. E quando ele afirma que a feminilidade representa o Outro absoluto (para ele), ele sugere que a diferença sexual é uma relação específica na qual o outro é vivenciado sem qualquer possibilidade de identificação. A relação sexual é uma terceira forma de se relacionar com o mundo: o outro não é percebido como um objeto material, totalmente sem experiências, ações e paixões, mas também não é vivenciado como um alter ego, com atividades similares às suas próprias. O outro sexual é diferente numa forma que é qualitativamente específica.

Beauvoir ataca a análise de Lévinas: “é impressionante que [ele] adote deliberadamente um ponto de vista de homem sem assinalar a reciprocidade do sujeito e do objeto” (1993, 16 [2009, 807 — as notas de rodapé, nessa edição brasileira, foram jogadas para o fim do livro]). Aqui ela parece interpretar mal ao menos parte da alegação de Lévinas. Para ela, Lévinas nega a subjetividade feminina e reduz o outro feminino ao status de objeto e matéria (1993, 17) [17]. Mas a afirmação de Lévinas pode ser entendida no sentido oposto: em vez de harmonizar a diferença entre dois sujeitos sexuais, exagera a diferença. O feminino é vivenciado como um outro, mas não como um alter ego, não uma outra consciência, uma espécie diferente do mesmo gênero. Ao invés disso, o feminino aparece como radical e eternamente impossível de se conhecer.

Meu objetivo aqui não é tomar um posicionamento quanto à controvérsia entre Beauvoir e Lévinas. Eu só quero deixá-la explícita e mostrar sua dívida à fenomenologia de Husserl. Beauvoir não aceita a ideia de Lévinas da diferença sexual radical. Para ela, mulheres e homens são duas variações de corporificação humana.

Isso leva Beauvoir às questões de reciprocidade e submissão. Como a semelhança e a reciprocidade dos sexos não foi reconhecida? Como um dos termos contrastados é colocado como o único essencial, e o outro é definido como pura Alteridade? “De onde vem essa submissão no caso das mulheres?” (Beauvoir 1993, 18 [2009, 17]).

O que se segue é uma discussão da natureza da submissão da mulher. O que é notável e importante é que Beauvoir não segue adiante por meio da apresentação de causas ou efeitos. Em vez disso, ela foca na natureza do fenômeno e a esclarece apontando que não é resultado de nenhuma mudança social, nem é um efeito de nenhum acontecimento ou fato histórico: “por mais longe que se remonte na história, [as mulheres] sempre estiveram subordinadas ao homem: sua dependência não é consequência de um evento ou de uma evolução, ela não aconteceu” (1993, 18 [2009, 17; destaque no original]).

O objetivo de Beauvoir não é negar a submissão. Ela não alega que a submissão “não aconteceu”, mas sugere que sua realidade não está na ordem dos acontecimentos. Então não é como se Beauvoir primeiro colocasse a submissão das mulheres como um acontecimento, e só então negasse sua realidade. Em vez disso, ela questiona seu status enquanto um acontecimento, enquanto um evento contingente, acidental. Ela aponta para a natureza peculiar, específica dessa submissão, sua “aparente” necessidade de naturalidade (1993, 18). A submissão das mulheres não é um fato contingente nem uma estrutura necessária; sua forma de aparecer, seu significado ontológico, está de alguma forma entre esses dois extremos.

Aqui, novamente, Beauvoir se refere à Fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty. Nele, no fim do capítulo sobre sexualidade, Merleau-Ponty escreve que “a existência humana nos forçará a rever nossas ideias padrão da necessidade e da contingência, porque ela — a existência — é a transformação da contingência em necessidade pelo ato de repetição” (Merleau-Ponty 1993, 199; Beauvoir 1993, 39–40). Ele explica: “A existência não tem atributos ao acaso, nenhum conteúdo que não contribua para lhe dar forma, ela não admite em si um fato puro porque ela é o movimento pelo qual os fatos são assumidos” (Merleau-Ponty 1993, 198).

