Verdades e mitos
“A moralidade de cada um e a pureza da consciência são muito melhores do que a moralidade do véu. Não se pode esperar nada de bom do fingimento. Toda a bondade está na essência do ser. O véu não é uma obrigação islâmica às mulheres muçulmanas. Se os legisladores muçulmanos decidiram que é, as suas opiniões estão erradas.” Nazira Zin al-Din, al-Sufur Wa’l-hijab
A maioria das pessoas acredita que o véu surgiu no islã, mas ele é muito mais antigo, originou-se de antigas culturas indo-europeias, como os hititas, gregos, romanos e persas. Também foi usado pelos assírios -A primeira referência ao véu data de um texto assírio de 13 aC. No texto, a prática de seu uso foi descrita como reservada às mulheres “respeitáveis” da elite; prostitutas e mulheres pobres eram proibidas de usá-lo (Hoodfar, 2003)-. Nestas sociedades, o véu tinha implicações de classe e sexo; assim, a antiga lei assíria exigia que a mulher de classe alta punisse a plebeia que o usasse. A forte associação do véu com o ranque de classes, assim como uma divisão urbana/camponesa, persistiu historicamente até o século passado. Nessa altura, mulheres mais privilegiadas começaram a rejeitar o véu, como a feminista egípcia Huda Sharawi, enquanto a mulher pobre o adotava cada vez mais como um ingresso à mobilidade ascendente. (Uma dinâmica semelhante ocorreu com a amarração de pés na China moderna.)
A contraposição entre o Ocidente e o Islã certamente tem raízes históricas, mas esses dois sistemas têm semelhanças e diferenças. As mulheres da Europa medieval se vestiam mais como as mulheres do mundo muçulmano do que geralmente se percebe. Era costume, especialmente para as mulheres casadas, o uso de vários tipos de véus cobrindo os cabelos. Pinturas que retratam a mulher urbana na Europa ocidental, muitas vezes a mostra toda coberta, exceto o rosto e as mãos. Era comum cobrir o pescoço e, às vezes, até o rosto com véus. Isso se tornou parte da vestimenta clássica da freira, que representa o estilo mais conservador do vestuário feminino no mundo cristão. Embora o véu tenha sido usado pelas mulheres da aristocracia romana, ele chegou a Roma através dos povos Hunos.
“O véu não era comum no império muçulmano até o final do século 10, e foi introduzido aos muçulmanos através da conquista persa. Na antiguidade, apenas as mulheres assírias de classe alta eram obrigadas por lei a usarem véus, enquanto escravas e servas eram explicitamente proibidas. As muçulmanas, inicialmente, adotaram o véu para representar status social elevado e, apenas mais tarde, é que o véu começou a simbolizar modéstia. Apesar de uma vasta gama de interpretações, só no final do século 16, é que o yashmak (véu) tornou-se obrigatório na Império Otomano.” Muhammed Hassanali, “Veil”, International Institute for Asian Studies Newsletter, #41 (Summer 2006)
As mulheres camponesas e da classe trabalhadora que não se cobriam dessa maneira eram consideradas “livres” e sujeitas ao assédio. Esse status desrespeitoso e, portanto, vulnerável das mulheres que não usavam véu, também se manifesta no contexto muçulmano, voltando a uma passagem do Alcorão que especificamente designa o véu para que as muçulmanas não fossem molestadas (por uma questão social que diferenciava mulheres livres das escravas, não por uma questão religiosa). Suas raízes históricas remontam aos seus vizinhos do império bizantino, que atribuíam alto grau social às famílias cujas mulheres usavam véu. Estes, por sua vez, baseavam-se em valores gregos e romanos de honra masculina e vergonha feminina, e de espaço público como espaço masculino.
