autocuidado
Arte de Melina Bassoli, a partir de história contada por Cila Santos, para o grupo de Autocuidado da QG Feminista

Vivemos numa sociedade que não escuta mulheres. Os nossos sentimentos são vistos como frescuras, exageros ou, até mesmo, mentiras. Isso é tão internalizado que, quando nós mesmas temos um problema, tendemos a não nos priorizar e nos censuramos por estarmos fazendo “tempestade em copo d’água”. Aplicamos essa lógica a outras mulheres também — quando elas falam, a gente costuma questionar, ou dizer que a solução é simples, desmerecendo os sentimentos daquela mulher. Raramente escutamos nós mesmas e o que as outras têm a dizer.

No entanto, buscamos frequentemente ajuda umas nas outras. Mulheres sempre buscaram apoio entre si para superar suas questões pessoais que, sem um olhar aprofundado, podem parecer subjetivas e individuais. Muitas de nós nos sentimos sozinhas. Por não considerarmos relevantes nossos problemas, ou por imaginarmos que pedir ajuda para outras mulheres pode acabar sobrecarregando nossa interlocutora, tendemos a subestimar nossas questões a despeito das dos outros e, com isso, perdemos a oportunidade de nos cuidar coletivamente e de criar laços genuínos com nossas amigas e companheiras.

Um olhar feminista sobre qualquer questão considerada individual deve prezar por tentar entender quais são os aspectos da socialização que estão por trás da história de cada uma de nós. Entretanto, entendemos que nos faltam ferramentas de acolhimento para mulheres, quando elas nos buscam para desabafar ou procurar apoio. Ou seja, muitas vezes nós nos apegamos tanto ao político, que nos esquecemos de ouvir o que está por trás da desolação das pessoas que atendemos.

Acreditamos que é criando um espaço de autocuidado e escuta ativa que conseguiremos articular um olhar crítico sobre as subjetividades femininas, com o cuidado necessário para ouvir e atender mulheres em sofrimento, tentando subverter a lógica da nossa formação na sociedade patriarcal. A construção desse espaço de acolhimento, buscando se afastar dos julgamentos patriarcais, é uma excelente ferramenta de aproximação e manutenção de mulheres no movimento feminista. Ao ser verdadeiramente ouvida, a mulher pode encontrar seu próprio caminho para o despertar crítico e para o amor entre mulheres, quebrando a barreira da misoginia internalizada.

Para a construção desse espaço, precisamos exercitar o autocuidado, a empatia e o apoio mútuo entre mulheres. Tudo isso é necessário num mundo que nos odeia. Somos condicionadas a termos empatia com homens, mas não com mulheres: não medimos esforços para tentar compreendê-los, porém quando uma mulher erra, a vontade de expor, de ridicularizar, de isolar, é sempre grande. Isso é misoginia internalizada. Nós não fomos ensinadas a perdoar mulheres, e aí está o centro da nossa crítica.¹ Sempre culpamos mulheres com mais rigor do que culpamos os homens, inclusive chegamos a julgar e punir mulheres por seus atos, situações às quais a classe masculina não é submetida.²

Aprender a cuidar de nós mesmas e das nossas companheiras também vem atrelado à construção de um espaço seguro para nós. E tudo isso envolve escuta ativa. Saber escutar a nós mesmas e às outras é um desafio e precisamos tentar. Escutar sem gerar fofoca, rumor, rivalidade ou qualquer outra coisa às quais nos estimulam.

Muitas vezes sabemos disso tudo, mas não sabemos como agir quando uma mulher vem até nós com problemas. Mesmo com intuito de ajudar, acabamos caindo em armadilhas que desestimulam o debate e cortam a conversa, o que impede a outra mulher de desenvolver seus pensamentos e chegar às melhores conclusões para ela mesma. Nossa tentativa, com este texto, é de reunirmos algumas metodologias para mapear e reduzir os impactos negativos das nossas interferências — por melhores intencionadas que sejam — nos relatos e desabafos de mulheres.

