mulher indígena feminismo
The Acampamento Terra Livre - ATL (in English: Free Land Camp), happening from April 24th to 26th, 2019, is the main and largest annual assembly of indigenous leaders coming from the five regions of Brazil. Over 4.000 indigenous people, gathered in Brasília, seek to exchange cultural experiences and unify their resistance and fight for their rights, such as the demarcation of their territories, access to health, education and social participation for the many Indigenous Peoples living in Brazil. The ATL has been happening for 15 years in a peaceful way, aiming to give visibility to the indigenous fight for their constitutional rights. O Acampamento Terra Livre, que acontece de 24 a 26 de abril de 2019, em Brasília, é o maior e principal encontro anual de lideranças indígenas vindas das cinco regiões brasileiras. O objetivo dos mais de 4 mil indígenas é trocar experiências culturais e unificar a resistência e a luta pelos seus direitos, como demarcação de suas terras, acesso à saúde, educação e participação social para todos os Povos Indígenas quem vivem no país. O ATL vem acontecendo há 15 anos de maneira pacífica, com o intuito de trazer visibilidade à luta dos indígenas por seus direitos constitucionais.

É preciso descolonizar as lutas

Os povos originários estão sob ataque, não é de hoje, não foi de ontem, é de sempre. Estão há 500 anos resistindo e lutando pelos seus próprios. Uma parcela da sociedade brasileira, o grande capital, o agronegócio, enxerga o índio, seu conhecimento, sua forma de vida como um problema e não param de atacá-los. Ao longo desses anos, esse projeto se institucionalizou e virou programa oficial desse novo desgoverno que prega a privatização de tudo, todos, 100%. Se possível, o Brasil inteiro. Entregar tudo ao capital privado transformando nossa soberania em supervisão do Brasil. Parque nacional, reserva ecológica, todas as terras que têm uso especial estão na mira desse governo. E os índios continuam morrendo e resistindo. O Brasil não é uma nação com maioria indígena, em 2010 existia 305 povos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — IBGE — e quase 900.000 indígenas, segundo a Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — destes, 324.834 residentes em cidades e 572.083 em áreas rurais — as mulheres indígenas chegam aos 448 mil. Mas, uma coisa e certa: os coletivos ameríndios, com suas populações comparativamente modestas, suas tecnologias relativamente simples, mas abertas a agenciamentos sincréticos de alta intensidade, são uma figuração do futuro, não uma sobrevivência do passado (Viveiros de Castro e Danowiski, 2019).

Emerge nesse cenário necropolítico do país, dentro desse estado de exceção, o sujeito político mulheres indígenas com suas pautas próximas das pautas feministas, em especial, do feminismo pós-colonial[1]. Nos últimos anos também aumentou a institucionalização das organizações políticas de mulheres indígenas e o debate sobre os direitos específicos dessas mulheres (Matos, 2012; Sacchi, 2003). Ao mesmo tempo em que são protagonistas nas discussões e reivindicações mais gerais dos povos originários — como a luta pela demarcação das terras — as mulheres inserem nos debates de decisões e políticas públicas temas como violência familiar e interétnica, o acesso aos meios técnicos e financeiros para a geração de renda, a saúde reprodutiva, o combate ao racismo, a soberania alimentar, a participação das mulheres nas decisões de políticas dos governos, entre outros (Voz das Mulheres Indígenas, 2018; Verdum, 2008). Aproximar-se à realidade dos povos originários , realidade tão presente na história da sociedade brasileira, mas ao mesmo tempo desconhecida e abordada de formas tantas vezes estereotipadas, exige cuidados.

Cronologia do movimento das mulheres indígenas

No Brasil, as mulheres começaram a se organizar em associações exclusivas de mulheres indígenas nos anos 80, com algumas organizações de mulheres amazônicas (AMARN e AMITRUT), e continuaram nos anos 90, sendo criadas em 2002, por ocasião de um primeiro encontro de mulheres indígenas — o Departamentos da Amazônia, o Departamento de Mulheres Indígenas da Coordenação de Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (DMI/ COIAB). E a partir daí, surgiram organizações de mulheres de povos indígenas do Nordeste e dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), da região sul e centro-sul (ARPIN-SUl).

