Foto: ONU Mujeres

Texto de Rocio Rosero. Tradução: Aline Rossi


A história da participação política das mulheres na América Latina indica uma série de motivos para a mobilização e organização das mulheres: demandas econômicas e sociais, a luta pela democracia, a resistência às ditaduras.

Na maioria das vezes, as reivindicações das mulheres têm crescido a partir das suas preocupações imediatas, com sua própria mobilização, muitas vezes uma resposta espontânea ao agravamento das condições. Em alguns casos, inicialmente a organização e a participação das mulheres tem sido impulsionada por agências externas e não pelas próprias mulheres, tais como igrejas, partidos políticos, sindicatos, cooperativas e afins.

De qualquer forma, a experiência acumulada de organização de mulheres não só estabeleceu a legitimidade das questões das mulheres, mas deu origem a uma das visões mais ousadas e originais da mudança social, um guia para um caminho comum de crescimento produtivo e justiça social, dentro de uma estrutura de autêntica democracia.

A participação das mulheres em muitas formas de organização em toda a região da América Latina não é um desenvolvimento recente, assim como o não é o próprio movimento feminista. O que é novo é o processo feminista especificamente latino-americano, que tem ligado as lutas contra a discriminação econômica e a dominação masculina. A luta contra a exploração capitalista foi assim unida à luta contra a opressão patriarcal.

Em cada país da região, a organização das mulheres tem tido sua própria relação com o feminismo. Na maioria dos países, as mulheres se reuniram em torno de preocupações que não têm caráter especificamente feminista, tais como os tipos gerais de questões acima citados; sua consciência de gênero se desenvolveu a partir daí. Em outras situações, pelo contrário, as questões feministas têm sido o ponto de partida para vários tipos de organização. Vemos repetidamente que, como mulheres, temos uma diversidade de pontos de vista que se expressa em uma diversidade de abordagens de organização.

À medida que nossa luta se desenvolve, uma das principais contribuições do feminismo latino-americano é o reconhecimento de que as relações de gênero — que naturalmente envolvem tanto homens quanto mulheres — incluem relações de dominação e submissão que são mantidas por uma rígida divisão sexual do trabalho e são expressas em formas específicas de opressão tanto na esfera privada quanto na pública. Como todo grupo que sofre relações de poder opressivas, as mulheres são assim desafiadas a resistir e transformar sua condição.

A abordagem emergente das questões sociais orientada para mulheres reafirma o valor das emoções humanas. Como resultado disso, as mulheres contribuíram para a democratização e humanização da política. Nossa luta é pelo desenvolvimento de uma nova forma de prática social que possa superar a alienação e desenvolver nossa autoconsciência como sujeitos autônomos, ao invés de simplesmente vítimas ou objetos de nosso destino.

Essa perspetiva orientada para a mulher ampliou o conceito de “sujeito histórico”, uma vez que oferece às mulheres a promessa de que podemos questionar nossa situação e tomar medidas para transformá-la, iluminando os conflitos que residem em nossa vida cotidiana.

A Perspetiva Feminista na Educação Popular

Nos últimos quinze anos, a força do movimento popular da América Latina — o movimento da maioria pobre — tem crescido consideravelmente. Esse avanço implicou na incorporação de novos grupos sociais e na busca de novas abordagens de organização que expressem adequadamente as experiências e perspetivas de amplos setores da população que antes eram marginalizados, tanto na análise da realidade social quanto na formulação do projeto de transformação política.

Como as condições sociais, econômicas e políticas pioraram em nossos países, especialmente através da crise dos últimos anos, muitas mulheres começaram a participar mais diretamente dos movimentos sociais. Infelizmente, sua participação não raramente encontra inúmeros obstáculos, que derivam não apenas das contradições na vida doméstica, mas também das próprias organizações e instituições populares, que reproduzem estruturas que subordinam as mulheres aos homens e, assim, mantêm os papéis tradicionais de gênero.

