O cabelo, o leite, o ventre e os orifícios das mulheres estão para alugar ou vender em todo o mundo. É a interseção entre capitalismo e patriarcado. Aqueles que militam para abolir o comércio do sexo estão chamando a atenção para os vínculos entre todas as formas de comércio de corpos e estão começando a se organizar contra isso. O fato chocante é que em muitos países, o corretagem, a compra e a venda de pedaços de fêmeas humanas são perfeitamente legais. Bem-vindo ao mercado construído sobre a opressão, a disponibilidade, o desespero e a desesperança das mulheres.
Como escritora feminista e militante contra a violência masculina contra mulheres e meninas, estou profundamente preocupada com a crescente normalização da mercantilização do corpo feminino. Ao se organizar contra o comércio sexual nas últimas duas décadas, encontrei formas relacionadas de exploração comercial de mulheres e meninas, como a barriga de aluguel, a remoção de óvulos e a venda de leite e cabelo.
Em uma série de artigos, vou fazer reportagens da Romênia, da Ucrânia, de Israel, da Califórnia, dos EUA e da Grécia abordando esse grotesco mercado, para expor os corretores que lucram com os chamados produtos e serviços e as pessoas que criam a demanda por partes do corpo feminino. Vou falar com os vendedores, compradores e aqueles que anunciam esses produtos e considerar os efeitos sobre as meninas e mulheres que estão sendo exploradas.
Os bebês nascidos de mulheres desesperadas e abusadas também são vendidos no mercado aberto. Numa viagem à Hungria, próximo mês, vou falar de uma aldeia onde um dos mais notáveis fazendeiros de bebês — os bebês são vendidos para aqueles que procuram adoções rápidas e fáceis — apresentou seu negócio como altruísta ao invés de criminoso e desumano.
Atualmente, existem milhares de clínicas que oferecem terceirizar todos os aspectos da fertilização, gravidez e parto. Neste mercado neoliberal, são necessárias várias empresas para construir uma família.
Em Gujarat, Índia, em 2015, falei com Labh, um garçom no meu hotel, que me disse que tinha acabado de vender 50 centímetros do cabelo da filha para um homem que vem todas as semanas comprar mechas naturais de garotas e mulheres que precisam de dinheiro. Na Índia e em muitos outros países onde os comerciantes de cabelo procuram suas presas, as meninas são estigmatizadas e muitas vezes punidas por ter cabelos curtos. Apesar disso, muitos pais vendem seus cabelos para complementar a renda familiar.
Labh me disse que é diferente do que acontece em Chennai, onde segundo o costume Hindu, as mulheres rezam no templo enquanto seus cabelos são raspados como um sacrifício para os deuses. Pergunto o que acontece com o cabelo. “É enviado para leilões e depois enviado para a América e a Europa”, diz Labh.
Eu fui a Gujarat para investigar o negócio do “alugue-um-útero”, também conhecido como sub-rogação ou barriga de aluguel. Embora a Índia seja o centro do mercado de barriga de aluguel, e Gujarat, a principal cidade indiana do tráfico de útero, esse mercado opera em muitos países ao redor do globo.
A sob-rogação foi recentemente reembalada e apresentada como uma questão de direitos humanos para homens gays e outros que desejam seu próprio bebê e não conseguem conceber da maneira tradicional. É escandaloso para mim que as decisões de homens ricos, gays e outras pessoas sejam mantidas acima dos direitos das mulheres empobrecidas e exploradas.
“As mulheres que alugam seus ventres não vêm das comunidades ricas ou afluentes”, me contou Jennifer Lahl, fundadora da Stop Surrogacy Now, quando nos encontramos em Paris em um seminário intitulado “Vers l’abolition of the GPA” (“pela abolição da sub-rogação”).
“[Os EUA] não tem pobreza indigente como na Índia, mas [possíveis sub-rogadas] são mulheres de baixa renda, muitas vezes mães jovens, às vezes esposas de militares. Você pode ver a segmentação e a publicidade diretamente para este grupo demográfico”, diz Lahl.
Uma coisa que me horrorizou durante a minha viagem a Gujarat, — onde visitei várias clínicas de maternidade me passando por uma mulher infértil que desejava terceirizar minha gravidez — foi que várias mulheres que atuam como barrigas de aluguel também são pressionadas a vender seu leite para os pais compradores. Apesar do fato de as mulheres não terem permissão de manter seus bebês quando nascem, muitas vezes elas são solicitadas a amamentar seu filho por algum tempo caso os pais não possam pegar o bebê imediatamente por causa de compromissos de trabalho ou arranjos de viagem complicados. A dor psicológica de amamentar um bebê com quem você não tem permissão de criar vínculos foi descrita para mim, por uma mulher que sofreu esse processo, como “tortura”.
