Relato e percepção de uma mãe
Relato e percepção de uma mãe

Minha filha foi sonhada desde minha infância. Vinda de uma classe social privilegiada em relação à realidade brasileira, frequentei colégios particulares e tive acesso a convênio médico, passeios e viagens. Consciência de classe sempre foi algo presente em minha vida. Desde a pré-adolescência, percebia e me revoltava com as desigualdades sociais e suas consequências. Frequentava comunidades e me sentia muito acolhida pelas famílias das minhas amigas durante minha adolescência. Percebia que esse acolhimento e respeito não era recíproco quando partia da minha família em relação às minhas companhias, pessoas negras e periféricas. Aos 19 anos comecei a namorar o pai dos meus dois filhos mais velhos, e por sermos de cores diferentes, eu branca e ele negro, vivemos diversas situações de racismo contra ele. Sempre fui questionada quanto à minha escolha de estar em um relacionamento com alguém negro e periférico. E era com esse alguém que, na época, tudo era melhor. Fomos morar juntos e depois de um ano e meio e muita expectativa, finalmente eu estava grávida. Sabia que minha família reagiria a melhor notícia da minha vida sem a mesma alegria que eu. E sabia também os verdadeiros motivos para isso. Mas nada me importava, naquele momento, o pai dela e eu estávamos completamente realizados.

A primeira situação de racismo que minha filha sofreu, foi dentro do meu útero. Foi uma série de violências institucionais. Na época eu estava no último ano de uma faculdade renomada e logo que meus colegas elitistas de sala souberam que eu estava grávida de um homem negro e pobre, muitos se afastaram de mim. Tamanha era a minha felicidade, que aquilo não me importava, e as poucas pessoas que ficaram ao meu lado, são minhas amigas até hoje. A parte mais dolorosa, foi a violência vinda por parte dos professores. No dia da pré-banca do TCC, eu estava com oito meses de gestação, morava no capão redondo e a faculdade era no Morumbi. Eu pegava três ônibus para chegar lá e três ônibus para voltar. E trabalhava no período da tarde como operadora de telemarketing. No dia da pré-banca, ouvi de uma professora sem nenhuma empatia, ética e consciência de classe, que a filha dela também estava grávida e não faltava as aulas. Falou muitas outras coisas ofensivas com o olhar aprovador dos outros dois professores que ficaram omissos frente aquela situação. Me senti acuada e não falei uma palavra. Saí da sala chorando e tive o conforto de uma grande amiga. Peguei meus três ônibus de volta para casa e lá continuei a chorar. Pensava que deveria ter dito àquela professora que a filha dela deveria ter carro, fazer todas as refeições do dia, ter apoio da família etc…, mas na hora não disse nada. Aquilo me matava. Não ter me defendido. Nem a mim, nem a minha filha.

Desde que conheci o pai dela, sabia que seria mãe branca de filhos negros e que, por isso, por vivermos em uma sociedade extremamente violenta com as pessoas que estão à margem da sociedade, enfrentaria junto com ela, muitas situações de racismo. Precisava ser forte para educá-la com a certeza de que o problema não estava nela e, sim, na nossa sociedade. Na época, não me dei conta que essa havia sido a primeira situação de violência que ela vivenciou, ainda no útero. Classifiquei por muito tempo, que a primeira situação de racismo havia sido quando ela estava com oito meses. Estávamos no ponto de ônibus para eu deixá-la no berçário e seguir para o trabalho. Ela estava com o coraçãozinho colado ao meu, estava usando sling (canguru), quando um senhor se aproximou de mim e disse: “você é tão clarinha! Porque pegou essa menina escura para criar?!” Por sorte, meu ônibus chegou exatamente nesse momento, e eu só tive tempo de responder: ELA É MINHA FILHA! Percebi o constrangimento na face dele. Mas já era tarde. As palavras já haviam sido lançadas. Remoí essa cena durante anos. Me sentia na obrigação de proteger minha filha daquelas inúmeras pessoas que cruzariam nossas vidas.