As mulheres do setor popular — e também muitas de nós que trabalhamos apoiando as suas lutas — não encontraram o espaço nem os mecanismos para enfrentar adequadamente essas contradições e nossa crescente conscientização sobre elas. Tanto os movimentos populares quanto o movimento feminista falharam em providenciar o contexto de que precisamos.

Dentro dos movimentos populares, ainda é amplamente difundido que a organização em torno das questões feministas contorna e mina a luta fundamental do povo. Por outro lado, os grupos feministas que empreenderam trabalho com mulheres pobres muitas vezes ficam desconfortáveis ou não estão familiarizados com a educação popular nos modos que esta surgiu dentro dos movimentos populares. A educação popular, por sua vez, falhou em reconhecer as contradições de gênero, que por direito deveria abordar tanto como uma questão teórica quanto metodológica.

Assim, por um lado, o movimento de educação popular criou espaços de organização, de reflexão, de recuperação da cultura popular — tudo isso tem enormes implicações para a vida cotidiana das mulheres. Por outro lado, o movimento feminista, tomando como ponto de partida o problema central da identidade feminina, tem muito a dizer sobre as questões de coletividade, cultura, reflexão crítica, e organização global da sociedade. No entanto, a convergência desses dois movimentos é contraditória e está longe de ser automática.

Por sua vez, quando a educação popular atende às preocupações das mulheres, ela raramente enfrenta as questões centrais. E o feminismo, embora tenha desenvolvido de fato a sua própria premissa, ainda encontra dificuldades para integrar em sua perspetiva outros movimentos sociais e os problemas que eles abordam.

O movimento de educação popular em nosso continente deu origem a abordagens estratégicas que, por sua vez, contribuíram para o desenvolvimento de movimentos mais específicos em áreas como educação para a paz e direitos humanos, alfabetização e economia cooperativa, bem como movimentos voltados para círculos específicos, como a juventude, os povos indígenas e as mulheres.

Cada um desses movimentos, na luta pela mudança social em nível macro, também está buscando satisfazer suas próprias demandas particulares. As contribuições de cada setor ou área temática se manifestam no conteúdo político do trabalho educacional realizado dentro dele, bem como em como ele se situa no contexto da luta popular. Contudo, no fundo, essa contextualização é formal e pouco funcional, sendo, portanto, inadequada.

A educação popular considera como seu papel mais básico o fortalecimento daqueles grupos e setores que procuram sistematicamente redistribuir recursos e poder em favor dos setores subordinados da sociedade.

O ponto de partida do processo educacional — como definido pela educação popular — é a realidade ou prática social; ou seja, as relações sociais (o quê) e as diferentes formas que elas assumem em várias esferas sociais como a família, a comunidade ou a organização (o como).

Apesar da diversidade de suas circunstâncias, as mulheres latino-americanas têm como denominador comum suas enormes responsabilidades domésticas e suas principais contribuições para o trabalho produtivo, a atividade acadêmica e o desenvolvimento técnico e profissional. Em resumo, embora as mulheres desempenhem um papel crítico em todas as esferas da vida social, ainda assim sua participação não é valorizada.

Além disso, as mulheres são frequentemente instrumentalizadas, existindo em condições de manipulação e, às vezes, até mesmo de degradação. Isso dá origem a inúmeros conflitos e contradições, que muitas vezes incluem violência, tudo isso permeia o tecido das relações sociais, das relações interpessoais e da vida cotidiana: nas relações entre homens e mulheres, nos casais, nas relações entre adultos e crianças, na sexualidade, e na violência doméstica.

A luta para melhorar as condições econômicas e sociais da maioria exige que busquemos nossa “própria identidade como mulheres, o que nos exige o reconhecimento de outras identidades”. O que significa ser mulher? Uma mulher indiana? Uma mulher chola? Uma mulher camponesa? Esse é o sinal da contribuição das mulheres: “ao nos encontrarmos como mulheres, estamos retraçando as múltiplas lógicas da dominação” (CEAAL Women’s Network, 1985:5).

