As políticas progressistas se perderam completamente. Quando feministas, que passaram décadas lutando contra o sexismo, o racismo e a homofobia, são vistas como um risco ao bem-estar de estudantes, algo deu muito errado. Linda Bellos se tornou a mais recente feminista que teve seu convite para falar retirado após levantar questionamentos sobre as direções que as políticas de gênero da atualidade estão tomando. Bellos, que é responsável pela criação do Mês da História Negra na Grã-Bretanha, foi desconvidada pela Beard Society, um grupo “de gênero e feminismo” da Universidade de Cambridge.
Durante seu pronunciamento para a Peterhouse College, Bellos contou aos organizadores que pretendia publicamente criticar “algumas das políticas trans… que parecem reafirmar o poder daqueles que viveram anteriormente como homens para dizer a lésbicas, especialmente feministas lésbicas, o que falar e o que pensar”. Em resposta, um representante da Beard Society disse: “Eu lamento, mas nós decidimos não recebê-la. Eu também acredito na liberdade de expressão, entretanto, Peterhouse além de ser uma faculdade, é uma casa. O bem-estar de nossos estudantes, na ocasião, vêm em primeiro lugar.”
Independente de sua visão sobre gênero, a fala de Bellos na Universidade de Cambridge não compromete de nenhuma forma o bem-estar dos alunos. É ridículo afirmar que alguém que dedicou sua vida adulta às políticas de libertação é um risco àqueles que escutam suas perspectivas — e profundamente ofensivo. Negra, judia, e feminista lésbica, Bellos não é exatamente uma pregadora do ódio.
Nos últimos anos, gênero se tornou um assunto crescentemente explosivo. No mínimo, foi corajoso da parte de Bellos se propor a debater esse racha entre os princípios queer e feministas quando muitos ativistas de longa data se esquivam do assunto. E o problema existe: o fato de mulheres não poderem nem questionar as políticas de gênero sem serem vistas como suspeitas trás à luz o problema subjacente às ideologias.
Murray Edwards, uma faculdade feminina da Universidade de Cambridge, atualizou sua política de admissão para incluir qualquer candidato que “no momento da inscrição, se identifique como mulher”. Faculdades femininas existem para corrigir o desequilíbrio causado pela exclusão das mulheres das universidades. Uma política baseada na auto-identificação é passível de exploração — um homem pode ocupar um espaço na universidade reservado para uma mulher falsamente afirmando que se identifica como mulher — o que apresenta um problema sério. Essas questões não nascem da crueldade ou do preconceito, mas da necessidade.
Mulheres devem se questionar sobre as políticas de gênero. Durante séculos, o gênero funcionou como uma hierarquia que põe os homens no topo e as mulheres na base. O gênero é o motivo pelo qual uma entre três mulheres no mundo inteiro irá vivenciar a violência masculina durante a vida. Os papéis de gênero são os pilares do patriarcado. Portanto, desafiar o gênero é um passo necessário para a libertação das mulheres. Ainda assim, muitas mulheres que questionam ou desafiam a maneira que agora nós estamos sendo encorajados a pensar sobre gênero — como inerente e apolítico, ao invés de uma hierarquia socialmente construída — estão sendo silenciadas e rolutadas de Terfs.
Terf é um sigla em inglês que significa feminista radical trans exclusionária. Online, o termo geralmente vem acompanhado de retórica violenta: soque uma Terf, esfaqueie uma Terf, mate uma Terf. Essa linguagem é usada para desumanizar mulheres que são críticas do gênero como parte de um sistema político. Muitas das mulheres chamadas de Terf são, assim como Bellos, lésbicas. Essas lésbicas estão sendo crescentemente demonizadas pela mais ampla comunidade LGBT+, e ignoradas para se evitar o debate. Reprimir essas tensões, em vez de dar vazão a elas, apenas faz o problema aumentar. Diálogos como o que Bellos começou, conversas que dão espaço de respiro sobre as dificuldades entre algumas lésbicas e pessoas trans, são necessárias se nós quisermos em algum momento atravessar essa controvérsia dolorosa.
Ser posto a pensar ideias complexas não é o mesmo que ser violentado.
A tensão entre feministas radicais lésbicas e ativistas queer parte das duas maneiras contraditórias de se definir o gênero. As políticas queer enxergam o gênero como uma identidade inata. O pensamento feminista radical vê o gênero como um sistema político, não uma identidade. Reconhecer o gênero como uma característica inata e um fator que deve ser consagrado e protegido, contradiz totalmente os princípios do feminismo radical. As políticas de gênero são altamente pessoais, mas esse não é um motivo para se esquivar de explorar essa questão — exatamente o oposto.
Assim como Bellos, eu sou uma feminista radical. Existem mulheres no movimento que ultrapassaram seriamente os limites ao dirigir crueldade contra pessoas trans, e isso eu condeno sem hesitar. Mas como toda feminista radical que eu conheço, eu quero que pessoas trans vivam vidas livre de abusos, discriminação e perseguição. Independentemente da diferença das maneiras que nós conceitualizamos gênero, feministas radicais querem que pessoas trans estejam livres da violência masculina.
E é majoritariamente violência masculina a base do abuso transfóbico — feministas radicais acreditam no conceito de nomear o agente da violência. Observando o veneno dirigido contra as feministas radicais, a maneira como as perspectivas radicais são tratadas como literalmente veneno, podemos até perdoar quem acha que mulheres feministas são responsáveis pela violência anti-trans. Entretanto, a maioria esmagadora dos ataques transfóbicos são feitos por homens. Na verdade, feministas radicais criticaram e se opuseram à violência masculina há mais tempo e com mais consistência do que qualquer outra corrente de pensamento. O termo “Terf” e a retórica violenta que geralmente o acompanha serve apenas para obscurecer a realidade: mulheres e pessoas trans são vítimas da violência masculina. Fazer das feministas radicais as vilãs é culpar o pensamento das mulheres da violência dos homens.
Talvez as palavras de Bellos tivessem sido desafiadoras. Talvez o que ela tivesse a dizer aos alunos de Cambridge não fosse fácil ou confortável de ouvir. Mas ser posto a pensar ideias complexas não é o mesmo que ser violentado. E a universidade é o lugar ideal para ideias complexas serem examinadas tanto com nuance, quanto com rigor. Não são apenas os alunos de Cambridge que perdem com o silenciamento dos debates sobre as políticas de gênero, mas todos aqueles afetados pelas questões que Bellos teria explorado.
Tradução texto de Claire Heuchan para o The Guardian