Traçando causas e perfis

INTRODUÇÃO

Para este ensaio, abordaremos a questão do encarceramento em massa de mulheres no Brasil. Para tanto, ele será estruturado em duas partes: a primeira parte se preocupará em traçar o perfil das mulheres encarceradas, para que as posteriores análises de seu encarceramento se sustentem no método materialista, ou seja, partindo-se da realidade para se buscar uma explicação, e não o contrário; a partir dessas informações, e a segunda parte trará as atuais conjecturas teóricas feitas para explicar tal fenômeno.

1. QUEM SÃO AS MULHERES ENCARCERADAS BRASILEIRAS?

Segundo dados do INFOPEN 2018, 50% das mulheres privadas de liberdade no Brasil são jovens (ou seja, possuem entre 18 e 29 anos); 62% são negras; 77% não completaram o ensino médio (sendo que 45% não completaram sequer o ensino fundamental); 62% são solteiras; é bastante provável que a maioria tenha mais de um filho ou filha; os crimes relacionados ao tráfico de drogas (que incluem o tráfico de drogas em si, a associação para o tráfico e o tráfico internacional de drogas) correspondem a 62% das incidências penais pelas quais as mulheres privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento em 2016, e crimes contra a propriedade (o que inclui roubo, furto e receptação) correspondem a 21% das incidências penais, sendo que é possível identificar que após a lei de drogas de 2006 o encarceramento de mulheres por tráfico de drogas se expandiu. Além disso, 45% das mulheres privadas de liberdade ainda aguardam julgamento.

Temos, então, como perfil geral, que as mulheres privadas de liberdade no Brasil são jovens, negras, de baixa escolaridade (a partir do que se presume que sejam de baixa renda — o INFOPEN não traz levantamento específico a respeito da renda ou da ocupação dessas mulheres no momento em que são presas), estão presas provisoriamente e entraram para o sistema de justiça criminal devido ao envolvimento com o tráfico de drogas.

É possível falar no fenômeno do encarceramento feminino em massa quando analisamos as taxas de encarceramento ao longo dos anos: segundos dados do INFOPEN, entre 2000 e 2016, o encarceramento feminino aumentou 656% (enquanto a taxa foi de um aumento de 293% para o encarceramento masculino no mesmo período). Em números absolutos, o Brasil possui a quarta maior população feminina; em relação à taxa de aprisionamento, que indica o número de mulheres presas para cada grupo de 100 mil mulheres, o Brasil é o terceiro país no mundo que mais encarcera mulheres, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e da Tailândia.

2. QUAIS AS CAUSAS DESSE ENCARCERAMENTO EM MASSA?

Identificado o perfil da maioria das mulheres privadas de liberdade no Brasil, fica então evidente que as opressões estruturais de raça e classe interferem diretamente no aprisionamento dessas mulheres. Quando se leva em consideração o fator da opressão sexual, ou seja, os mecanismos pelos quais o sexo interfere na vida das mulheres, a criminalidade feminina se mostra ainda mais diferente de sua contrapartida masculina, evidenciando-se a inaplicabilidade dos paradigmas criminológicos oriundos de teorias que não adotam análises feministas (ou seja, todas, com exceção da criminologia de base feminista). Quanto aos processos de criminalização, por sua vez, identifica-se o mesmo padrão de encarceramento massivo de pessoas negras e/ou pobres — tanto homens, quanto mulheres.

Desde a virada paradigmática criminológica possibilitada pela abordagem do etiquetamento (ou labelling approach), entendemos que o sistema de justiça criminal (em todas as suas instâncias: elaboração, julgamento, execução e controle) não é neutro: ele seleciona as pessoas, dividindo-as entre puníveis e não-puníveis. A criminologia crítica, partindo dessa abertura, retoma a teoria marxista para explicar de que forma a ideologia da classe dominante e a necessidade de manutenção do domínio dos meios de produção, em apertada síntese, atuam em prol dessa seletividade penal — que passa a ser considerada, assim, essencial do sistema de justiça criminal, e não circunstancial. Assim, temos que há mais pessoas pretas e pobres presas não porque pessoas pretas e pobres cometem mais crimes, mas porque (i) a própria noção e definição de crime é elaborada para encarcerar essas pessoas, o que faz com que (ii) o sistema selecione essas pessoas para serem punidas. Em linhas gerais, esses postulados explicam satisfatoriamente o porquê de no Brasil a população carcerária em geral — tanto de homens, quanto de mulheres — ser desproporcionalmente preta e pobre.

No entanto, se o sistema de justiça criminal se guiasse por padrões de perseguição fundamentados apenas em raça e em classe, as taxas de aumento do encarceramento de mulheres e de homens não seriam tão discrepantes. Daí a necessidade de se levar em consideração o fator sexual, além dos fatores de raça e de classe, para analisar o fenômeno do encarceramento de massa feminino.

Na América Latina como um todo e no Brasil especificamente, o aumento do encarceramento de mulheres está intimamente relacionado às mudanças na política de drogas — tanto é que, depois da reforma legislativa de 2006, as taxas de aprisionamento feminino, em geral, e por crimes ligados ao tráfico de drogas, em particular, vêm aumentando vertiginosamente. Poderíamos, ainda, acrescentar o fator histórico da colonialidade como fundamental a esse processo; mas, devido ao curto espaço de que dispomos e à complexidade do tema, concentrar-nos-emos nos fatores de raça e classe. Ressaltamos que o raciocínio que deve ser feito não é de que necessariamente mais mulheres estão se envolvendo com o tráfico de drogas, mas de que mais mulheres estão sendo visadas, perseguidas e punidas pelo sistema de justiça criminal por conta do acirramento da guerra às drogas. Em outras palavras, é a expansão do encarceramento que faz com que mais mulheres estejam sendo presas.

