jineologia

Jineologia é um rio encontrando seu curso. As ideias de cada mulher, seu estudo, as informações que ela encontra, os segredos que sua mãe sussurra em seus ouvidos, o poder da interpretação, tudo isso são gotas que fortalecem o fluxo desse rio. Seu aspecto mais lindo é seu esclarecimento espontâneo a partir da cegueira social. Jineologia é garantir que o conhecimento que se lhe transmite seja transmitido à sociedade. Além disso, jineologia enriquece a pesquisa em todos os campos, seja economia, saúde ou história.

A luta das mulheres curdas se tornou visível com os ataques perpetuados pelo Estado Islâmico na região de Kobane, em 2014. Dizemos “se tornou visível”, porque a luta das mulheres curdas tem uma história de pelo menos 40 anos (se aceitarmos o congresso de fundação do PKK em 1978, ao qual compareceu Sakine Cansiz, que foi assassinada em 2013, como data inaugural). Isto é, a organização confederada de mulheres em todas as quatro partes do Curdistão é unicamente um resultado da luta contra o Estado Islâmico. Então resultado de quê? Como as mulheres curdas são parte de um partido que trava uma luta ideológica e armada por identidade nacional contra estados-nação dominantes, ou o resultado de uma resposta cada vez mais original de dentro do partido à questão das mulheres? Eu acredito que ambos são fatores fundamentais, sabendo que não nos vinculamos a ciências sociais que reduzem realidades a um único elemento.

Há um sistema sob o guarda-chuva do Partido das Mulheres Curdas (PAJK) que está travando uma luta por identidade nacional, com inúmeras organizações de autodefesa, em Rojava a YPG, em Rojhilat [Leste] HPJ (Forças de Proteção das Mulheres); em Bakur [Norte] YPS Jin (HPS — Mulheres), em Şengal [Sinjar] YJŞ (Coletivo das Mulheres de Şengal), a principal fonte dessas sendo YJA STAR, com um sistema confederado executado pelo TJA — Tevgera Jinen Azad, em Bakur; RJAK no sul; KJAR no Leste; Kongreya Star em Rojava; TJK-E na Europa com laços vagos com KJK ( Komen Jinen Kurdistan, Comunidades de Mulheres do Curdistão). Se acrescentarmos centenas de assembleias, comunas, ONGs, grupos de fé, seções de mulheres em partidos políticos e iniciativas eu acho que não seremos capazes de chegar ao nosso ponto principal.

O progresso sistemático, institucional e organizacional acima citado é um passo significativo em direção à luta das mulheres por existência. Entretanto, ainda há um longo caminho a ser percorrido. É claro que abordamos a questão nos termos do líder dos povos Curdos, Öcalan: “a primeira classe explorada, a primeira colônia e nação são as mulheres”. Dizemos então que o ponto crucial relativamente à luta das mulheres pela existência é uma transformação de mentalidade. Essa é precisamente a razão por que discutimos a questão da jineologia — ciência das mulheres, algo que nos perguntam sempre. É nossa crença que apenas uma construção forte de mentalidade nesse nível sistemático de desenvolvimento garantirá transformação social. O mais importante de tudo é o fato de que apesar de todo avanço que fizemos organizacional, política, teórica e praticamente contribuir à transformação social, ele só pode resolver uma parte dos problemas sociais das mulheres, que são um nó górdio. O patriarcado do governo, que se construiu sob a base do trabalho, das crenças, das ideias, dos sentimentos e dos corpos das mulheres, intervém constantemente em nossas vidas cotidianas. Ele invade nosso espaço com violência, exploração, negação, assassinato e criando ilusões. Tão importante quanto arrancar essas máscaras e organizar uma poderosa autodefesa contra esses ataques patriarcais é a construção de uma mentalidade. A Jineologia, à qual chegamos ao definirmos um paradigma baseado na liberdade, vai ser exitosa. A Jineologia argumenta que pode suplantar o sistema patriarcal, não só fisicamente, mas com uma mentalidade de autodefesa. Nós temos consciência de que essa é uma afirmação larga. A base de nossa afirmação é constituída por um desejo de corrigir a distorção de consciência criada pelo capitalismo, o qual mutila conceitos. Nesse caso, podemos começar redefinindo mulheres e ciência.

