O olhar masculino estava operando livremente durante a fase de trajes de banho do Miss Peru 2018, enquanto a câmera fazia uma panorâmica no corpo das concorrentes, começando pelos pés. A cena inteira era bizarra — as mulheres desfilavam pelo palco usando biquínis dourados no melhor de seus olhares sedutores. Em um dos lados do palco, a cantora peruana Leslie Shaw cantava uma música emotiva sobre o empoderamento feminino chamada “Siempre Mas Fuerte” (Sempre mais forte). “Vencendo medos, quebrando silêncios; sentindo meu poder como mulher,” dizia a música.
A Organizadora do evento e ex-Miss Jessica Newton introduziu a fase de trajes de banho com uma propaganda pseudofeminista:
“Toda mulher é única e valiosa. Ela é dona de seus pensamentos, suas ações, seus sonhos e mais importante, de seu corpo. Ela é livre para usar, fazer, e dizer o que quer que ela deseje porque ela é a dona de sua própria vida. Ninguém tem o direito de rotulá-la, insultá-la, machucá-la, e muito menos, de tocá-la”.
Sem nenhum toque de ironia, ela continua: “E agora, o concurso de trajes de banho!”
Mas mesmo esse não foi o aspecto mais absurdo desse segmento. Imagens de matérias jornalísticas foram projetadas em uma enorme tela atrás das concorrentes de biquíni: “Homem estrangula mulher com um fio;” “Homem assassina mulher e seu neném”, “Perseguidor esfaqueia mulher grávida e foge”, “63 mulheres são estupradas diariamente”, “Homem bêbado espanca a esposa até a morte.”
Essas não era apenas manchetes, mas também histórias de mulheres e meninas abusadas ou assassinadas por homens. No fim da competição de biquíni, as competidoras estavam posicionadas na frente de uma imagem de uma mulher severamente machucada chamada Lady Guillen.
Em 2015, o Departamento de Justiça peruano sentenciou o ex-namorado de Guillen, Ronny Garcia, a quatro anos de prisão, mas suspendeu sua sentença, o que significa que ele não cumpriu nenhum tempo preso, apenas pagando uma fiança. Ele tinha sido acusado de sequestro e violência doméstica. Quando Guillen conseguiu escapar de Garcia, ela tinha ficado sob cárcere privado por vários meses. Na noite em que ela fugiu, Garcia tinha arrancado sua sobrancelha e a espancado tão terrivelmente que ela não conseguia abrir o olho esquerdo. A sentença provocou ultraje no país e contribuiu para a conscientização sobre a impunidade da violência masculina. Ainda assim, o contexto da violência que mulheres como Guillen e muitas outras enfrentam não foi abordado de forma alguma no concurso Miss Peru. A audiência nem soube o nome das mulheres cujos ataques foram manchetes — as mulheres que foram usadas como atrativos nesse espetáculo.
As referências à violência masculina contra as mulheres foram além da competição de trajes de banho. Menos de quatro minutos de evento, as mulheres se apresentavam, diziam a província que estavam representando e, ao invés de apresentar suas medidas (como acontece nos concursos de beleza), apresentaram as estatísticas de violência contra as mulheres no Peru.
“Meu nome é Camila Canicoba e eu represento o departamento de Lima. Minhas medidas são 2,202 casos de feminicídio reportados nos últimos nove anos no meu país”, disse uma das competidoras. “Eu represento a província constitucional de Callaomy e minhas medidas são: 3,114 mulheres vítimas do tráfico de pessoas até 2014,” anunciou a vencedora do Miss Peru 2018 Romina Lozano.
Para muitas de nós no movimento feminista, concursos de beleza são uma lembrança do que deveria ser uma época acabada — um tempo em que era socialmente aceitável objetificar abertamente as mulheres. Mas o que o concurso Miss Peru deixa claro é que essa época é agora.