Com base em estudos feministas sobre autoconhecimento³; em pesquisas sobre autocompaixão, escuta ativa e comunicação empática; em metodologias de rodas de conversas feministas⁴; e nos encontros de despertar crítico dos anos 1970, nossa intenção com este texto é mapear formas, ainda que involuntárias, de interromper mulheres, quando elas buscam uma conexão genuína para ajudar a refletir sobre suas angústias pessoais.

Assim, consideramos armadilhas que causam desconexão⁵:

  • Trazer para si o foco da conversa: isso é feito quando, ao se escutar um desabafo, acabamos falando frases como “comigo aconteceu pior” ou “e eu que passei por tal coisa?!”. Ainda que a intenção seja demonstrar empatia pela pessoa, tentando alguma forma de conexão, isso faz o centro da experiência ser a mulher que escuta em vez da mulher que está em sofrimento no momento, porque se muda o foco da conversa para uma situação que a interlocutora passou e que ela considera pior. A partir do momento que se coloca uma experiência própria como pior que a da mulher que precisa de ajuda, o espaço que essa mulher teria para desabafar é cortado. Muitas vezes, ela acaba tendo que acolher a mulher para quem foi pedir ajuda.
  • Aconselhar quando não solicitado: Aconselhar não é sempre ruim, mas precisamos nos certificar de que se faz isso no momento certo. É mais eficiente esperar um pedido ativo da mulher em busca de conselhos do que interromper o curso do desabafo para colocar nossas próprias percepções da situação. Por termos nossas emoções e queixas constantemente desmerecidas, muitas vezes nos falta até vocabulário para nomear o que estamos sentindo. Antes de sair dando conselhos, precisamos estar atentas a real necessidade de quem nos pede ajuda. Às vezes, ela só quer entender o que está sentindo.
  • Falar de socialização quando não é o momento: As questões difíceis pelas quais mulheres passam muitas vezes são semelhantes. Nós temos nossa opressão em comum, e ela é fonte de muitas das nossas dores. Colocar o quanto é comum que mulheres passem por isso às vezes pode dar a ideia de que a mulher que desabafa não tem o direito de fazê-lo, por ser apenas mais um problema entre muitos; pode fazer parecer que suas dores são menos importantes por serem compartilhados. Principalmente se a mulher não conhecer mecanismos de análise e questões mais teóricas do feminismo. Como feministas, sempre tentamos identificar aspectos da socialização e da opressão das mulheres nas situações que nos são apresentadas. Isso é importante, mas o entendimento político da situação não é suficiente para que o nosso sofrimento seja amenizado. Entender que estamos sentindo culpa porque a culpa é uma arma da socialização, por exemplo, não faz com que a culpa desapareça. Muitas vezes, apontar o aspecto político coloca um ponto final na conversa, a despeito da necessidade da mulher de expor seu sofrimento, mesmo que ela saiba de onde ele vem.
  • Apontar que existem situações piores: Essa é outra coisa que pode levar a mulher a pensar que seus problemas não devem ser levados em conta, porque não seriam tão ruins quanto os de outras pessoas. A comparação com outras pessoas, especialmente com outras mulheres, é estimulada em nossa sociedade, mas costuma afetar negativamente todas nós. Precisamos evitar isso em nós mesmas e em quem nos busca para desabafar. Outra coisa menos óbvia deste item é a comparação com uma situação hipotética, com frases como “mas pelo menos não aconteceu isso…” ou “poderia ter sido pior”. Isso, novamente, faz a mulher desprezar os próprios sentimentos. É importante ter uma escuta ativa, e não deixar que a pessoa pense que seus sentimentos não são válidos porque sempre haverá uma situação pior.
  • Bancar a psicóloga: Opinar sobre possíveis problemas psicológicos da mulher que veio pedir ajuda pode criar preocupações desnecessárias nela. Pode até levá-la a achar que tudo que se passa com ela são coisas apenas da cabeça dela e que ela tem problemas. Deixe esse trabalho para as profissionais da área. É preciso responsabilidade, não se pode diagnosticar pessoas sem uma formação adequada que permita isso com segurança.