O que é uma mulher? Mulheres são a primeira forma criado pelo universo, que queria variedade. Uma forma que combinava todos os outros elementos com sua própria realidade, dando um significado universal original, combinando beleza, variedade e um livre fluxo.

Öcalan avalia o sujeito mulher como uma massa social, uma realidade com dimensões políticas, sociais e econômicas além do sujeito-objeto e gênero, apontando que mulheres constituem a seção mais ampla da natureza, ambos física e semiologicamente. Ele diz que mulheres deviam ser definidas como a essência da sociedade, não como a escória.

O que é ciência? Ciência é o método de causa e efeito, conexões, poder de mudança e o pensamento desenvolvido de seres humanos dentro do universo vivido. Em outras palavras, é um produto da mente social que transforma a si mesma em uma força de mudança. Nós mulheres desafiamos com intelecto social a civilização estatal de 5 mil anos, alegando que traremos mudança. Por essa razão dizemos jineologia. Isto é, queremos trazer as mulheres, que foram distanciadas da ciência, mais próximas a ela, para que a razão social se opere.

Qual é a conexão da ciência com questões sociais?

Jineologia construirá a si mesma como uma ciência social, porque tem muitas objeções às ciências sociais e desenvolverá essas objeções. Nesta conjuntura, vamos listar nossas objeções: em primeiro lugar, o fato de que as ciências sociais, que consideram que implementam leis das ciências naturais à sociedade, executam engenharia social. O ciclo do universo é unir, não estilhaçar. Nós nos opomos às ciências sociais lidarem com a sociedade como um objeto, porque quando a sociedade é percebida como um objeto o cientista social se vê a si mesmo diretamente como sujeito. Soluções apresentadas sem levar em consideração condições sociais, geográficas, intelectuais ou emocionais irão causar consequências imprevistas. Basta olhar para quantas previsões a respeito da Primavera Árabe se tornaram realidade e para os resultados de iniciativas que não estavam em harmonia com o tecido social do Oriente Médio. Nós nos opomos às ciências sociais elaborarem leis imutáveis, universais e rígidas para a sociedade. Vamos presumir que você é socióloga. Você pode confirmar que as razões para violência contra as mulheres e as soluções são as mesmas nos Estados Unidos e na Guinea? Ou você pode produzir os mesmos resultados para uma mulher que é sobrevivente de mutilação genital feminina no Iêmen e para uma mulher na Grã-Bretanha que está sofrendo de trauma psicológico? Mais importante de tudo, você pode confirmar que é capaz de tocar as almas dessas mulheres de longe, dizendo “a ciência é imparcial”? O fato de que você está distante da sociedade não significa justamente que você fechou a lacuna com os governantes? Será que você pode ser uma cientista social ao buscar a origem de problemas no Oriente, mas buscar as soluções no Ocidente? Será que separar as ciências sociais em áreas de especialização não conflitam com leis universais?

Será uma mera coincidência que as ciências sociais, divididas em centenas de seções e diferentes matérias, não fez das mulheres, a vanguarda da civilização, um sujeito de pesquisa? Em vez de definir as mulheres como o elemento fundamental e iniciador da socialização, ela as definiu como a conexão mais frágil e a fonte de problemas.

Jean Jacques Rousseau definiu as mulheres como “uma bagunça em potencial com necessidade de dominação”. Auguste Comte, o fundador da sociologia, alegava que os cérebros das mulheres eram menores que o tipo racial ideal. O sujeito de pesquisa era apenas o homem europeu branco.

Na verdade, isso não é apenas uma distorção da ciência social, mas também uma grande distorção das estruturas anteriores de conhecimento, mitologia, religião e filosofia. Platão, depois de dizer que as mulheres fariam o mesmo trabalho que homens, acrescentou que “mulheres deviam receber trabalhos mais fáceis devido à fraqueza de seu sexo”.

Aristóteles disse que “escravos não têm nenhuma habilidade de pensamento, as mulheres têm mas não funciona”. A mitologia também não desempenha um papel na distorção da realidade das mulheres ao alegar que a mulher é a fonte de todo o mal (a caixa de Pandora)?

As religiões também não representam mulheres como as causas de desastres, tornando essa mentalidade criada pelo patriarcado um comando divino? Para dar alguns exemplos,

A personificação das mulheres de Tomás Aquino como se segue: “Deus sabia que as mulheres cometeriam o pecado de antemão. As mulheres vieram à existência como resultado de um grande erro ou por meio do uso de materiais equivocados”.

