Na sequência de resultados após as denúncias sobre Weinstein, Uma Thurman deu uma entrevista que viralizou, falando através de dentes cerrados, com visível contenção, e dizendo que ela não tem uma “manchete caprichosa” mas que falaria quando estivesse com menos raiva, porque falar enquanto se está brava geralmente leva a arrependimentos (Thurman desde então já veio a público sobre suas experiências com ambos Weinstein e Tarantino). Mas por que o clipe viralizou? Thurman não estava brava; ela disse especificamente isso. Mas o clipe foi enaltecido como a representação perfeita da raiva feminina.
Parece que a raiva feminina só é palatável quando é mantida sob controle; sem ameaçar ser inconsequente, mas, ao invés disso, prometendo calma e reserva consciente. No caso de Thurman, uma aparente resposta mais “racional” depois de passado um tempo.
Desde muito jovens, os meninos são socializados para serem fortes e independentes, porque eles se tornarão os líderes do mundo (eis o temido patriarcado de novo). Meninas, por outro lado, aprendem, implicitamente, que fraqueza e vulnerabilidade são qualidades desejáveis, frequentemente glorificadas como uma melancolia elegante e até atraente (considere a metáfora da donzela em perigo — a base de praticamente todo filme de Bollywood).
A raiva feminina é frequentemente vista como ameaçadora, como uma força que intenciona machucar, ao invés de ser vista como vinda da angústia.Lembre-se de Medusa com seus cachos contorcidos de cobras, ou da típica narrativa da mulher desprezada (geralmente traída, trocada). Mulheres enfurecidas são consideradas escrotas ou mandonas ou hostis, e homens enfurecidos são considerados fortes.
Hillary Clinton, em sua biografia política, descreve quanta pressão ela já sentiu, ao longo de toda sua carreira política, para não soar brava e assim alienar o público, e também para não permitir que suas derrotas a amargurassem. A imagem da mulher amargurada planejando sua vingança projeta uma lona sombra sobre toda mulher que ousa se enfurecer: será que sua raiva será diagnosticada como histeria (“você está de TPM?”)? Rejeitada como paranoia (“Pare de enxergar conspiração em tudo!”). Homens sempre tiveram o direito de se enfurecerem; mulheres, nem tanto.
A fúria se torna um privilégio ao invés de um direito e a reação mais passiva (a tristeza) é elogiada. Nossa própria Suprema Corte [n/t: dos EUA] menciona um “profundo senso de vergonha imortal” como a resposta emocional ideal ao estupro, e a mulher que sente isso como a “vítima ideal”. “Vítima”, por si só, é uma palavra de passividade. Acusadoras ativas que se enfurecerem ou que ficam com raiva não têm lugar, nem na nossa jurisprudência nem em nossa sociedade.
É quase como se quando uma mulher injustiçada fica brava, a parte da “injustiça” é esquecida e o que é visto é sua raiva — que é no mínimo imprópria, e, em casos mais extremos, tida como uma ameaça às outras pessoas. A raiva feminina, de alguma forma, apaga seu precursor: o que causou a raiva em primeiro lugar? A sociedade não consegue se fazer gostar de mulheres enfurecidas. Mulheres que foram injustiçadas devem continuar sendo amáveis, graciosamente tristes e singelas.
Para algumas, como Audre Lorde pontua em seu ensaio sobre a raiva, a fúria não é uma escolha mas uma consequência inevitável, por exemplo, do racismo sistêmico. Ironicamente, apesar de pesquisas demonstrarem que mulheres negras ambas a raiva e a vontade de sufocá-la mais do que mulheres brancas, a raiva é muito mais palatável em uma mulher branca do que em uma mulher negra.
A raiva feminina quase sempre deixa os homens desconfortáveis. Isso deve ser valorizado — tomar consciência de seus próprios privilégios não é pra ser um processo confortável e o feminismo não tem a obrigação de ser agradável para homens. A raiva feminina leva a diálogos mais evidentes sobre misoginia.