Merleau-Ponty argumenta que a sexualidade não pode ser descrita como um fato, porque ela caracteriza nossa existência já naquele nível básico de experiência que funciona como a fundação para a constituição dos fatos. De acordo com ele, a sexualidade é tão fundamental à existência humana quanto a mortalidade ou a corporeidade. Beauvoir aceita isso, mas ela argumenta que a relação sexual não precisa ter a estrutura de submissão nem mesmo de diferença (Beauvoir 1991, 189). Essas formas de experiência não são necessárias na mesma forma, ou no mesmo sentido, como a mortalidade e a corporeidade. Isso porque, ela afirma, é mais fácil imaginar “uma sociedade reproduzindo-se por partenogênese ou composta de hermafroditas” do que pensar sobre um ser humano imortal ou sem corpo (1993, 40 [2009, 32]).

O contexto dessa discussão entre Beauvoir e Merleau-Ponty está no método de livre variação imaginária de Husserl (freie variation der Phantasie). O indivíduo fenomenólogo começa a partir de um exemplo específico e objetiva desvendar as estruturas essenciais, necessárias de toda experiência. De acordo com Husserl, isso pode ser desenvolvido variando a experiência na imaginação e estudando sua relação com outros casos, verdadeiros e possíveis. Aqui, o indivíduo fenomenólogo se vale da ajuda das descrições de historiadores e artistas. Husserl nota que especialmente poetas podem ajudar o indivíduo fenomenólogo a imaginar possibilidades incomuns e extraordinárias (Husserl 1913, 16–17, 163).

Beauvoir e Merleau-Ponty concordam que a sexualidade é uma estrutura básica da existência humana, comparável à mortalidade. Merleau-Ponty sugere que toda experiência de outro ser humano é uma experiência de um homem ou uma mulher (ver também Fink 1988, 274). Beauvoir, por outro lado, aponta para a possibilidade de imaginar uma sociedade sem diferenciação sexual (différenciation sexuelle — Beauvoir 1993, 40). Aqui a ajuda dada pela literatura é indispensável: a ficção científica e estudos antropológicos nos ajudam a nos distanciarmos de nossa própria experiência e imaginar possibilidades estranhas. [18]

A diferença sexual talvez seja mais profundamente incrustada em nossa experiência de pessoas e seres humanos do que, por exemplo, a cor da pele ou outras diferenças “raciais”. Pode-se minimamente sustentar isso ao apontar que existem sociedades que não fazem a distinção entre negros e brancos, mas não há cultura conhecida que não faça a distinção entre mulheres e homens. Entretanto, Beauvoir parece estar certa em insistir que nem toda experiência de personalidade precisa envolver diferenciação sexual.

Em resumo, Beauvoir nos oferece três definições ao apresentar o problema da mulher. Primeiro, ela apresenta a ideia de que ser uma mulher significa ambos ser fêmea e ser feminina. Em segundo lugar, ela afirma que a mulher é o Outro. Em terceiro, ela apresenta a ideia de submissão. Então, seu trabalho claramente envolve definições, mas é crucial perceber que ele não afirma nenhuma delas: todos os termos definidores — feminilidade, Alteridade, e submissão — são subsequentemente problematizados. Assim, a interpretação aceita que lê a introdução do livro como uma definição de mulher é baseada numa má compreensão. Mais tarde, em seu trabalho, Beauvoir deixa seu propósito bem claro ao afirmar que “em seu coração, ela é para si mesma indefinível: uma esfinge” (1993, 400 [2009, 300]). O Segundo Sexo não nos oferece uma teoria geral das mulheres nem uma definição delas. Seu principal interesse e mérito está numa tentativa inegociável de questionar e testar todas as definições e teorias.

Beauvoir escreve: “O fato é que ela se veria bastante embaraçada em decidir quem ela é; a pergunta não comporta resposta; mas não porque a verdade recôndita seja demasiado móvel para se deixar aprisionar: é porque nesse terreno não há verdade.” (Beauvoir 1993, 401 [2009, 300]).