Esse novo conceito de pessoa implica uma redefinição de outras identidades sociais, incluindo, é claro, a de ser homem. Assim, a inclusão do movimento feminista no processo geral de transformação social implica um apelo não apenas para a eliminação da estratificação de classe, mas também para a eliminação de todas as formas de subordinação, incluindo a subordinação das mulheres.

Nesse contexto, torna-se possível conceber o poder não em termos de dominação, mas sim como uma capacidade de ação para transformar a realidade.

A perspetiva feminista na educação popular postula a necessidade de partir da realidade feminina, “restaurando o valor da esfera doméstica, o papel reprodutivo da mulher, sua sexualidade e, finalmente, seu direito ao prazer — não para manter o prazer como instrumento de opressão, mas, ao contrário, para transformá-lo em um instrumento de luta e libertação” (CEAAL Women’s Network, op. cit.). Essa perspetiva reconhece o valor da experiência individual na transformação social e na recuperação do significado e do valor da diversidade na construção de um novo sujeito coletivo.

De uma perspetiva feminista, um desafio-chave para a educação popular com as mulheres é formular uma abordagem pedagógica que promova a reflexão e a análise tendente a uma interpretação da vida como ela é vivida pelas mulheres, dando uma consideração privilegiada a suas experiências e atitudes como interpretadas dentro de seu contexto social.

Essa nova abordagem pedagógica requer uma transformação ideológica, desmistificando as percepções que as mulheres têm de si mesmas e de sua sociedade. Fundamentalmente, estamos falando aqui da necessidade de um novo conceito de libertação, um conceito que englobe todas as dimensões da atividade humana.

Nossos desafios

Nosso objetivo era ir além, descobrir-nos como mulheres, aumentar nossa consciência de como experimentamos a realidade como mulheres — porque, entre os pobres, as mulheres são muito mais marginalizadas. Nunca nos prestaram atenção ou nos levaram em consideração enquanto pessoas. (União Popular das Mulheres de Loja, 1985)

“Ir além” significa reconhecer nosso valor e desmascarar como nossa opressão e marginalização são jogadas em cada ação de nossa vida diária.

Isso só é possível através de um processo educacional no qual todas nós aprendemos a trabalhar pela mudança— em solidariedade e através de uma ação organizada.

Assim, a educação popular para as mulheres é um processo abrangente cujas características básicas incluem um programa de ação contínuo, coerente e permanente. Tal processo requer o envolvimento de grupos que foram organizados por e para a mudança social.

“Ir além” significa trabalhar a partir da base de nossa identidade como sujeitos de nossas próprias vidas e a partir de nossas próprias experiências como mulheres:

  • Na nossa existência emocional, em termos de sexualidade, comunicação interpessoal, relações íntimas.
  • Como trabalhadoras: em tarefas domésticas, em ter renda e em nossa vida profissional.
  • Como integrantes da sociedade, com respeito a nossos direitos civis e políticos, nossos esforços de organização, nossa militância.
  • Como mães, em termos de nossa capacidade reprodutiva, de nossas existências físicas, de nossa saúde, de nosso papel como educadoras.
  • Como filhas, em relação à nossa educação, ao nosso desenvolvimento, às nossas aspirações.
  • Como criadoras da vida, em defesa de nossa dignidade e na luta contra a violência.

“Ir além” significa fortalecer a autonomia de alcance e organização com as mulheres. Nosso processo de conscientização deve levar ao poder de decisão, tanto dentro de nossas organizações quanto fora delas, em nível social e político mais amplo e mais público. A conscientização, nesse sentido, significa fortalecer mulheres em cada um desses níveis, a fim de concretizar a verdadeira equidade na vida social.