No Antigo Testamento dos Judeus estão as palavras: “Eu criei mulheres a partir de um pedaço do corpo de Adão que está sempre coberto e escondido para que ela permanecesse para sempre coberta e casta”.

No 223º verso do Corão, diz-se: “Mulheres são seus campos. Podem tratá-las como desejarem…”.

É evidente que as ciências sociais e estruturas de conhecimento anteriores não promoveram nenhuma renovação da mentalidade quando o assunto são as mulheres, uma vez que a existência das mulheres sempre foi definida em relação aos homens. Essas questões são os aspectos aceitos como parte da crise atual das ciências sociais. A diferença da Jineologia começa a partir daqui, desejando colocar um fim na distorção imposta à existência das mulheres.

Talvez as palavras de Öcalan, “a coisa sobre a qual os homens mais mentem são as mulheres”, sejam suficientes para entender essa questão. Vamos agora definir jineologia.

Jineologia como conceito

Jineologia é uma definição curda. Eu particularmente enfatizo isso, porque o lugar das mulheres nas sociedades do oriente médio (na sociedade natural) é um de liderança, contrariamente às circunstâncias sociais.

Apesar de a mentalidade do sistema patriarcal ter tentado erradicar a existência das mulheres, um estudo etimológico ilustrará esse ponto. Quando olhamos para grupos linguísticos Indo-Europeus, vemos que muitas palavras conectadas à palavra “vida” são femininas. A palavra “vida” (jiyan) em curdo é derivada da palavra para “mulher” (jin), assim como a palavra para “vida” em persa (zendegi) vem da palavra para “mulher” (zen). A palavra para “liberdade” em Sumério, “margi”, significa “retorno à mãe”. No dialeto curdo Sorani, afrat significa “mulher”, enquanto que afirandın significa “criar”. Outras palavras derivantes da palavra jin incluem jindar (vivacidade) e jinda (que dá vida). A palavra pra “árvore” (wê darê) em curdo é feminina, enquanto que um pedaço de madeira (wî darî), que não está mais vivo, é masculino. Como podemos ver, até a energia vital da linguagem é feminina, enquanto a forma desenvolvida com energia congelada é masculina.

Se alargarmos a definição de jineologia um pouco: é a ciência que estuda mulheres baseada na identidade de vida-mulher, natureza-mulher, social-natureza-mulher, a cultura então criada, seu reflexo na sociedade histórica e as razões, fontes e resultados da transformação das instituições, estruturas e conceitos que derivam da definição de mulheres. Também podemos definir jineologia como ciência da vida, ciência social, significando ciência como ciência da modernidade democrática e ciência da co-vida livre em adição à ciência das mulheres.

Abdullah Öcalan fez a primeira observação relativamente ao conceito de jineologia 7 anos atrás no livro Sociologia da Liberdade.

É um fato indisputável que mulheres compõem a seção mais larga da natureza social, ambos física e semiologicamente. Nesse caso, por que tal parte tão importante da natureza social não deveria ser um objeto para a ciência? Não há nenhuma outra explicação para o fracasso da sociologia, que foi dividida até o ponto da Pedagogia para crianças, para constituir uma ciência das mulheres para além do discurso masculino dominante. (p. 289)

É correto definir jineologia como um braço das ciências sociais ou da sociologia da liberdade? Esse é um debate em curso. Entretanto, façamos uma proposta sem colocá-la dentro de percepções existentes. Se o objetivo principal da jineologia é definir a existência das mulheres, então enquanto for bem-sucedida nisso, será capaz de ser uma força de resolução para problemas sociais e desenvolverá uma opção de liberdade. Nesse contexto, seria mais correto chamá-la não de um braço da sociologia da liberdade, mas, de forma mais precisa, da ciência de ativação dessa sociologia. A sociologia da liberdade visa essencialmente combinar as ciências sociais com a orientação de liberdade da sociedade. Quanto à jineologia, é a ativação da filosofia e das análises científicas da sociologia da liberdade baseada na realidade das mulheres e da vida. Isto é, há uma conexão íntima entre as duas baseada em complementação, não em inclusão.