Os mesmos códigos são refletidos nas escrituras cristãs, que pedem o véu como símbolo do domínio masculino sobre as mulheres. Tertuliano referiu-se a isso como “a disciplina do véu” e denunciou as mulheres cristãs que protestavam contra sua aplicação. Ele escreveu que a maioria das igrejas gregas e algumas norte-africanas “mantêm suas virgens cobertas”. [On the Veiling of Virgins, III] Talvez mais ao ponto do contexto árabe, os ditados rabínicos tratam o cabelo descoberto de uma mulher como “nudez”. No período Tanaíta, ela poderia ser multada em 400 zuzimpara. Como em outros lugares, os homens eram os executores: “Amaldiçoado seja o homem que deixa os cabelos de sua esposa serem vistos …”. Algumas correntes muçulmanas compartilham esse conceito de nudez das mulheres como “awra”, muitas vezes estendida para o rosto, pescoço e braços. No véu mais extremo, niqab, até as mãos de uma mulher devem ser enluvadas, não importa o calor do tempo, quando ela está em público ou na presença de homens sem parentesco.
Mas o Alcorão não impõe o uso do véu (o Alcorão quando fala do “hijab” -barreira- dirigi-se apenas as mulheres do profeta, quando estas fossem receber algum homem em suas casas). As outras mulheres foram instruídas apenas a puxar suas mantas sobre os seios (o que leva a crer que a maioria das convertidas à nova religião eram escravas libertas ou mulheres pobres daquela região). No entanto, a pressão do costume patriarcal foi grande e tornou-se irresistível, uma vez que os árabes conquistaram países onde o véu já era usado há muito tempo, como Leila Ahmed detalhou em Women and Gender in Islam.. O processo também funcionou em outra direção, à medida que culturas mais igualitárias foram islamizadas e adotaram a lei do “hijab”, a patrilinhagem e a sharia. A Indonésia viu um aumento muito acentuado do uso do véu no século passado, mesmo entre grupos matrilineares como os Minangkabau da Sumatra Ocidental, essa mudança aconteceu em menos de 50 anos.
E quando você perguntar (às esposas do profeta) qualquer coisa que você queira, fazei-o atrás de uma partição (em árabe: hijab) 33:53
É importante recuar da polarização do mundo historicamente cristão e do mundo historicamente muçulmano. Ambos se definem como sistemas superiores, não apenas em relação uns aos outros, mas também em relação às culturas que não pertencem a nenhuma das suas categorias, e aqui estou sinalizando toda uma gama de culturas indígenas. Muitas dessas sociedades foram submetidas à conquista e escravização, especificamente porque seus colonizadores as definiam como “pagãs” ou “kafirs”, um jogo legalmente justo.
Um padrão fundamental da colonização cristã e muçulmana envolvia definir mulheres indígenas como indecentes e perdidas com base em suas roupas, liberdade de movimento e outros valores positivos dessas culturas. Mulheres indígenas envergonhadas (com o estupro ou com as ameaças por trás disso) se viram forçadas a abandonar seus estilos históricos de vestimenta e assimilar-se à cultura dominante. Muitas vezes isso envolvia cobrir os seios, braços, pernas e até os cabelos; Essas mudanças foram especialmente dramáticas nos países tropicais. Assim, as perspectivas indígenas, sobre os códigos muçulmanos e cristãos de modéstia, raramente oferecem críticas que são levadas em consideração.
O véu levanta questões complexas de escolha. As famílias muitas vezes exigem que as mulheres, e às vezes as meninas, usem-no na crença de que essa seja a única maneira das mulheres decentes aparecerem em público. Mas para algumas mulheres muçulmanas, especialmente as mulheres da classe trabalhadora atual, a echarpe abriu uma mobilidade em lugares públicos que de outra forma lhes seriam negados, possibilitando que elas frequentassem a faculdade ou trabalhassem fora de casa. Pode ser uma escolha estratégica, bem como um mandato religioso (uma barganha com o patriarcado). Em alguns países, o véu é imposto pelo Estado (como na Arábia Saudita e no Irã) ou proibido pelo Estado (como na França, de acordo com uma lei recente dirigida a estudantes).
A coerção estatal viola claramente a liberdade de escolha em ambos os casos, mas essa questão nunca é simples. Não é apenas o Estado francês que obriga as mulheres a manterem seus cabelos descobertos, muçulmanos também impõem o uso do véu, atacando mulheres que usam roupas “não-islâmicas” nas ruas do norte da África, nos subúrbios de Paris e em outros lugares. A autodeterminação pode ser uma proposta complicada para jovens mulheres argelinas e francesas, que enfrentam desafios de política, identidade e lealdade à medida que avançam no mundo. Legislar comportamentos como roupas pessoais também é problemático para qualquer país que afirme ser uma democracia. Não há respostas fáceis aqui.
