Feministas radicais reduzem pessoas à sua genitália?

As alegações de que o feminismo radical reduz mulheres à sua genitália reside na má compreensão do papel que a própria genitália desempenhou — e desempenha — em nossa inserção nessa categoria chamada mulher.

Para o feminismo radical, não existe uma essência feminina, algo anterior e comum a todas as mulheres que as torna mulheres. Não.

Ser mulher é uma construção social e histórica. É o conjunto de estereótipos, expectativas, deveres e características — conjunto esse, como dissemos, construído histórica e socialmente, para seguir aos interesses do patriarcado — que nos é imposto antes mesmo de nascermos, e que vai nos acompanhar pelo resto de nossas vidas, moldando nossa personalidade, interferindo em nossas oportunidades, podando nossos direitos, atuando como filtro pra qualquer coisa que dizemos.

E isso tudo acontece porque, historicamente, as pessoas escolhidas pelo patriarcado para serem subordinadas foram… as fêmeas — os seres humanos do sexo feminino — , devido à sua capacidade reprodutiva.


Imaginem uma sociedade bastante rudimentar, já organizada em classes (para não entrarmos no debate acerca do que surgiu primeiro — o patriarcado ou o capitalismo). O patriarca tem várias mulheres a seu dispor. Uma delas fica grávida e dá à luz gêmeos.

O destino de uma das crianças será, inexoravelmente, ser vendida para uma comunidade aliada, ou trocada por terras, ou oferecida para outra comunidade como proposta de aliança. Ou, ainda, ter suas capacidades físicas exploradas.

O destino da outra criança será ajudar nos trabalhos braçais; ela será criada para proteger a propriedade de seu pai, e mantê-la em suas mãos, em sua linhagem. Essa criança específica não será trocada, nem vendida, nem tratada como uma propriedade.

E o critério utilizado para definir os destinos dessas duas crianças, filhas da mesma mãe, nascidas com minutos de diferença, foi… a genitália.

É a teoria que reduz as pessoas à genitália?


Na Índia, não é comum lermos notícias de crianças recém-nascidas sendo descartadas, abandonadas ou mortas — isso quando chegam a nascer; muitas são abortadas. Adivinha o sexo dessas crianças todas?

É a teoria que reduz as pessoas à genitália?

Gráfico mostrando a redução do número de meninas de 0 a 6 anos na Índia

Na China, as mulheres eram forçadas a quebrarem seus pés e os amarrarem — os “pés de lótus” — porque isso era um ideal de beleza a ser atingido. Quanto menor o pé, mais sexualmente atraente a mulher. Para isso, os pés eram quebrados quando se era ainda criança.

É claro que ter os pés quebrados e deformados dificultava muito que as mulheres andassem, sem falar da dor. Assim, elas se movimentavam bem devagar, com passos curtos. (Daí nasce o estereótipo que temos da forma como as mulheres chinesas andam)

É a teoria que reduz as mulheres à genitália?

Em diversos países da Ásia, da África e do Oriente Médio — países com cultura predominantemente muçulmana — as mulheres têm sua genitália mutilada. Em metade dos países em que essa prática é presente, essa mutilação acontece antes dos 5 anos. Consiste em cortar fora o clitóris e os grandes lábios, para que a mulher não sinta prazer durante atividades sexuais. Isso a torna mais valiosa e respeitável enquanto esposa.

É a teoria que reduz as mulheres à sua genitália?

Uma a cada três meninas de países em desenvolvimento vão estar casadas antes dos 18 anos. Mais de setecentas milhões de meninas estão casadas ao redor do mundo inteiro. Em alguns países, a taxa de meninas casadas chega a mais de 50%.

Mas é a teoria que reduz mulheres à sua genitália.

Existe um padrão mundial e histórico de algumas violências dirigidas especificamente a meninas e mulheres. Violências que não atingem meninos e homens.

A proposta do feminismo radical, então, é se debruçar sobre esses acontecimentos e essas manifestações materiais e se perguntar: por que nós? Por que só com as mulheres? O que nos torna tão diferentes a ponto de ter servido de base, historicamente, pra tanta opressão?

Tem de ser um fator comum a diversas sociedades, porque presente em todas as sociedades patriarcais. Tem de ser um fator que não seja exclusiva de um momento histórico específico, porque aconteceu ao longo de toda a história. Tem de ser um fator desligado de cultura, porque presente em diversas.

Assim, chegamos às diferenças físicas (e consequentemente fisiológicas).


As mulheres foram primeiramente exploradas por conta de sua capacidade reprodutiva. Somente elas engravidavam; os homens não. Todas as pessoas que engravidavam possuíam determinada conformação corporal. Então, todas as pessoas com corpo X foram colocadas em um mesmo grupo. E esse grupo passou a sofrer restrições e opressões.


O feminismo radical, portanto, não reduz as pessoas à sua genitália. Quem faz isso é a própria sociedade, é o próprio patriarcado; o feminismo apenas torna isso visível e apresenta essa hipótese como explicação à situação feminina.

Agora podemos parar de disseminar ideia rasa de quem não leu nem a introdução d’O Segundo Sexo e se acha na autoridade de criticar alguma coisa. Não é?