Na época escolar, o preconceito se intensificou. Ela estudava em uma escola particular renomada de São Paulo, e era a única menina negra da escola. Nem preciso dizer o quanto essa experiência impactou na autoestima dela. O bullying era constante. Ela foi ficando calada e retraída. Sempre foi uma menina sensível e doce. Mas estava cada vez mais calada e apática. Fui chamada na escola pela diretora, que me relatou uma situação horrível, que me enchem os olhos de lágrima nesse exato momento. Uma colega de classe iria dar uma festa de aniversário e distribuiu os convites para todos da sala, menos para a minha filha. Ela devia ter uns 6 ou 7 anos. Surpreendentemente, a professora recolheu todos os convites e disse para a pequena que reproduzia o racismo que ou ela entregaria para todos ou para ninguém. Quando a diretora me chamou, isso já havia ocorrido e, segundo a diretora, nenhum colega de classe foi à festa da menina e demonstraram solidariedade pela minha filha. Isso me fez ter um pouco de fé nessa geração, nessas crianças especificamente. A atitude da professora também me surpreendeu positivamente. Acredito que todos aprenderam muito com aquela situação. Mas isso não diminuía minha dor em ver minha filha sendo vítima de preconceito e discriminação. A dor era imensa! Nela e em mim!

Familiares diziam para eu alisar ou cortar o cabelo crespo dela. Quando ela nasceu, ouvi que eu deveria tentar afinar o nariz dela com a minha mão. Passando a mão no nariz dela inúmeras vezes. Tive até uma demonstração prática de como fazer isso. E pensei: eu não quero mudar a minha filha. Quero ela do jeito que ela é!

Situações com ofensas raciais se repetiram durante todo o ensino infantil. Até o primeiro ano do ensino fundamental I. Refleti e decidi matriculá-la em uma escola pública, onde ela não seria a única negra da escola. Teria pares, se veria em outros rostos, veria cabelos lindos semelhantes aos seus. E acredito que essa foi uma decisão acertada. Não que não haja preconceito em escolas públicas, mas na minha vivência e na da minha filha especificamente, ele diminuiu consideravelmente. Ela passou a ir à escola com alegria, e essa alegria se estendeu a mim. Claro que tudo isso deixou insegurança e enfraqueceu muito sua autoestima e autoimagem. Gerou depressão e crises de ansiedade na adolescência. Hoje ela está com 15 anos e lutando para se fortalecer em uma sociedade que enfraquece e adoece pessoas negras, emocional e fisicamente.

Penso que a educação antirracista e antidiscriminatória seja urgente e pra ontem!!! Não podemos deixar nossos filhos à merce de uma sociedade adoecida. Como ferramenta de conscientização e apropriação de sua subjetividade, utilizo a história do Brasil, para que ela e meu filho do meio, negro também e com inúmeras situações de violência similares à da irmã, tenham em mente o que é o racismo estrutural e como ele é expresso em nossa sociedade. E parece que esse caminho da educação, com consciência e recorte de gênero, raça e classe, é de fato efetivo na vida da minha família.

Com amor, Bárbara!

2 COMENTÁRIOS

  1. Eu sou o pai da Bárbara. Esse seu relato não me surpreendeu , mas me entristeceu. Imaginava que não seria fácil e ela, como pessoa forte que é, nunca me confidenciou esses abusos. Tento transmitir a importância da luta negra para meus netinhos e enganjá -los ao movimento negro e demais excluído. Sinto que falhei ao não protegê-los como deveria. Que eles me perdoem. VIVA DR. MARTIN LUTHER KING. MEU GRANDE ÍDOLO!

  2. Muito importante ler relatos como esses: para não deixarmos que isso aconteça mais, para não ficarmos neutros quando isso acontece na nossa frente. Recordar para não reproduzir racismo.

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