“O Brasil, assim como a França, é um Estado em que todas as religiões são permitidas e respeitadas, sendo que o poder político não está vinculado a nenhuma delas. É o que nos assegura a Constituição de 1988. Nossa Carta Magna, em seu art. 5º, inciso VIIII, estabelece que “ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”. O dispositivo, criado para evitar discriminações em razão de credo, deve ser aplicado, também, para evitar violações de direitos trazidas pelas próprias religiões aos seus seguidores.
Isso significa que não se pode confundir convicção pessoal com opressão; opção religiosa com imposição de subalternidade. Os usos e costumes de determinados grupos sociais, durante muito tempo, foram utilizados para justificar numerosas formas de privar as mulheres de seus direitos fundamentais. Hoje, essas distorções encontram-se desmascaradas internacionalmente.” Luiza Nagib Eluf
A coerção familiar permanece invisível para o mundo exterior, mas ocasionalmente explode na visão da mídia quando algumas atrocidades são cometidas, como as chamadas “mortes por honra”. Em 2007, um pai e um irmão canadenses assassinaram a adolescente Aqsa Parvez por se recusar a usar o véu. Em muitos outros casos, homens sem parentesco também impõem o uso do véu às mulheres na esfera pública. Em 2006, um grupo chamado “As Espadas Justas do Islã” jogou ácido no rosto de uma jovem por ela não usar véu e emitiu uma declaração dizendo: “Não teremos piedade de nenhuma mulher que viole as tradições do Islã e que frequentem cafés de Internet”. “ Em 2007, o grupo Tehreek-i-Islami ameaçou as mulheres paquistanesas com a mesma atrocidade se elas não cobrissem suas cabeças. Naquele ano, um atirador assassinou a ministra do bem-estar social, Zilla Huma Usman, porque ela não cobria a cabeça apropriadamente. Ataques semelhantes foram realizados na Caxemira em 2001, tendo como alvo mulheres que não se cobriam com um chador. Para o Iraque pós-invasão, Robert Fisk escreve que “em Basra, em 2008, a polícia relatou que 15 mulheres por mês estavam sendo assassinadas por violarem os “códigos de vestimenta islâmicos”. Estes são apenas alguns exemplos relatados (mas existem centenas de outros envolvendo prisões, multas, perseguições, inclusive praticados por outras mulheres).
No Afeganistão, as mulheres ainda enfrentam um perigo considerável ao rejeitar uma forma muito mais severa de cobertura que tem sido imposta desde o domínio do Talibã (assim como uma história anterior não muito distante). Embora o governo dos EUA tenha alardeado a “libertação” do Afeganistão do Talibã, fora de Cabul e de algumas outras áreas urbanas, a burca ainda é uma necessidade, especialmente para a maioria das mulheres que não têm acesso a veículos particulares. Por mais simbólica que seja a opressão da burca, o sequestro, o casamento forçado, as privações econômicas, de trabalho e educação são questões de sobrevivência mais urgentes para as mulheres afegãs.
O chador tem sido obrigatório para as mulheres iranianas há 40 anos. Mesmo no calor, as mulheres devem usar um casaco preto e comprido. A Guarda Revolucionária de Khomeini andava por aí atacando as mulheres nas ruas por um “mau hijab” (cobertura incompleta do cabelo), às vezes raspando seus batons com lâminas de barbear. Nos anos 30, a coerção foi para o outro lado. O último pai do xá decretou que todas as mulheres deviam tirar o véu. As mulheres, que tinham sido veladas e isoladas durante toda a vida, foram repentinamente compelidas a aparecer com as cabeças descobertas em público. Para muitas, era como se estivessem nuas, e isso as levou ainda mais para dentro do purdah. São contadas histórias de mulheres cujos maridos as carregavam em sacos nas costas quando tinham que viajar. É claro que outras mulheres acolheram a mudança como uma abertura das restrições sociais.