No meio dessa articulação política progressiva, duas mulheres, Roane Kaingang e Miriam Terena, solicitaram, em 2002, a então presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), (I) uma agência estatal que fosse responsável pela gestão da vida indígena no país; (II) a realização de um “workshop” no qual mulheres de povos indígenas de todas as regiões pudessem obter um vocabulário com conceitos da teoria de gênero e (III) instruções sobre direitos humanos, direitos dos povos indígenas e direitos da mulher, especialmente de mulheres indígenas e Políticas Públicas que elas poderiam usar. O pedido foi urgente porque eram as vésperas da suposta vitória do presidente Lula, do Partido dos Trabalhadores, em seu primeiro mandato, e pretendia-se concluir a reunião com uma lista de demandas para apresentá-lo. Dessa forma, foi organizado um “Workshop de Treinamento e Discussão sobre Direitos Humanos, Gênero e Políticas Públicas de uma semana, a portas fechadas, em um alojamento nos arredores de Brasília, com 41 mulheres de aldeias de todas as regiões do país sob a supervisão da pesquisadora feminista pós-colonial Rita Laura Segato.

Concluída a experiência do primeiro workshop, o livreto[2] resultante conseguiu reivindicar com sucesso, em frente ao Ministério do Planejamento, fundos para continuar com uma sequência de reuniões de mulheres indígenas de diversas aldeias, que depois foram feitas por região. Em 2007, a Funai criou a Coordenação de Mulheres Indígenas, que em 2008 foi transformada em Coordenação de Gênero e Assuntos Geracionais (Coger), incluindo a gestão de questões de juventude indígena, e em 2012 foi ampliada novamente para incluir a gestão de Mobilização Social e agora é chamada Coordenação de Gênero, Assuntos Geracionais e Mobilização Social (Cogen).

Em 2006, a lei de María da Penha contra a violência doméstica foi ratificada no Brasil. Também em 2006, é realizada uma reunião nacional de mulheres indígenas em Brasília, com a participação de 28 mulheres de várias aldeias em todas as regiões. A partir de 2007, uma nova série de oficinas regionais ocorreu com foco na disseminação da nova lei entre as mulheres indígenas. A partir de 2011, e até agora, começam as experiências, com uma primeira reunião piloto no mesmo ano para tentar alcançar os homens das sociedades indígenas e conquistá-los como aliados na estratégia de redução da violência, como as mulheres indígenas haviam solicitado repetidamente.

Com a institucionalização das demandas das mulheres indígenas, lideranças indígenas femininas passaram a frequentar, cada vez mais, reuniões nacionais e internacionais, o que propiciou a consolidação e a articulação de suas organizações. Muitas organizações de mulheres indígenas em todo o Brasil têm sido também fortemente fortalecidas e estão em constante diálogo com instituições não indígenas governamentais e não governamentais (Sacchi, 2003). Destaca-se o projeto Voz das Mulheres Indígenas, de iniciativa de lideranças indígenas mulheres e implementado em 2015 pela ONU Mulheres Brasil em cooperação com a Embaixada da Noruega, que apresenta o objetivo de fortalecer a atuação de mulheres indígenas em espaços de decisão dentro e fora de suas comunidades e a elaboração de uma agenda que defenda as necessidades e interesses das mulheres indígenas em consonância com a diversidade entre os povos e de seus interesses comuns.

Sônia Guajajara, primeira indígena em uma pré-candidatura presidencial, está à frente da coordenadoria executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), ela é uma das maiores lideranças ambientais do país.

Pela primeira vez em 2016, apoiadas pela ONU, mulheres lideranças indígenas de diferentes etnias do Brasil conquistaram espaço para tratar sobre as reivindicações e demandas das mulheres indígenas em plenária durante o 13º Acampamento Terra Livre (ATL), evento que reuniu mais de 3 mil indígenas de todo o país em Brasília. Já, entre 9 e 14 de agosto de 2019, ocorreu a 1ª Marcha das Mulheres Indígenas que levou a Brasília cerca de três mil mulheres de origem indígena vindas de todas as regiões do Brasil. Com o tema “Território: nosso corpo, nosso espírito”, a marcha coloca em pauta o que é ser mulher nas comunidades indígenas atualmente. A marcha foi organizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e contou com um financiamento coletivo para ser viabilizada.

Primeira Marcha das Mulheres Indígenas no Brasil, 2019

Desde o primeiro workshop inicial, realizado em 2002, a pesquisadora Rita Laura Segato conseguiu tipificar as violências atualmente sofridas pelas mulheres indígenas, e esses tipos foram repetidos quase de forma idêntica em todas as reuniões subsequentes, relatadas pelas mulheres das várias regiões e associadas precisamente à localização dos territórios indígenas: aldeias nas regiões fronteiriças com a presença de destacamentos militares vigiando a soberania nacional, aldeias nas regiões fronteiriças afetadas pelo narcotráfico, aldeias afetadas por tráfico de traficantes, vilarejos próximos a locais onde as drogas são processadas, vilarejos localizados em santuários naturais remotos, vilarejos vizinhos ou sobrepostos a áreas de proteção ambiental, vilarejos em regiões de expansão do agronegócio, vilarejos em regiões com atrações empreendimentos turísticos e hoteleiros, aldeias em regiões de pré-depósitos de pedras preciosas, aldeias em regiões de depósitos minerais de interesse estratégico, aldeias em regiões próximas a depósitos de hidrocarbonetos, aldeias em regiões onde as usinas hidrelétricas são projetadas ou construídas, aldeias perto de rotas nacionais e estaduais, aldeias localizadas em periferias urbanas ou abrangidas para as cidades em sua expansão, comunidades “desaldeadas” e índios urbanos (Segato, 2016).