Por que definimos jineologia como a ciência da modernidade democrática? Quando Ölacan disse que a civilização era uma criação de cinco mil anos de homens, ele definiu a modernidade democrática como a civilização das mulheres. O objetivo da jienologia é trazer à tona a existência das mulheres. Já que a ciência das mulheres constrói a si mesma, o progresso se fará na liberdade das mulheres. Corrigir ambos mentalmente e na prática distorções relativamente a mulheres trará à tona um nível de liberdade. Consequentemente, mulheres, o elemento fundamental da modernidade democrática, se tornarão muito mais ativas e o fluxo da modernidade democrática se fortalecerá ainda mais. Essa é a razão para definir o século XXI como a época da liberdade das mulheres. Como toda ciência deve responder às necessidades da época, definir jineologia como a ciência da modernidade democrática será um conceito apropriado. Como constantemente dizemos, “esse mundo devia ser trançado com o espírito das mulheres”…

Nossa resposta àqueles que consideram jineologia como uma jogada ideológica e organizacional é clara. Nós já temos uma ideologia. Desde 1988 nós temos a “Ideologia da Libertação das Mulheres”, cujos princípios são o patriotismo, o livre pensamento, o livre arbítrio, organização e luta. Também temos dúzias de organizações baseadas em várias necessidades e identidades sociais. Consequentemente, não é isso que queremos fazer com jineologia, que é o intelecto das mulheres, o conhecimento e os métodos da socialização das mulheres. Será uma esfera importante na construção de uma mentalidade de modernidade democrática. Se uma conexão deve ser feita com uma ideologia, então é útil olhar para a determinação de Öcalan de uma evolução em direção a uma ciência social consistente entre um pensamento socialista científico, sociológico e ideológico. É a crítica mais forte do positivismo de “conforme a medida da ciência na capacidade ideológica e sociológica dos partidos revolucionários se desenvolve, ela indica que conquistou a liberdade que prometeu à sociedade”.

Jineologia é uma luta pela mentalidade das ciências sociais

A crítica que a jineologia faz às ciências sociais também pode ser compreendida como uma intervenção de mentalidade nessa esfera. Ao corretamente definir mulheres relativamente a todas as esferas da vida, os efeitos do positivismo e do sistema patriarcal nas ciências sociais pode ser superado. À luz da crítica de Öcalan de que “as estruturas existentes de conhecimento ou se dissolveram nas autoridades em exercício ou se tornaram seitas atrofiadas”, a estrutura de conhecimento estabelecida pelas autoridades será sujeita a crítica e também à pesquisa de sua própria epistemologia e métodos. É evidente que autoridades têm mantido as mulheres longe das esferas de conhecimento. Então será que nós mulheres somos realmente desprovidas de conhecimento? Ou será que podemos obter conhecimento a partir de nossas experiências?

Apesar de as autoridades se esforçarem pra fazer isso, não podemos alegar que não temos conhecimento. É portanto necessário incluir o conhecimento que ganhamos a partir de nossa experiência à epistemologia da jineologia. Da fermentação da massa ao cuidado das pessoas doentes, do arado da terra à domesticação do gado, mulheres obtiveram a maior parte de seu conhecimento a partir de experiências de vida. Não serão os momentos que chamamos de instinto ou superstição o produto de conhecimentos passados adiante de geração a geração e armazenados nas profundezas de nossas mentes? Nos workshops de jineologia organizados no sul após sua devastação, durante a resistência de auto-governo, esse conhecimento está emergindo e sendo valorizado.

No Curdistão, todas as mulheres se levantam antes do sol e rezam. Quando lhes perguntam por que fazem isso, sejam elas Yazidi, Alevi ou Sunni, a maioria das mulheres diz que não sabe por que fazem isso, dizendo que é o que aprenderam. Mulheres também dizem “Ya Star” como súplica. Como “Star” é a deusa mãe na cultura suméria, similar a Astarte, Ísis, Vênus e Cibele em outras culturas, isso não indica uma conexão contínua à cultura da deusa mãe?

Resumidamente, jineologia, antes de juntar dados científicos sobre mulheres curdas e submeter estudos a círculos acadêmicos para sua aprovação (eu não estou diminuindo-os), antes buscará conhecimento obtido por mulheres curdas ao longo das experiências de vida, o conhecimento mais imaculado e despretensioso possível. Essa primeira luz que clarifica a história é tornada mais preciosa ainda pelo fato de que a maioria das pessoas sequer consideraria isso como conhecimento.