Tradução do artigo Simone de Beauvoir’s Phenomenology of Sexual Difference, de Sara Heinämaa, publicado originalmente na revista Hypatia, vol. 14, n. 4 (outono de 1999). Você pode ler o original em inglês aqui.

Nota de tradução: quando aparecerem duas datas dentro de um parêntesis — exemplo: (1993, 54 [2009, 49]), a data entre colchetes [] representa o ano da edição em português, da qual tirei a citação traduzida.


Notas

[1] Por favor note que em respeito aos requisitos de estilo da Hypatia [revista na qual esse artigo foi publicado], eu cito apenas as datas de republicações/traduções contemporâneas de textos; na lista de referências eu forneço datas para os textos originais em francês e alemão. Eu coloquei minhas próprias traduções nesse artigo, porque as traduções correntes são frequentemente enganosas e até falsas.

[2] Eu já argumentei a favor do esforço fenomenológico de Beauvoir em trabalhos anteriores meus (Heinämaa 1995, 1996a, 1997), mas eu desenvolvo meu argumento mais longamente aqui ao focar na ideia de filosofia de Beauvoir. Para outras interpretações que indicam ou explicam os esforços fenomenológicos de Beauvoir, ver Simons (1983), Butler (1986), Kruks (1990), Vintges (1996), e Bergoffen (1997).

[3] O movimento de recuo ou de detenção da fenomenologia é às vezes descrita como distanciamento. Husserl, entretanto, usava o termo alemão ausschalten, que tem o significado de “separação”, mas também pode ser compreendido como “desligar” (1913, 65–66). Quando a palavra é tomada no segundo significado, então o passo fenomenológico não requer que quebremos nossas conexões com o mundo, mas apenas que interrompamos nossas atividades naturais e habituais.

[4] Para um estudo mais detalhado da noção de Husserl de filosofia e ciência, ver Heinämaa (1998b).

[5] Ver Pyrrhus et Cinéas (Beauvoir 1944) e Por uma moral da ambiguidade (Beauvoir 1947). Sobre a relevância ética e filosófica dos romances de Beauvoir, A Convidada (1943), O Sangue dos Outros (1945b) e Todos os Homens são Mortais (1946), ver Beauvoir (1995a, 618–29; 1997a, 92–100) e Merleau-Ponty (1966).

[6] O substantivo alemão Leib relaciona-se ao verbo leben, que significa “viver”. O termo foi traduzido para o inglês de várias formas diferentes. David Carr usa “living body” em sua tradição de Krisis; para Körper ele usa ambos “body” [corpo] e “physical body” [corpo físico], dependendo do contexto (Husserl 1988, 50). Richard Rojcewicz e André Schuwer usam o termo “Body” [Corpo] (com letra maiúscula) para Leib, e o termo “body” [corpo] para Körper, em sua tradução da segunda parte do Ideen de Husserl (Rojcewicz e Schuwer, 1989, xiv).

A discussão de Merleau-Ponty do corps vivant ou corps vécu (Leib) é frequentemente traduzida com o termo “lived body” [corpo vivido]. Eu não sigo essa convenção porque minha intenção é dar luz às conexões metodológicas e conceituais entre Husserl, Merleau-Ponty, e Beauvoir. Então eu sigo o procedimento de Carr e uso o termo “living body” para ambos o alemão Leib e o francês corps vécu.

[Em português, Leib costuma se traduzido como “corpo vivente”, “corpo que vive”; Körper, como “corpo”; e o corps vécu, tambémcomo “corpo vivido”, como no inglês]

[7] Sobre a discussão de Husserl do corpo vivente, ver Zahavi (1994).

[8] Algumas pensadoras feministas alegam que a fenomenologia do corpo de Merleau-Ponty é androcêntrica (Butler 1989, Grosz 1994). Para um contra-argumento, ver Heinämaa (1997), Stoller e Vetter (1997), Waldenfels (1998, 186–95), e Stoller (1999).

[9] Para uma visão mais ampla, ver Simons (1986), Le Doeuff (1991), Kruks (1990, 1991), Lundgren-Gothlin (1992, 1995), Heinämaa (1996b), e Fullbrook e Fullbrook (1994).