Enquanto alguns estão num esforço de modernizar essa prática antiquada, a existência de concursos de beleza demonstra que vivemos em uma sociedade que vê e trata mulheres como inferiores, como mercadorias. As manchetes violentas apresentadas durante o Miss Peru 2018 justapostas com um evento decididamente sexista não foram concebidas para confundir a audiência ou parecer hipócrita, mas para (presumidamente) conscientizar. Na verdade, muitos consideraram o feito um “protesto feminista”.
A contradição nessa tentativa de lucrar com o movimento que luta para acabar com a violência contra as mulheres e que varre a América Latina e o Caribe deveria ser óbvia, mas mídia de massa tratou a questão de forma acrítica. Um artigo de Rachel Epstein trazia o título na Marie Claire, “Essas competidoras do Miss Peru quebraram completamente as regras tradicionais do concurso e isso é muito radical,” e declarou que esse ato “mudou completamente o jogo.” Que jogo? O patriarcado? Como listar incidentes da violência masculina enquanto se objetifica mulheres muda alguma coisa para mulheres em geral?
Muitos veículos feministas da mídia também falharam em ligar os pontos e entender como promover práticas objetificantes se conecta com a violência contra as mulheres.
Na Bust, a escritora Molly McLaughlin argumentou que o fato desse “protesto” ter acontecido dentro de um concurso de beleza é um motivo para celebração. Ela escreve:
“Um concurso de beleza é um dos últimos lugares que você esperaria ver um protesto feminista. Mas isso é exatamente o que aconteceu no concurso Miss Peru 2018, quando as competidoras usaram a oportunidade para chamar atenção para os níveis extremos de violência contra as mulheres nesse país. Na fase do concurso em que elas normalmente informariam suas proporções corporais para a câmera e juízes, todas as 23 mulheres deram estatísticas sobre feminicídio. Depois, na fase dos trajes de banho, imagens de manchetes de jornais sobre mulheres desaparecidas e assassinadas foram projetadas na tela atrás das competidoras.”
McLaughlin considerou esse protesto patrocinado pelo concurso como algo “particularmente subversivo considerando a objetificação e a imposição de padrões eurocêntricos que concursos de beleza geralmente reforçam em países como Peru.” Mas mesmo no Sul globalizado, as mulheres que são admitidas para competir nesses concursos de beleza devem se encaixar em todo padrão de beleza restritivo e colonialista. Afinal de contas, os concursos de beleza foram criados e são exportados pelo Norte globalizado, e mesmo que a cor de pele das participantes possa variar, definições de beleza eurocêntricas permanecem; como a ênfase em narizes pequenos, magreza, e sedoso cabelo liso.
Mesmo que o tal protesto tenha sido reportado como uma iniciativa das competidoras, os organizadores e apresentadores do concurso deixaram claro que o “tema” esse ano seria a violência contra as mulheres, explicando repetidamente que o concurso inteiro era dedicado ao “respeito às mulheres e à prevenção da violência.”
Não foi por coincidência. Nos últimos anos, o feminismo na América Latina e Caribe centrou-se explicitamente na questão da violência contra as mulheres. No último Outubro, mais de 100,000 pessoas foram às ruas da Argentina (onde uma mulher é assassinada a cada 36 horas) para protestar o terrível feminicídio de Lucia Perez Montero. Protestos similares se multiplicaram ao redor do continente no que foi chamada “Quarta-Feira Negra.”
O movimento astuto dos organizadores do Miss Peru foi apresentar um desfile de mulheres listando fatos descontextualizados sobre a violência contra as mulheres e o evento em si, como parte de um movimento contra a epidemia social. Essa jogada garantiu que o concurso viralizasse e parecesse moderno, apesar do espetáculo em geral ser intrinsecamente baseado na subordinação e subserviência das mulheres.