A dialética do movimento das mulheres curdas tem funcionado assim… Análise das Mulheres e da Família (1986), organização própria das mulheres (YJWK), exército das mulheres (fim de 1992), YAJK, que se estabeleceu em áreas de guerrilha e colocou a liberdade das mulheres na agenda do movimento de liberdade curdo, o partido das mulheres (PJKK-PJA e PAJK) e a situação alcançada hoje com o sistema KJK. Além dessas estruturas institucionais, há as teorias desenvolvidas para visibilizar a questão das mulheres. Ideologia de libertação das mulheres, matar o homem, divórcio sem fim, contrato social, co-vida livre, etc… Elas surgem no ciclo de teoria e prática que nutrem uma à outra e as teorias de instituições que são a fonte da epistemologia da jineologia.

Obviamente, isso não é suficiente por si só. Enquanto construímos nossa epistemologia, nós também confrontamos as estruturas governantes que arruínam a estrutura de conhecimento e olham ceticamente aos argumentos básicos de modernidade capitalista, sexismo, nacionalismo e dogma religioso que influenciam nossos processos de pensamento.

O relacionamento de jineologia e feminismo

Será que não teremos apoio? Primeiro e antes de tudo, a epistemologia feminista que critica as ciências sociais e desmascara o patriarcado é uma fonte chave.

Enquanto analisamos isso, o fato de que não sairmos do campo da prática será uma vantagem para ver os lados obstruídos do feminismo. Acrescentemos aqui que jineologia não é uma alternativa ao feminismo. Pelo contrário, um laço simbiótico com o feminismo pode criar um novo vigor. O fato de que o feminismo tem sido incapaz de estabelecer uma forte ligação entre liberdade individual e liberdade social, nas palavras de Öcalan “seu aprisionamento nas academias que são as armadilhas da modernidade capitalista”, seu fracasso em compreender a forte conexão entre liberdade e organização e desenvolver um estilo de vida alternativo são os primeiros aspectos que vêm à mente. A correção destes “pode levar a uma revolta bem-sucedida da colônia mais antiga”.

Entretanto, a epistemologia feminista não será nossa única fonte de apoio. Ao se estabelecer a epistemologia da jineologia, pode-se colher benefícios dos resultados da pesquisa acadêmica. Importância será ligada a estudos acadêmicos, mas o critério fundamental será o uso do conhecimento obtido em prol das mulheres e da sociedade. As experiências de uma poeta, uma curandeira, o diário de uma guerrilheira, a biografia de uma rebelde e pesquisas na área todas podem ser utilizadas igualmente.

A jineologia constantemente monitorará a dimensão ética do conhecimento. O problema não é sobre obter conhecimento, mas sobre ter a capacidade de utilizar o conhecimento obtido para aprimorar a vida social e individual.

Enquanto que a jineologia desenvolve sua filosofia do conhecimento, ela agregará importância ao dinamismo, à variedade e à flexibilidade da vida e à constante mudança envolvida. Ela priorizará observação, experiência, escuta e inclusividade e produzirá novos significados.

Quanto à metodologia da jineologia

O que as ciências sociais alegam é que o científico é nada além do que derreter a existência das mulheres e homens no caldinho da autoridade. Por essa razão, é importante ter um método de pesquisa baseado na realidade das mulheres. Uma vez que a esfera principal de exame para as ciências sociais é a arena social que se desenvolve ao redor das mulheres, nossos métodos de pesquisa se concentrarão em revelar a existência das mulheres e em expor as distorções relativamente às mulheres. A jineologia desenvolverá uma crítica de como todas as ciências sociais (história, sociologia, arqueologia, teologia, etc) têm omitido e distorcido a existência das mulheres. Pesquisas mais detalhadas também serão levadas adiante, por exemplo, sobre autodefesa de mulheres. Para fazer isso, pode-se fazer contato com as ciências sociais. Quando examinarmos esse tópico, serão forjadas relações com as ciências sociais tais como economia, ontologia, educação, saúde e política (a quinta edição da revista de Jineologia contém um artigo sobre autodefesa de mulheres e cobre todos os assuntos mencionados). Tal pesquisa ajudará a superar as divisões nas ciências sociais.

A jineologia não precisa se confinar a um único método, porque fazer isso seria condená-la a uma “ditadura de mentalidade”. Assim, as diretrizes serão: quanto esse método desenvolve o esclarecimento das mulheres, isso acrescenta significado?