“Ir além” é sobre a nossa enorme responsabilidade de articular uma nova perspetiva que permita a democratização da vida cotidiana. Da mesma forma, devemos adotar métodos alternativos de trabalho que nos permitam redescobrir o caráter político da experiência cotidiana.

Nas palavras de Carmen Tornaria (1986:6), “ir além” significa desenvolver uma abordagem da prática coletiva que reconheça “eu, a mulher”, um “eu” que recupere a dimensão pessoal. E, passando para fora, o “nós” da mulher, no qual desenvolvemos uma compreensão coletiva de nossas experiências, nos permite descobrir o que é comum a todas nós. Descobrirmos a nós mesmas como um grupo oprimido e podermos, então, rastrear as conexões com outras formas de dominação que já são compreendidas.

Assim chegamos ao momento da resposta, no qual, vendo como nossas experiências ecoam umas às outras, vemos que o pessoal também é político e, portanto, constitui um caminho para a transformação social.

A seguir, chegamos ao momento da ação — dentro de nós, em direção a nós e fora de nós. A partir daqui, trazemos mudanças no ambiente familiar e desenvolvemos uma prática educativa adequada às nossas preocupações, ao nos tornarmos agentes de transmissão de um novo projeto social, que chega ao nível do bairro, da comunidade, do local de trabalho, do sindicato e do partido. Ao nos ligarmos a outros grupos sociais autônomos, fazemos sentir nosso impacto em toda a paisagem social.

Ir além”, finalmente, significa aceitar que o feminismo é um projeto político ao lado de outros, baseado em uma compreensão de gênero que tem sido historicamente negligenciada. O feminismo não é o único projeto político. A opressão de gênero interage com a classe e a raça, e isso se reflete na prática e nas experiências dos movimentos sociais (CEAAL Women’s Network, 1985:12).

Ir além” significa que desafiamos não apenas a educação popular para as mulheres, mas também a educação popular como um todo ao questionar todo tipo de relação de poder como uma forma de opressão. A educação popular precisa enfatizar aquelas demandas que derivam da subjugação das mulheres na vida cotidiana.

Ir além” significa trilhar nosso caminho ao lado das mulheres na base, explorando e desenvolvendo com elas uma compreensão coletiva de seus problemas, desafiando as abordagens tradicionais.

A luta das mulheres é um processo histórico vital e transcendente. Vital porque envolve nossa família, nosso trabalho e nossa vida social; transcendente porque desde seu ponto de partida em nossas próprias vidas ela alcança a mudança social universal. Histórica, finalmente, porque enfrenta uma ordem social tradicionalmente discriminatória ao oferecer uma nova abordagem da vida, um novo projeto histórico alternativo: o projeto de criar uma sociedade compreensivamente humana.


BIBLIOGRAFIA

Gajardo, Marcela, Ed., “Teoria y Practica de la Educacion Popular” [Theory and practice of popular education], Col . Retablo de Papel №5, Mexico, 1985.

Nunez, Carlos, “Educar para transformar, transformar para educar” [Education for transformation, transformation for education], TAREA, first Peruvian edition, Lima, 1986.

Popular Women’s Union of Loja, “Y no Teniamos Voz” [And we had no voice], Loja, Ecuador, 1985.

CEAAL Women’s Network, “Taller andino de Metodologia de Educacion Popular entre Mujeres” [Andes workshop on popular education for women], final report, Quito, Ecuador, 1985.

Tornaria, Carmen, “Taller-seminario sobre Feminismo y Educacion Popular en America Latina” [Workshop-seminar on feminism and popular education in Latin America], CEAAL, final report, Quito, Ecuador, 1987.


Breve biografia da autora:
Rocio Rosero é uma feminista equatoriana, defensora dos direitos humanos das mulheres no Equador e na América Latina há mais de quatro décadas. Socióloga, com formação em Antropologia, Direitos Humanos e Sociedade, Gênero, Sociedade e Política.