[10] Sobre a relação de Beauvoir com a filosofia de Hegel e suas diferentes interpretações, ver Lundgren-Gothlin (1992), e O’Brien-Ewara (1999).

[11] N’O Segundo Sexo, Beauvoir argumenta contra o sistema de Freud de maneira semelhante: “A ideia [Freudiana] de uma ‘libido passiva’ desnorteia porque se definiu a libido a partir do macho como impulso, energia; mas não se conceberia tampouco a priori que uma luz pudesse ser a um tempo amarela e azul: é preciso ter a intuição do verde” (1993, 92–93 [2009, 72]). O argumento de Beauvoir aqui é metodológico: ela aponta que Freud foi incapaz de entender o desejo feminino (désir femelle) porque ele definiu desejo sexual a priori como um princípio puramente ativo. A crítica fenomenológica de Beauvoir é que em vez de se firmar a conceitos tradicionais, Freud deveria ter confiado no que ele via e ouvia, ou seja, em expressões de um tipo diferente de desejo (verde), não analisável em termos de atividade e passividade (amarelo e azul).

[12] Nancy Bauer (1997) argumenta de forma interessante que o questionamento radical de Beauvoir e sua argumentação crítica é analógica àquela de Descartes em suas Meditações sobre Filosofia Primeira.

[13] A pesquisa fenomenológica começa com a distinção entre perguntas factuais sobre a realidade e o ser, por um lado, e perguntas fenomenológicas sobre os significados de realidade e ser, por outro lado. Eugen Fink argumenta em seu “Die phanomenologische Philosophie Edmund Husserls in der gegenwartingen Kritik” (Fink 1933) que a redução fenomenológica não é uma solução para problemas precedentes nem um método de resolvê-los mas um ponto de partida para uma nova forma de questionar. Depois, autores repetem a ideia: Heidegger começa seu Ser e Tempo (Sein und Zeit 1927) ao distinguir entre questões “ônticas” factuais sobre entidades e fatos, e questões “ontológicas” sobre o significado de Ser. Merleau-Ponty faz uma distinção semelhante entre questões filosóficas e factuais no terceiro capítulo de seu trabalho tardio O visível e o invisível (1964). Ver também Merleau-Ponty (1998, 123–42; 1989).

[14] Eu já argumentei em outras ocasiões que a visão aceita que identifica a noção de Beauvoir de vir-a-ser ao processo de socialização é equivocada (Heinämaa 1996a, 1996b, 1997).

[15] Os termos outro e alteridade são capitalizados quando usados no sentido absoluto de Lévinas, que exclui a reciprocidade. É notável que críticas não questionem a base dessa interpretação mesmo quando ela lhes leva a constatar que Beauvoir caía em contradições simples. Ver, por exemplo, Hekman (1990, 74–76), e Chanter (1995, 48, 73).

[16] Sobre a compreensão de Husserl da relação eu-outro e intersubjetividade, ver Zahavi (1996a, 1996b), e Fisher (1998).

[17] É possível, é claro, que exista uma discordância genuína, não uma má compreensão. Beauvoir argumentava por uma ética humanista ateísta, e, nesse parágrafo, talvez ela esteja simplesmente rejeitando o modelo teísta que Lévinas estava desenvolvendo para a alteridade com base na tradição judaico-cristã (Beauvoir 1993, 242–43, 295–96).

[18] Beauvoir termina seu artigo sobre [o Marquês de] Sade escrevendo: “O valor supremo de seu testemunho está em sua capacidade de nos perturbar. Nos força a re-examinar rigorosamente o problema básico que assombra nossa época em diferentes formas: a verdadeira relação entre homem e mulher” (Beauvoir 1990, 64). Por outras descrições perturbadoras da diferença sexual e não-diferença, ver, por exemplo, Woolf (1998) e Garreta (1986).


Edição em português utilizada para retirada das citações d’O Segundo Sexo: BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Tradução de Sérgio Milliet. 2. ed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2009. 2v.

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