Uma abordagem universal monista reduz a verdade a uma única, enquanto que às vezes o rompimento de uma pessoa por liberdade pode até mudar a verdade. Por exemplo, a ação de Arin Mirkan foi um divisor de águas na quebra do cerco do Estado Islâmico. Alegar que um modelo relativo ilimitado é tão verdadeiro quanto o número de seres humanos no universo pode fazer em estilhaços a integridade social. Ambos o “um” universal e o “único” relativo refletem um caráter hegemônico.

O método da jineologia reside no caráter dual do universo. Ou seja, considera a universalidade e a relatividade concentricamente.

É capaz de apreciar o aspecto progressivo do ciclo de desenvolvimento e o caráter cíclico do progresso, e a influência mútua da eternidade e do momento, e avaliar o significativo limite da percepção para entender a verdade.

A jineologia baseia seu método numa mentalidade que ultrapassa a separação entre sujeito e objeto. Ela evita fazer essa divisão absoluta, que é a base da modernidade.

A jineologia decide funcionar em harmonia com intelectos emocional e analítico, e leva adiante suas observações e experiências levando em consideração o dualismo quântico.

Leva em consideração o relacionamento entre quem observada e o que é observado e a visão interior de uma pessoa. A observação constante de você mesma não pode te ajudar a entender os sentimentos da sociedade. Digamos que você é uma jornalista no Curdistão e que seu único objetivo é reportar objetivamente os eventos que acontecem durante a resistência autogovernada. Nesse caso, para explicar o que a mãe de Cemile Çağırga, uma garota cujo cadáver foi armazenado num congelador por dias, passou, ou as crianças de Taybet Inan, cujo cadáver foi deixado por dias na rua em razão de um toque de recolher, primeiro você precisa fazer com que elas e eles sintam que vocês lhes entende.

Um dos campos ao qual a jineologia presta atenção em particular é o da liberdade. Para resumir, ela leva em consideração a ideia quântica, a natureza social, a flexibilidade e o potencial de mudança.

Ela examina e avalia as formas de pensar sobre mitologia, religião, filosofia e ciência e as dimensões positivas e negativas dos métodos que estas usam.

A Jineologia não vê o estado, as classes e o desenvolvimento social como estágios inevitáveis do desenvolvimento e rejeita o ponto de vista positivista e determinista da história.

A Jineologia não vê suas principais áreas de pesquisa como sendo universidades, academias oficiais e instituições. Ela se aproxima desses lugares com suspeita por conta de seu potencial para gerar poder. O relacionamento entre docente e estudante não é de sujeito e objeto, mas progride num relacionamento simbiótico. Diálogo, pesquisa, autoexpressão, análise de personalidade (um tipo de psicanálise), crítica e autocrítica são os principais métodos de educação acadêmica. Institutos educacionais são importantes para a dimensão ética da ciência e para proteger a ligação com a sociedade. Para além de instituições oficiais, toda casa, associação ou encosta de montanha pode ser utilizada como espaço educacional.

Como a jineologia estabelece seu método, ela criticará os métodos de elementos da modernidade democrática que estão fechados à experiência.

Em conclusão, a jineologia estabelecerá seus métodos, levando em consideração o fluxo, a cor, a versatilidade, a flexibilidade e as variadas facetas da vida.

Quanto à estrutura institucional e teórica da jineologia

Desde que o conceito de jineologia surgiu pela primeira vez, há curiosidade sobre o que ela alcançou. O comitê de jineologia formado em 2011 se empenhou para encontrar uma resposta à questão de qual necessidade havia levado à emergência da ciência das mulheres, perguntada pela primeira vez na Sociologia da Liberdade, [obra] de Öcalan. A resposta veio na Primeira Conferência de Jineologia, realizada nas montanhas do Curdistão em 2015 na forma da “Introdução à Jineologia” (original em turco, traduções em Kurmanji, Sorani e Persa já completas, inglês, espanhol e alemão em curso [n/t lembrando que esse texto é de 2018; de qualquer forma, agora, em 2020, quando do fechamento dessa tradução, ainda não havia saído a tradução para inglês dessa “Introdução à Jineologia”]). Ao buscarmos respostas para essa pergunta, chegamos à conclusão de que a ciência das mulheres deve ser construída em torno da conexão entre ciências sociais e sociedade. Foi construída sobre pesquisas a respeito a existência das mulheres e sobre os métodos que ela determinaria e com qual ciência social ela formaria conexões. Conforme progride nesse caminho, ela pode se engajar num estudo profundo de conceituar a ciência das mulheres. Conforme tenta explicar o conceito de sociedade, revela a verdade das palavras “se a ciência é a resposta para necessidades sociais, ela cumprirá esse dever”. Jineologia é achar uma resposta na sociedade.