Então, quais práticas seriam melhores num espaço de autocuidado e escuta ativa entre mulheres? Antes de mais nada, pense se você está com disponibilidade e energia para acolher a mulher que te pede ajuda. Às vezes é melhor não se dispor a ajudá-la quando você não está preparada para isso. Ser sincera com a outra beneficia ambas. Isso também pode ser usado por nós mesmas quando quisermos pedir ajuda para outra mulher: pergunte se ela está com disposição para te ouvir e aceite se por acaso ela não puder naquele momento. Assim, para acolher melhor, acreditamos que práticas que estimulem a conversa, o conhecimento das situações e dos sentimentos e o desenvolvimento de soluções criativas para nossos problemas devem ser a base do acolhimento e do cuidado mútuo entre mulheres. Como:

  • Responder a quem está falando a fim de mostrar que você realmente a escuta. Muitas vezes, a mulher duvida que está sendo escutada e pode se sentir ignorada. Responder coisas simples como “eu entendo” pode ajudar muito.
  • Legitimar os sentimentos de quem está desabafando. Muitas vezes mulheres acham que exageram, porque somos ensinadas a não nos priorizar. Falar coisas como “faz todo o sentido que você se sinta assim” ou “você tem direito de sentir isso” pode ajudar.
  • Aconselhar apenas quando te pedirem um conselho. Nem sempre as pessoas que desabafam com a gente estão pedindo conselhos ou soluções, muitas vezes elas só querem sentir que seus sentimentos são válidos, principalmente em uma sociedade patriarcal que não reconhece nossas necessidades. Por isso, é importante prestar atenção para entender se a mulher que está desabafando também está pedindo conselhos. Se esse for o caso, sinta-se à vontade para dar dicas e ajudar da forma que puder, mas lembre-se de que você não é uma “má feminista” por não conseguir solucionar todas as dores das mulheres, e com certeza a sua escuta ativa e atenciosa vai ajudar muito.
  • Demonstrar interesse no estado emocional da mulher a fim de incentivá-la a reconhecer como ela se sente. Para isso, aumentar o vocabulário de sentimentos é uma ferramenta muito importante, pois ter as palavras que você precisa ajuda no processo de desabafo. Se a pessoa estiver disposta, vocês podem juntas procurar uma lista de sentimentos na internet, por exemplo, e elencar quais deles ela está sentindo naquele momento.⁶ Isso ajuda a pessoa a entender de onde parte o que a está incomodando, quais questões estão realmente na raiz daquilo que está sendo sentido naquele momento.

Esperamos que com essas dicas você tenha mais facilidade para acolher as mulheres do seu convívio. Lembre-se: você não é uma pessoa ruim por ter caído nessas armadilhas, elas são extremamente comuns e quase todo mundo acaba caindo em uma delas. Contudo, estudar novas estratégias podem melhorar a sua escuta e a sua comunicação, e a cada vez que você utilizá-las esse processo se tornará mais natural. A escuta ativa, como várias outras coisas da vida, precisa sempre ser praticada e exercitada, pois em uma sociedade onde somos ensinadas a competir umas com as outras, criar espaços de empatia e acolhimento, assim como priorizar a nós mesmas e nossa saúde mental, é revolucionário e deve ser sempre uma pauta feminista.


NOTAS:

1. Para saber mais sobre isso, recomendamos ler sobre o conceito de “trashing” da Jo Freeman. Aqui.
2. Para uma discussão mais profunda desse assunto, recomendamos o texto de Aline Rossi “Culpabilização e silenciamento da mulher”, Disponível aqui.
3. Sobre isso, recomendamos a leitura do livro “Sister Outsider”, da Audre Lorde.
4. A CFEMEA é uma ONG feminista que debate esse tema e editou muitos livretos a respeito, que podem ser baixados no site da entidade, aqui.
5. Desenvolvido em conjunto com a ABRAÇA, a grupa de autocuidado da coletiva Oitava Feminista, de Niterói.
6. Lembrando que sentimentos são abstrações que somos capazes de sentir (como felicidade, tristeza, medo, raiva, culpa, esperança) e não engloba nada que seja material (como mulher, homem, dinheiro, computador). Pode parecer óbvio, mas saber o que é um sentimento é importante para podermos nomeá-los e legitimá-los.

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