1. Aldeias em regiões fronteiriças com a presença de destacamentos militares que guardam a soberania nacional: atração enganosa pelo casamento e abandono após a transferência de militares; atração pela prática da prostituição por meio de engano; atração pelo serviço doméstico escravo ou semi-escravo nas casas de oficiais ; introdução do olhar pornográfico e alienador no corpo da mulher índia; violações; violência doméstica exacerbada pela presença perturbadora e pressão exercida na vida cotidiana por destacamentos militares nas imediações; influência nos homens indígenas dos modelos vívidos da cultura masculina dos destacamentos militares.

2. Aldeias localizadas em santuários naturais: cerco por missionários cristãos tecnologicamente bem equipados que, desde a primeira metade do século XX, têm acesso privilegiado e exclusivo a essas regiões e, com sua entrada prolongada e forçada na vida da aldeia, transformam disruptivamente as relações de autoridade e padrões cosmológicos que servem como referência às relações de gênero; consequente interferência nas concepções de sexualidade e na vida de um casal; introdução perturbadora e prejudicial ideias de pecado e malignidade associadas ao corpo e à sexualidade feminina, com consequentes preconceitos morais misóginos e homofóbicos que afetam a posição de mulheres e homossexuais no contexto comunitário; introdução de equivalência, de cunha ocidental, entre acesso sexual e “dano”.

3. Aldeias em situação de isolamento voluntário ou com pouco tempo de “contato”, sob o foco do agronegócio e grandes projetos hidrelétricos: a vida em constante tensão e alerta para a fuga, bem como o medo constante de ser capturado pelas empresas, leva o grupo e, principalmente, as mulheres a não conceber mais filhos, colocando em risco de extinção a sociedade;

4. Aldeias em regiões com atrações turísticas e empreendimentos hoteleiros: intrusão nos territórios e consequente introdução de fatores de estresse na vida comunitária e doméstica; recrutamento de povos indígenas para a construção de estabelecimentos hoteleiros e serviços em suas instalações quando já estão em operação, com o consequente abandono de suas atividades habituais e exposição a uma economia comercializada e modelos de gênero fora de seus padrões de existência; forte introdução da moeda e fetichização e mercantilização dos componentes do modo de vida indígena e seu ambiente natural, incluindo a comercialização da imagem corporal de mulheres e homens indígenas, com a consequente objetificação dos corpos; recrutamento de mulheres indígenas para prostituição.

5. Aldeias nas regiões fronteiriças afetadas pelo tráfico de drogas e aldeias afetadas pelo tráfico de traficantes: — recrutamento de jovens para o tráfico e o impacto dessa forma de empoderamento masculino nas relações de gênero; oferta de enriquecimento e novas formas de controlar a vida social por meio do dinheiro e consequente impacto negativo dessa forma de empoderamento masculino nas relações de gênero; fornecimento de armas para o exercício do controle territorial e exacerbação da violência, com consequente impacto nas relações de gênero e na vida doméstica; treinamento e proliferação de quadrilhas ligadas ao tráfego com seus próprios códigos e práticas de competitividade e espetacularização da crueldade com base no estilo máfia de masculinidade; introdução disruptiva de armas e drogas na aldeia, associada ao controle territorial e à demonstração de capacidade violenta com consequente vitimização de mulheres; aplicação de punições e tratamento cruel para fins exemplares de controle jurisdicional e afirmação viril dos chefes; proliferação de violações no espaço público e violações domésticas; rompimento e reversão da hierarquia da autoridade tradicional com base em faixas etárias, com consequente redução da capacidade de controle e mediação pelas autoridades indígenas; violência doméstica agravada pela introdução de um novo modelo de virilidade característico das organizações da máfia.