Entende-se aqui necessária a contextualização dos motivos da guerra às drogas em seu âmbito punitivo, conforme proposta pela criminologia crítica. Resumidamente, a política de guerra às drogas se sustenta pelo tripé (i) ideologia da “Defesa Social”, (ii) ideologia da “Segurança Nacional”, e (iii) movimentos de “Lei e Ordem”. No contexto da política de drogas brasileira, (i) utiliza-se da ideologia da defesa social para identificar a criminalidade associada às drogas como fenômeno prejudicial à sociedade a ser combatido; (ii) justifica-se a perseguição e a neutralização sistemáticas de indivíduos e de grupos pela ideologia da segurança nacional, já que “o traficante” é identificado como um inimigo público do Estado e da sociedade; e (iii) os movimentos de lei e ordem conferem legitimidade a tais ideologias e consequentes políticas criminais. Desde a década de 90, então, identifica-se no Brasil uma “funcionalidade mítica da droga”: ela é o bode expiatório de todos os problemas sociais; todo tipo de política — inclusive uma necropolítica — se justifica em nome de seu combate. Não por acaso, adotam-se políticas repressivas e opressivas ao invés de políticas de saúde pública. No entanto, como não poderia ser diferente, o inimigo identificado pela política de guerra às drogas não é o grande produtor ou traficante, mas o varejista, o dono da boca, o aviãozinho. Figuras de baixa hierarquia e que, justamente por serem retiradas de seus “postos” o tempo todo, ensejam o constante recrutamento de mais pessoas ao mercado de entorpecentes.

As mulheres envolvidas com o tráfico de drogas pertencem majoritariamente a esses grupos. Diferentemente de homens, que frequentemente têm envolvimento constante e regular com o crime (constituindo uma “carreira criminosa”, para usar termos criminológicos), as mulheres costumam recorrer ao tráfico de drogas esporadicamente, como forma de complementação da renda. Isso explica por que tantas mulheres são pegas em flagrante servindo de “mulas” (transportadoras) de drogas: o serviço de “mula” pode ser exercido uma vez só. Além disso, a flexibilidade de horários possibilitada pelo tráfico de drogas vem de auxílio a essas mulheres, que frequentemente acumulam jornada dupla ou tripla de trabalho (são responsáveis pelos serviços domésticos e de cuidado da prole, além de trabalharem fora de casa, geralmente em trabalhos informais e/ou precarizados).

O fato de essas mulheres recorrerem ao tráfico (e a outras ocupações ilegais, violentas ou marginalizadas) como forma de incremento da renda evidencia o fenômeno, já descrito desde os anos 80 por teóricas feministas, de feminização da pobreza: os maiores índices de pobreza se encontram entre mulheres ou em lares chefiados por mulheres (sendo que estes vêm aumentando cada vez mais), majoritariamente porque além de mulheres ganharem menos do que homens, elas precisam trabalhar menos horas fora de casa porque acabam sendo responsáveis pelo cuidado e pela organização da casa, das crianças, dos idosos e de deficientes físicos. Em famílias chefiadas exclusivamente por mulheres, esse processo se acentua; e dentre as populações mais pobres, a falta de creches impossibilita a mulher de ter um trabalho regular e fixo, já que ela não teria com quem deixar sua criança. Assim, as mulheres empobrecidas e negras — já que, no Brasil, as classes também têm cor — constituem um grupo de alto grau de vulnerabilidade; uma vez que são responsáveis não só pelo próprio sustento, mas muitas vezes pelo sustento da família. A feminização da pobreza facilita a entrada das mulheres nos mercados ilícitos e informais.

Associe-se a isso o mais conhecido fenômeno de criminalização da pobreza, já amplamente descrito desde a abordagem do etiquetamento como o processo de (i) estigmatização de condutas, comportamentos e culturas tipicamente associados às classes mais baixas, o que, no Brasil, está inerentemente associado à configuração racial das classes sociais e à presença da herança escravista nas estruturas sociais, e de (ii) seletivas repressão, perseguição e punição dos indivíduos de classes mais baixas, independentemente de a prática das condutas tipificadas como crime ser pulverizada por todas as classes sociais. O resultado é a dupla-tripla vitimização e/ou seleção penal das mulheres: por sexo, por raça, e por classe.

3. CONCLUSÃO

A mulher, quando selecionada pelo sistema penal — seleção esta que se intensificou com a guerra às drogas –, além de já ser estigmatizada pela sua classe social (fruto da criminalização da pobreza) e frequentemente pela sua cor (fruto do racismo, inclusive estrutural), também, portanto, será julgada de forma patriarcal, já que “criminosa” foge aos estereótipos e papéis sociais de sexo que determinam que uma mulher deve ser naturalmente doce, passiva, maternal e “boa”. Além disso, a prática de “desvios” por uma mulher significa que os mecanismos de controle social patriarcais falharam, o que configura, de certa forma, uma subversão por parte dessa mulher e uma fragilidade desses mesmos mecanismos de controle. Essa mulher que é pega por algum crime é, então, duplamente “desviante” — aos olhos da lei e aos olhos do patriarcado –, o que aumenta o rigor punitivo sobre ela.


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