O leite materno também é vendido por meio da pornografia, sendo as mulheres em lactação filmadas por pornógrafos para satisfazer homens com fetiche em leite. Sexylactation.com hospeda tal pornografia. O cabeçalho do site diz: “Nenhum mamilo resiste à forte sucção de nossas máquinas de ordenha e desmamadeiras. ORDENHAMOS ATÉ FICAREM SECOS “.
“Essa adorável lactante estava tão cheia de leite que bastou se curvar e seus peitos inchados começaram a vazar”, diz o site. Depois passou a descrever a mulher como uma “vaca”. Via Skype, falei com Maria, uma mãe de 20 anos vivendo abaixo da linha da pobreza em Kiev, na Ucrânia. Ela foi apresentada a mim por uma agência de ajuda internacional para a qual pediu ajuda para lidar com seu senhorio abusivo.
“Não tive escolha senão vender o que podia pelo meu bebê”, disse Maria. “Era tudo que eu tinha — isso, ou me vender por sexo. Não sabia que alguém queria esse leite até que meu senhorio me disse que era minha única maneira de pagar meu aluguel. Não tenho idéia de por quanto ele vendeu, mas meu peito ficou machucado e me senti humilhada e envergonhada por fazer isso. Eu realmente não consigo explicar o porquê.”
Embora a pobreza seja o principal fator que impulsiona a venda ou aluguel de partes e funções do corpo feminino, o mercado só existe porque as mulheres são objetificadas e têm status inferior ao dos homens. A doação de óvulos é uma área em que a mercantilização do corpo feminino — a noção de que há rendimento na reprodução — atraiu mulheres que precisam de dinheiro.
Os empresários do comércio de óvulos visam mulheres brancas jovens, convencionalmente atraentes, muitas vezes estudantes universitárias, como doadoras. Pais interessados folheiam catálogos com fotografias das doadoras, para projetar seu bebê ideal. A cor do cabelo e dos olhos, a altura, o patrimônio racial e étnico, os passatempos e os níveis de QI estão listados nas descrições. Há garantias de que nenhum comportamento criminoso ou desviante, doença mental ou física ou deficiência ocorra na família da doadora. Os anunciantes vendem a noção de que as doadoras de óvulos ganham dinheiro enquanto ajudam casais inférteis a realizar seus sonhos.
“Eu queria financiar uma pós-graduação em negócios”, disse Alice, cabeleireira e mãe solo. “Tinha certeza absoluta de que eu ia ganhar dinheiro ajudando as pessoas e só me causou um leve desconforto”. A experiência de Alice foi bastante positiva, mas ela diz que se preocupa em um dia encontrar seu filho desconhecido na rua e pensar “Essa é a minha imagem”.
“Eu realmente não pensei nisso naquele momento — aquele ou talvez aqueles bebês nascerão dos meus óvulos”, acrescentou.
Há uma série de riscos conhecidos na doação de óvulos, incluindo a Síndrome da Hiperestimulação Ovariana, uma condição que faz com que os ovários inchem dolorosamente em aproximadamente 25% das mulheres que usam drogas de fertilidade injetáveis. A cirurgia para extrair os óvulos também pode levar a complicações, como severa dor estomacal, infecção e sangramento.
Os riscos a longo prazo da doação de óvulos permanecem em grande parte desconhecidos. Existem poucos dados seguros sobre os efeitos dos medicamentos de infertilidade comumente usados para estimular a produção de óvulos, e não tem havido estudos de acompanhamento das doadoras.
O comércio de óvulos é semelhante aos antigos anúncios de tabaco. Os danos potenciais e os efeitos negativos não estão incluídos, ou são significativamente minimizados. O blog We Are Egg Donors encomendou a Hillary Alberta-Sherer, estudante de doutorado, uma análise do conteúdo dos anúncios de doadoras de óvulos. Dos 424 anúncios, que ela estudou para saber até que ponto as potenciais doadoras são avisadas sobre os riscos, ela encontrou apenas 68 que incluíam o termo “risco(s)”.
Em uma entrevista para Jennifer Lahl, produtora executiva, diretora e roteirista do documentário “Eggsploitation”, Linda descreve suas experiências como doadora de óvulos por três vezes:
“A primeira vez foi muito fácil; a dor não era tão ruim assim. No entanto, ainda doeu e eu senti dores no abdômen, e não consegui andar depois. Na segunda vez, doeu muito quando eu acordei duas horas depois da colheita dos óvulos. A terceira vez foi, de longe, a pior. Acordei duas horas depois, mas a dor me atingiu quatro horas mais tarde.
Eu me senti usada como se fosse apenas uma produtora de óvulos. Eu senti como se tudo o que importasse para eles fossem meus óvulos, e não eu e minha saúde e bem-estar.”
Enquanto crimes terríveis são perpetrados contra mulheres e meninas devido à nossa biologia, nossos óvulos, úteros, vaginas e outras partes e funções do nosso corpo estão dando lucro para cafetões e outros exploradores terceirizados. As mulheres não serão livres até que nossos corpos, na sua totalidade, pertençam a nós e a nós apenas.
Tradução do texto de Julie Bindel