Os povos indígenas constituem talvez o grupo mais vulnerável do Brasil. Vítimas de um genocídio sistemático desde a ocupação europeia do Brasil em 1500, estima-se que atualmente a população indígena represente menos de 1% da população brasileira (apesar de esse número provavelmente ser maior, já que existem milhares de descendentes de indígenas que não se reconhecem como tal por não serem aldeados ou por terem se alienado de sua cultura há gerações). O último censo indígena feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística revelou a presença de menos de 900mil indígenas espalhados pelo Brasil, a sua maioria concentrados nas regiões Nordeste e Norte, sendo que se registraram 305 etnias e 274 línguas diferentes (constatando-se inclusive que 17,5% da população indígena não fala a língua portuguesa).
Os casos de violência contra mulheres indígenas têm aumentado. É difícil saber se a violência real aumentou ou se mais casos têm chegado ao conhecimento do poder público, mas as denúncias dispararam entre 2014 e 2014 — como reflexo, o número de suicídios entre indígenas também aumentou. No entanto, os dados relativos à violência contra a mulher indígena, coletados pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), são de difícil uso. Isso porque trazem informações superficiais sobre as ocorrências, deixando de detalhar questões como faixa etária das vítimas, etnia e localidade. Com poucos dados, a atuação do Poder Público se torna ainda mais difícil, já que não se tem como determinar qual é o grupo em risco e quem são os agressores e por quê. Há muita diferença em termos de políticas públicas para casos de mulheres que sofreram agressões (especialmente sexuais) no contexto de disputas por terra e para casos de mulheres indígenas vitimizadas como retaliação por não estarem vivendo em seus territórios tradicionais.
Assim como mulheres negras, as mulheres indígenas acumulam fatores de opressão e de vitimização. Sofrem por serem indígenas — que, independentemente da etnia, são marginalizados e discriminados até pelo poder público brasileiro — e por serem mulheres — o que significa exploração sexual, violência sexual, violência doméstica e outros tipos de violência aos quais mulheres estão sujeitas apenas por serem mulheres. No Brasil, assim como diversos outros países, as mulheres das populações nativas estão particularmente suscetíveis à esterilização forçada ou involuntária — muitas sequer sabem que são esterilizadas — e a terem suas crianças retiradas de seus cuidados pelo próprio Estado.
Também existe grande dificuldade em se ter acesso ao que realmente acontece nas tribos indígenas porque as próprias vítimas se veem impelidas a não denunciarem tais violências, geralmente por dois motivos principais: a culpabilização da mulher indígena feita por parte da sociedade não-indígena (que culpa o modo de vida indígena e a natureza da mulher indígena pelas violências sofridas, com o discurso frequente de que mulheres indígenas têm natureza sexual “mais aberta”) e a dificuldade em apontar violências cometidas por seus semelhantes. São fortes as evidências de que as violências a que estão submetidas as mulheres indígenas são majoritariamente relacionadas a agentes externos — capangas de fazendeiros e militares que são responsáveis por estupros, além da invasão de suas terras e expulsão, o que gera imenso sofrimento psíquico resultando em altos índices de estupro e de alcoolismo entre aldeados. A impunidade dos agressores de mulheres indígenas (na verdade, de indígenas, de forma geral) também contribui, e muito, para seu silenciamento.
Ou seja: de forma geral, o silêncio prevalece.
Mulheres indígenas ativistas, quando questionadas, defendem que a criação de políticas voltadas às mulheres indígenas deve, necessariamente, levar em conta os aspectos específicos de localização e de etnia, pois criticam o processo de imposição de certo desenho de políticas por parte do Estado — já que isso se assemelharia muito ao próprio processo de colonização. A elaboração conjunta de políticas públicas também evitaria que o poder público fosse etnocêntrico (para não dizer xenófobo), pensando soluções para o que não é realmente um problema. Assim, mulheres indígenas reivindicam sua própria autonomia, seu próprio fortalecimento, pela efetivação de direitos básicos (como o direito a saúde, considerando suas especificidades; a redução da mortalidade materna; o acesso humanizado ao SUS; a grantia de segurança alimentar e nutricional) ao mesmo tempo em que se reconhece os saberes tradicionais das próprias mulheres e suas tribos, evitando-se a colonização de seus corpos e de suas tradições.
Naturalmente, considerando que no Brasil encontramos mais de 300 etnias, toda política pública que não seja específica, considerando as reivindicações das próprias mulheres indígenas, será pouco eficaz e pouco eficiente. Começando por questões linguísticas e conceituais — sobre o que é violência, o que caracteriza violência — até questões práticas de direcionamento de recursos, as políticas para mulheres brasileiras, de forma geral, são pensadas numa lógica branca e urbana.
Por exemplo: a principal lei brasileira de proteção à mulher, a Lei Maria da Penha, possui diversos limites quanto à sua aplicação junto a mulheres indígenas. São limites para a efetivação da proteção a essas mulheres (1) a dificuldade de acesso a informação, (2) a dificuldade física/geográfica de fazer denúncias, e (3) as diferenças entre as lógicas e dinâmicas sociais indígenas e urbanas. A lógica de punição das sociedades brancas também não condiz com a lógica defendida em muitas sociedades indígenas, e as mulheres preferem que seus agressores — mesmo os próprios homens indígenas — sejam “julgados” internamente. Existe muito medo de a intervenção das “leis brancas” desestruturarem as sociedades indígenas.
Assim, pode-se concluir que o principal entrave para a efetivação de direitos — de todos os tipos — para as mulheres indígenas brasileiras passa diretamente pelo respeito de sua autonomia decisória, evitando-se, principalmente, a universalização da “mulher indígena”, reconhecendo seus saberes tradicionais e respeitando sua reivindicação por uma “jurisdição” própria.
FONTES
Ana Beatriz Rosa. Por que a violência contra mulheres indígenas é tão difícil de ser combatida no Brasil. Huffington Post, 25 de novembro de 2016. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Not%C3%ADcias?id=172326.
Secretaria de Políticas para as Mulheres. Mulheres indígenas querem políticas diferenciadas. Site do Governo Federal, 23 de outubro de 2013. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2013/10/mulheres-indigenas-querem-politicas-de-saude-diferenciadas.
Conselho Indigenista Missionário. Relatório Violência contra os povos Indígenas no Brasil — dados de 2016. Disponível em: https://www.cimi.org.br/pub/relatorio/Relatorio-violencia-contra-povos-indigenas_2016-Cimi.pdf.
Juliana Radler. Mulheres indígenas dizem basta à violência e à invisibilidade. Blog do Rio Negro, Instituto Socioambiental, 23 de maio de 2018. Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-rio-negro/mulheres-indigenas-dizem-basta-a-violencia-e-a-invisibilidade.
Lívia Gimenes Dias da Fonseca. Despatriarcalizar e decolonizar o estado brasileiro — um olhar pelas políticas públicas para mulheres indígenas. Tese de doutorado, apresentado ao Programa de PósGraduação em Direito da Universidade de Brasília. Universidade de Brasília, Brasília : DF, 2016.
Lígia Simonian. Mulheres indígenas vítimas de violência. Papers do NAEA, n. 30, Novembro de 1994. Disponível em: http://www.naea.ufpa.br/naea/novosite/index.php?action=Publicacao.arquivo&id=94.
Obrigada por mais um texto incrível, companheira. Avante! 💜
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