Lima, 4 fev 2019 (IPS) — O Peru iniciou o ano com 11 feminicídios em janeiro, apesar dos progressos nas leis e estatutos e das manifestações em massa contra a violência masculina. Essa situação também é observada em outros países latino-americanos, levantando a necessidade de aprofundar as causas do fenômeno.
Gladys Acosta, uma das 23 membras da Comissão de Peritos que monitora o cumprimento da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw), expressou preocupação com a cobertura midiática da violência masculina e o papel que ela desempenha no fomento desta violência.
A notícia é transmitida como se fosse um show, sem explicar as coisas. Imagens violentas são mostradas, e você pensaria que isso poderia refrear o fenômeno ao expor uma atitude tão destrutiva, mas esse não é o caso. Isso me faz pensar que muitas pessoas veem o agressor como um herói patriarcal, disse a advogada peruana, em entrevista à IPS.
Em certas mentalidades, ela argumentou, isso se traduz assim: como ele é corajoso, eu gostaria de fazer isso, mas não consigo. “Há uma deterioração muito forte dos valores e um desrespeito pela integridade das mulheres, por seus corpos, por quem somos”, disse Acosta, que há anos é ativista na defesa dos direitos das mulheres na região, e que agora vive principalmente em Nova York.
Na visão dela, a América Latina “sofre com um cenário amplo de violência que alimenta a violência mais específica contra as mulheres”. Assim como os desafios urgentes da sobrevivência diária, o crescente número de pequenas armas de fogo alimenta a noção de que os problemas são resolvidos através da ação e não do diálogo. Além disso, há o crime transnacional que, assim como banalizou a política, também se tornou parte da vida social.
Isso contribui para transformar as relações entre mulheres e homens em meras lutas de poder, em vez de relacionamentos baseados em afeto: se você não fizer o que eu quero, você sofrerá consequências, disse ela.
Em novembro, o Observatório da Igualdade de Gênero da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) divulgou seu último relatório sobre feminicídios na região, afirmando que pelo menos 2.795 mulheres foram assassinadas por causa de seu gênero em 23 países da região em 2017.
Desse total, 1.133 vítimas confirmadas eram do Brasil, mas, em termos de taxa por 100.000 mulheres, El Salvador alcançou em 2017 uma taxa incomparável de 10,4 feminicídios por 100 mil mulheres.
Essa violência letal não está diminuindo e, no primeiro mês de 2019, coletivos de cidadãos e feministas como #NiUnaMenos relataram a escalada de feminicídios na Argentina, Brasil, México e Chile, entre outros países.
Isso está acontecendo, apesar da existência de leis sobre prevenção, atenção e punição da violência masculina em nível nacional e da Convenção Interamericana de Belém do Pará para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher que, desde 1994, tem abastecido a região com uma única estrutura para combater o problema.
Desde 2017, Argentina, Peru, México e outros países também viram o surgimento de um novo e crescente movimento para aumentar a consciência social da violência masculina e feminicídios, o que foi expressado em manifestações em massa sob o slogan #NiUnaMenos (Nenhuma mulher a menos) ou # NiUnaMás (Nenhuma mulher a mais).
Acosta, que era chefe regional do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para Mulheres (Unifem) entre 2008 e 2011, quando a instituição se tornou a ONU Mulheres, destaca a importância das leis, tratados e convenções, mas reconhece que o progresso nos níveis legislativo e judicial não é o suficiente.
Educação, trabalho e oportunidades na vida são necessários para criar um contexto favorável para mudar o padrão atual de violência contra as mulheres. Infelizmente, perigosas correntes políticas retrógradas contra a educação em questões de sexualidade ou de gênero nas escolas têm surgido nos países da região, alertou.
A especialista da Cedaw propôs “a reconstrução de laços, educação humanitária acessível a todas as pessoas, nas quais meninos e meninas têm noções de respeito às relações de gênero”, o que inclui orientações sexuais diversas e diálogo para resolver problemas. “Quando crescerem, essas crianças poderão gerar uma forma de vida social que não se baseia em lutas pelo poder, como fazem os homens agora com as mulheres”, disse ela.