Então permitam que eu diga que já passou da hora de nos enfurecermos, talvez porque se formos corajosas o suficientes para ficarmos bravas, não importa o quão desconfortável homens fiquem; o #MeToo finalmente vai ser capaz de evoluir de um momento na história para um movimento consistente, talvez até para uma mudança social a longo prazo.
Vamos dar um passo pra trás e olhar para o mundo em que vivemos: um mundo onde homens estão na maior parte das posições de poder, onde homens entram em salas e se sentem no direito de legislar sobre o corpo de mulheres, onde o status quo tem lentes masculinas, onde a mídia apresenta tudo a partir de uma perspectiva masculina e onde o feminismo precisa ser agradável para homens o tempo todo.
Mas o feminismo não é um movimento preocupado com homens. Apesar de também os beneficiar porque visa destruir papéis sociais de sexo, soterrar expectativas irreais baseadas em representações agressivas do que é ser homem, esperar mais de homens do que a ideia de que são tão selvagens ao ponto de estuprarem uma mulher por ela estar usando um vestido curto, e apoiar o movimento gay porque ser gay não torna ninguém menos homem.
Então, se você é um homem, talvez você se sinta desconfortável quando, por exemplo, uma lista de abusadores da academia de cinema é lançada. E, é claro, vai existir uma grande parte de você que vai se preocupar com a possibilidade de ser você na próxima lista, e com falsas alegações, e com homens nem poderem abraçar mulheres mais?
Mas o poder é um jogo de soma zero, então o feminismo vai levar homens a perderem algum de seu poder [n/t: uma perspectiva realmente feminista diria todo poder, mas…]. Isso vai deixá-los desconfortáveis porque estão acostumados ao privilégio, o privilégio que vem com séculos de sentir-se no direito, seja o direito a propriedade, ao voto, a uma carreira, à educação, ou a vaginas. A maior parte dessa sensação de direito vem às custas das mulheres.
Então, por favor, não peça pra que eu pare de choramingar sobre o feminismo e pra que eu me esforce pra ser mais agradável. A própria pressão sob as mulheres para que sejam agradáveis é uma manifestação do patriarcado. Por favor, não me pinte como a mulher amargurada histérica de TPM quando, na verdade, são você e seu privilégio masculino que estão no meu caminho para um mundo inteiro de oportunidades.
Não me peça para ser mais “de boa” sobre a exclusão deliberada de mulheres. Não me diga pra sorrir, porque meu sorriso é lindo. Eu não quero ser linda. Eu quero me enfurecer e quero ser feroz, e eu quero mudar o mundo.
Vamos parar de ser puxa-saco de nossos opressores e de ouvir aos pedidos de fazer nosso feminismo mais agradável, e vamos começar a ser corajosas suficientes para sentirmos raiva. Para mim, o feminismo não é uma opção; é sobre sobrevivência. Os homens têm o privilégio de poder decidir se eles são ou não aliados. Eu, por outro lado, dependo da luta feminista para garantir minha própria existência, respiração, e direitos básicos.
Não é uma luta em que eu posso entrar por entretenimento (como se fosse um filme passando diante de meus olhos; vamos pegar a pipoca e o guaraná!); é uma questão de vida ou morte para mim. Estou de saco cheio de gastar tanta energia pensando como garantir que eu não seja estuprada ou abusada ou assassinada.
Me faz passar mal que toda vez que eu esteja andando na rua à noite e eu atravesse a rua por reflexo quando vejo um homem ou um grupo de homens. Toda vez que eu leio sobre estupro ou sobre abuso minha resposta é um riso irônico porque eu não fico mais chocada ou amedrontada, só resignada e insensibilizada.
Vamos parar de reagir com resignação e passividade, e, ao invés disso, vamos começar a sentir raiva, e usar nossa fúria coletiva como uma ferramenta para promover mudanças sociais. Por tempo demais, temos sido xingadas de palavras que deixam subentendido que estamos com raiva demais para sermos levadas a sério: feminazi, histérica, vadia, megera, bruxa.
Sim, eu estou brava, e eu vou gritar até perder a voz.
Tradução livre do artigo (On) Female anger: the gendered diagnosis of emotions, de Mini Saxena. Você pode ler o original aqui.