Como a escritora espanhola Barbijaputa argumenta no El Diario, atestar fatos sobre a violência contra a mulher em um concurso de beleza não muda a atitude de ninguém sobre a violência ou sobre os direitos das mulheres. Ela escreve:
“A vasta maioria da sociedade ainda pensa que o motivo [da violência] é a biologia: que homens não conseguem controlar seus ‘instintos sexuais’ e mulheres não podem se defender porque são mais fracas. Atestar fatos sobre violência contra nós faz parecer que isso é inevitável: ‘É assim que as coisas são’, ‘homens são loucos’, ‘Eu queria que isso não tivesse acontecido, mas não posso lutar contra a natureza.’”
Em outras palavras, sem entender o porquê de homens cometerem violência contra as mulheres e responsabilizar o sistema que justifica e normaliza a violência masculina, nós não podemos combatê-la.
Um verdadeiro ato subversivo teria sido as participantes terem feito afirmações que desafiassem a objetificação das mulheres. Barbijaputa sugere alguns roteiros alternativos para as competidoras dos concursos:
“Eu sou a Miss Tarapoto, e mulheres e garotas não morrem; cada uma delas é morta por um homem. Homens são educados para se verem superiores a nós, enquanto estamos sendo avaliadas pela largura de nossos quadris.”
Ou talvez,“Eu sou Miss Cuzco e vir aqui em traje de banho para que homens possam julgar se eu sou bonita ou não é misógino e misoginia mata.”
Ao invés disso, o que Miss Peru apresentou foi pouco além de uma estratégia de marketing que, no fim, ainda serve ao patriarcado. Os organizadores do evento e a Latina, o canal de TV que patrocina e exibe o concurso, não têm que fingir que se importam com os direitos ou a libertação das mulheres em nenhum outro dia do ano.
A escritora peruana Lara Salvatierra aponta que a Latina tem “uma linha editorial misógina” e rotineiramente exibe conteúdos que objetificam as mulheres, “incluindo um programa de TV que ridiculariza mulheres e garotas indígenas.”
Ela escreve:
“O fato ter viralizado revela as diretrizes do sistema patriarcal: as mulheres podem demandar justiça, desde que não tentem escapar dos moldes e papéis de gênero que o sistema aprovou para elas. O patriarcado vai sempre procurar por maneiras de naturalizar sua existência. Não tem nada de empoderador em modelar de biquíni para entreter os mesmos misóginos que depois nos violam, nos comercializam e nos matam.”
Em um concurso de beleza, mulheres são apresentadas para serem comidas com os olhos e aproveitadas por uma hora ou duas, como lindos objetos. Uma vez objetificadas, elas são postas em um processo em que, uma por uma, são eliminadas da competição. Em outras palavras, concursos de beleza mostram as mulheres como sendo intrinsecamente dispensáveis. Esse mesmo processo de pensamento legitima o descarte de mulheres sobre o patriarcado, por meio da violência masculina.
O que a audiência é levada a sentir ou pensar quando lêem, “Homem estrangula mulher com um fio”, enquanto uma jovem desfila pelo palco em um biquíni, buscando desesperadamente a aprovação masculina e aderindo aos padrões patriarcais de beleza e complacência?
Como uma armação de marketing capitalista pode ter sido interpretada como empoderadora e libertadora para as mulheres é além da minha compreensão. Mas como aponta Salvatierra, esse tipo de “protesto feminista” é o tipo de ativismo que o sistema patriarcal favorece acima de todos os outros: o tipo que mulheres vocalizam sua oposição à opressão, mas o fazem dentro dos limites de um sistema totalmente construído para isso.
Com o avanço do feminismo na sociedade, a procura por concursos de beleza esteve em declínio por décadas. Mais e mais pessoas compreenderam que há algo fundamentalmente sexista sobre a ideia de se julgar mulheres baseado em quão bem elas são capazes de performar os rituais de feminilidade. É como se os organizadores de concursos do Peru tivessem percebido isso e decidido usar um assunto feminista para aumentar seu número de espectadores.
Para erradicar a violência masculina nós devemos acabar com todas as instituições que a sustentam e a legitimam. Baseando-se no interesse em declínio, talvez os concursos de beleza estejam entre os finalistas para serem descartados em breve. Imagino que essa seja uma vitória feminista, no fim das contas.