Uma das atividades mais importantes na construção da teoria da jineologia foi a revista teórica quadrimestral Jineologia, cuja primeira edição foi publicada em 8 de março. A revista, cuja quinta edição está sendo compilada, se esforça para tecer uma conexão entre jineologia e vida em cada edição. A primeira edição focou na crise das ciências sociais; a segunda, no problema do método; a terceira, na revolução das mulheres; e a quarta, em autodefesa. A revista de Jineologia é lida de Rojava à Turquia e nas montanhas do Curdistão, e da América Latina à Europa.

Nossa pesquisa e cada reunião que realizamos para explicar a jineologia é uma expressão de nosso progresso (Europa, Rojava, Norte, Sul, Turquia, e até na América Latina). Não se pode dizer que a pergunta de “por que uma ciência das mulheres” encontrou a mesma resposta em todos os lugares. O trabalho de jineologia na Europa ainda está em estágio inicial de desenvolvimento, enquanto que em Rojava o trabalho em uma estrutura conceitual alcançou resultados. Atualmente o trabalho é contínuo na formação de uma estrutura institucional e teórica. As primeiras professoras treinadas na Academia de Jineologia para dar aulas sobre Jineologia, que está no currículo de todas as academias, se formaram no último outubro. Estudos acadêmicos não se limitarão a isso. Na próxima primavera, haverá novos cursos na academia de Jineologia, que se espera que sejam frequentados por pesquisadoras e acadêmicas que são engajadas no trabalho sobre a existência das mulheres nas ciências sociais. Em outros desenvolvimentos, brochuras e livros têm sido preparados pelo comitê de Jineologia (“A Politização das Emoções”, “O Sistema Co-Presidencial” e o volume 3 das análises de Öcalan sobre a questão das mulheres). O trabalho também continua sobre a história não escrita das mulheres Yazidi em Sinjar. O debate continua sobre se a jineologia deveria ser uma faculdade ou uma seção na Universidade de Rojava, que abre nesse ano. O comitê de jineologia é da opinião de que deveria haver uma faculdade de jinologia, para a qual sérias preparações devem ser feitas. No tempo presente, aulas de jineologia são parte do programa de educação de centenas de academias (YPG, YPJ, assembleias, autodefesa, economia e inúmeras outras). Também está no currículo de escolas primárias e de ensino médio. Também é o caso do acampamento Maxmur.

Jineologia é um rio encontrando seu curso. As ideias de cada mulher, seu estudo, as informações que ela encontra, os segredos que sua mãe sussurra em seus ouvidos, o poder da interpretação, tudo isso são gotas que fortalecem o fluxo desse rio. Seu aspecto mais lindo é seu esclarecimento espontâneo a partir da cegueira social. Jineologia é garantir que o conhecimento que se lhe transmite seja transmitido à sociedade. Além disso, jineologia enriquece a pesquisa em todos os campos, seja economia, saúde ou história.

Fontes: “Sociology of Freedom”, de Abdullah Öcalan [n/t: ainda sem tradução em português; você pode encontrar três livros de Öcalan em português, inclusive sobre as questões da mulheres, para download gratuito aqui]; “Introduction to Jineoloji” [n/t: ainda sem tradução nem para inglês, nem para português]; revista Jineoloji, edições 1 e 2; panfleto sobre Jineologia.


Tradução do texto What is Jineoloji?, de Zîlan Diar, publicado originalmente na komun academy, em 2018. Você pode ler o original em inglês aqui

1 COMENTÁRIO

  1. As feministas precisam começar não só a apoiar Rojava, como a reivindicar um modelo de reorganização política e social para toda a sociedade. Muitas apoiam a Jinealogia, e as iniciativas das mulheres na Síria, mas não se dizem socialistas, na verdade, reivindicam apoiam vários estados nacionais, práticas reformistas, governos misóginos, e sequer se dizem socialistas, e, a meu ver, ter tais práticas e apoiar Rojava é uma incoerência. Sendo preciso desde já anunciar o feminismo enquanto uma corrente do pensamento socialista.

Comentários estão fechados.