E ela destacou a necessidade da mídia redefinir suas políticas de informação em relação à violência masculina. “A magnitude do problema que enfrentamos afeta tanto mulheres quanto homens”, observou ela, e cabe à mídia assumir a responsabilidade de superar seu foco de curto prazo nas vendas e contribuir para uma reflexão mais ampla na sociedade.
A advogada peruana Rocío Silva, professora universitária e ativista dos direitos humanos, disse à IPS que as leis e os estatutos não mudam necessariamente a realidade e que “apesar dos avanços em direitos, não conseguiu conter a violência contra as mulheres”. “Existe um componente cultural poderoso, um senso comum patriarcal de posse de homens do corpo das mulheres. E é importante trabalhar com eles, sem negligenciar a vítima. Caso contrário, essa violência não vai parar”, disse ela.
O Peru é um excelente exemplo de uma situação que é generalizada na região. Neste país de 32 milhões de pessoas, 149 feminicídios foram documentados no ano passado, de acordo com o Ministério de Mulheres e Populações Vulneráveis, que responsabilizou os pais (no sentido de progenitores masculinos) pelos estupros e assassinatos de meninas.
Diante dessa perspectiva e da inadequação dos marcos legais, Silva ressaltou que é urgente debater o sexismo e o machismo na sociedade e mudar a forma como as masculinidades são construídas.
“Todos os estupros são sobre poder e não sobre sexualidade extrema. É incrível que um tabu básico das sociedades humanas, como o incesto, não funcione mais. Não há consciência do dano causado pelo estupro, e isso se deve à educação sexista e pornográfica”, disse ela.
Ela acrescentou que outro elemento brutal da masculinidade no Peru é a hiper sexualização, como se exercitar a masculinidade significasse apenas fazer sexo. “Estamos em uma sociedade e em um patriarcado doente em que os limites não são mais possíveis, com a masculinidade em uma crise de tremenda violência”, avaliou Silva.
Ela lamenta o fato de que as políticas do Estado não incluem homens, e sugere educação, especialmente de meninos.
“É sobre ensinar um tipo de camaradagem entre homens e mulheres para que eles possam nos ver como iguais. Você tem que ensinar que os problemas são resolvidos através de palavras e não através de golpes”, afirmou Silva.
Criando novos conceitos de masculinidade
Nancy Palomino, que tem um mestrado em saúde pública e é co-autora do livro “Detrás de la mascara: Varones y violencia sexual en la vida cotidiana” (Universidad Peruana Cayetano Heredia, 2018) disse que os homens foram deslocados de um sistema de privilégios que os favoreceu, não apenas por movimentos de mulheres, mas por avanços de gênero na sociedade.
Para muitos, a violência é o meio de impor seu poder às mulheres e à família. Nos feminicídios vemos que correm o risco de perder tudo, até mesmo a liberdade e, às vezes, a própria vida, falou à IPS a pesquisadora peruana.
Palomino considera importante e necessário trabalhar com homens e meninos na desconstrução da masculinidade e na prevenção da violência. “O currículo escolar deve ser repensado, os professores devem ser sensibilizados e a perspectiva de gênero e a prevenção da violência devem ser incorporadas às escolas”, acrescentou.
Ela também mencionou o desafio de trabalhar no campo das emoções masculinas, a fim de torná-los mais empáticos e capazes de se somar na construção de uma cultura baseada em direitos humanos, e livre de violências.
“Isso é fundamental, tendo em vista o fato de que a educação dos meninos e sua socialização se concentram em controlar tudo o que possa parecer frágil, afetuoso, carinhoso; e estimular precisamente expressões de força, dominação e violência”, concluiu Palomino.
Nota da tradução: A fim de nomear os agressores, as expressões “violência de gênero” e “violência contra mulheres” foram substituídas pela expressão “violência masculina”.