Ataturk impôs o mesmo decreto na Turquia, revertendo drasticamente o código de vestimenta obrigatório de velado para revelado. Nessas intensas polaridades, os corpos das mulheres são tratados como barômetros sociais e até como forragem política, com todos os tipos de agendas e implicações. Para Franz Fanon, o véu era apenas um símbolo da libertação nacional e da identidade indígena; (mas não era usado como hoje) o patriarcado não era uma consideração. Mas, há muito tempo, também era um costume estrangeiro, contrapondo-se às roupas indígenas africanas que os colonizadores estrangeiros consideravam indecentes. Estas mudanças profundas nas normas sociais podem ser recentes, como para as mulheres nuba no Sudão, ou de trezentos anos atrás — como para as mulheres hauça, ou voltar para o tempo da dominação romana muito antes do Islã — como no norte da Argélia.
As coisas podem mudar, mesmo sob condições difíceis — ou talvez por causa delas. Hoje, no Irã, muitas moças resistem à exigência do chador, permitindo que seu véu escorregue para trás, que o cabelo escape de seus lenços ou usando cores. Fundamentalistas no Paquistão criticaram Benazir Bhutto por ser igualmente cavalheiresca no modo como ela usava a dupatta. Para as mulheres muçulmanas ortodoxas no Ocidente, a resistência assume uma forma diferente: suportar olhares odiosos, observações desdenhosas e comportamentos discriminatórios. No clima de hoje, usar o véu envolve ser revistado regularmente nos aeroportos e pode significar perder um voo, ou pior, enfrentar sérios perigos pessoais nas ruas.
Nawal al-Saadawi observou que a “maquiagem é o véu pós-moderno”, apontando seu uso quase compulsório em certos contextos. Essa foi certamente a minha experiência crescendo no Centro-Oeste há muitas décadas. Permanece assim no local de trabalho, à vontade do empregador, segundo uma decisão da Suprema Corte da Califórnia em 2000. Os juízes confirmaram a demissão de Darlene Jesperson, barista de longa data no Harrah’s Casino em Reno, por recusar-se a usar batom, pó facial e rímel no trabalho. Esta decisão judicial também permite que os empregadores determinem o vestuário, o comprimento do cabelo e outras decisões de higiene para os seus empregados. Essas restrições têm ramificações especiais para as mulheres afro-americanas; os empregadores muitas vezes impedem que usem os cabelos em estilos naturais e culturais (ou simplesmente se recusam a contratá-las).
Aqui, a lógica da execução é econômica; dentro no contexto iraniano, é religioso. Lá, tanto o Estado quanto a família (e a sociedade) agem como executores. Cartazes em Teerã explicam que o “Mau hijab é como a prostituição. A falta do véu na sociedade significa falta de masculinidade dos homens.” Com esse tipo de controle, o batom parece ser uma liberdade para muitas mulheres iranianas, e muitas adotaram lenços pequenos ou estreitos para cumprir com a aplicação do véu no menor grau possível. A última reviravolta, como Ziba Mir-Hosseini escreve, é uma estratégia de reformulação da questão da escolha usando o raciocínio religioso: “No atual discurso reformista, o véu não é visto como um ‘dever’ da mulher, mas como seu ‘direito’”.
A compulsão das mulheres, seja legal (religiosamente) ou culturalmente aplicada, é o baluarte de qualquer sistema patriarcal. Embora a violência escancarada seja altamente eficaz, a pressão social, o ridículo e a doutrinação podem ser mais insidiosos porque são menos perceptíveis aos seus alvos. Os fundamentalistas religiosos também os empregam, mas estes são realmente os princípios impulsionadores do moderno patriarcado globalizado do império norte-americano. Do mercado de mídia de massa aos corredores do ensino médio até o local de trabalho, o padrão comercial é a exibição sexual fetichizada de mulheres jovens e magras que são obrigatoriamente loiras, depenadas e envernizadas. Para complicar ainda mais a análise, esse mesmo padrão também pode ser eficiente (em privado) mesmo em lugares onde existe a cobertura total do corpo como em Riade.
Tradução livre do texto de Max Dashu* em “Some thoughts on the Veil”
*Maxine Hammond (nascida em 1950), conhecida profissionalmente como Max Dashu, é um historiadora feminista radical americana, autora e artista. Suas áreas de especialização incluem iconografia feminina, direitos das mães e origens do patriarcado.
Muito obrigada por esse texto!!!!
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