6. Aldeias próximas a rotas nacionais e estaduais e grupos indígenas sem território próprio acampados na beira da estrada: intrusão e desarticulação dos padrões de vida da comunidade pela sociedade não indígena, causando estresse e falta de orientação nas relações de gênero e família; proximidade de bordéis e ações de tráfico de pessoas e tráfego; introdução do olhar objetivador e pedagogia do corpo-objeto; atração pelo alcoolismo e drogas, com seu consequente efeito violento e quebra de códigos; em condições de falta, falta de acesso à saúde e educação, alimentação, água e saneamento básico, nos grupos acampados de povos indígenas sem território próprio, a autoridade parental sofre a perda da guarda de seus filhos devido que as famílias são acusadas por agentes estatais de abuso ou falta de cuidados; em vez do estado, os pais são punidos com a perda de suas filhas e filhos, que são removidos das famílias e entregues à adoção nas cidades próximas; as meninas, nesses assentamentos transitórios à beira das estradas, estão em situação de extrema vulnerabilidade e expostas à violência sexual e a várias formas de exploração; alta incidência de suicídios em meninas e adolescentes.

7. Aldeias localizadas em periferias urbanas ou abrangidas por cidades em expansão, comunidades “desaldeiadas” e índios urbanos: falta de acesso a direitos públicos específicos e políticas especializadas para mulheres indígenas nessa situação, negadas a eles, por um lado, por municípios que alegam não atender à saúde, educação ou assistência social dos povos indígenas e, por outro, pelos órgãos estatais indigenistas, que não reconhecem os povos indígenas sem aldeias como povos indígenas; — exploração sexual infantil e casos de esquemas organizados por comerciantes locais para vitimização sexual de meninas indígenas; vulnerabilidade das mulheres ao cerco sexual por agentes estatais assalariados que atuam como professoras e professoras, agentes de saúde, forças de segurança etc., mesmo que também sejam indígenas; vulnerabilidade das mulheres ao alcoolismo e uso de drogas por seus parceiros ou por elas próprias.

A essa longa lista de violação da vida e bem-estar das mulheres indígenas, à medida que a desapropriação de seus povos progride, é adicionada uma nova forma extremada de violência associada às formas contemporâneas de guerra do capital. Esse painel e a variedade de situações nele compiladas falam por si mesmos dos objetivos e alianças de um estado que vê nos territórios habitados por povos indígenas nada mais que uma ocasião para dar continuidade caçada colonial. Portanto, não são os empreendedores privados que afetam a vida dos índios e transformam a existência de mulheres indígenas em uma verdadeira provação, pois esses empreendedores não poderiam existir sem uma aliança e apoio estatal.

Essa crítica da colonialidade também pode se estender a alguns feminismos e é feita por várias feministas descolonias (Lugones, 1997; Oyewumi, 2007). Existe parte do feminismo dominando por sua própria cegueira que termina exaltando e defendendo um feminismo vazio e universal, não percebendo, muitas vezes, que a própria sexualidade, que o próprio acesso sexual tem significados muito diferentes, e que o grande problema para as comunidades indígena e o pivô das grandes transformações precárias no mundo indígena é a entrada do olhar colonial/moderno, sempre objetificador, roteador e pornográfico.

Muitos feminismos, de forma rasa e essencialista vão julgar e desmerecer as lógicas e leis tribais e logo taxá-las como “patriarcais”. O primeiro erro, na hora de pensar, por exemplo, a lei da herança (que não é passada para as mulheres da família), é a necessidade de aplicar as nossas leis da modernidade secular atomizada ocidental e da nossa jurisdição “igualitária” nessa organização que é tudo, menos individual. Não se busca compreender o que antes levou a necessidade dessas mulheres a estarem desamparadas e precisarem da lei da herança. O problema numa situação como essa, que impossibilita a mulher de receber a herança só existe porque o coletivo, a comunidade, os laços que formaram aquela tribo se destituíram. Então, não devemos questionar apenas a proibição da herança para mulheres, mas a dissolução do coletivo que foi realizada por forças estatais empresariais exteriores.

Devemos falar em cegueira instrumental, já que se vê a barbárie em deixar as mulheres em estado de desapropriação (sem herança), mas não vê a barbárie da desapropriação colonial/moderna da vida comunitária, muito menos se preocupa em criar os mecanismos necessário para restaurar o tecido coletivo danificado. Quando falamos, portanto, da lei tribal, não podemos esquecer a maneira holística em que ela é concebida e funciona na articulação e conexão indissociável de regulamentos que se referem a todos os aspectos da vida da comunidade, sem permitir o isolamento de uma regra particular, como neste caso a regra da herança.

A “aldeia do mundo”, como Rita Segato chama as tribos da América Latina, teve duplamente sua vida afetada, primeiramente pela intrusão colonial, através da administração colonial ultramar e depois pela invasão republicana, colocando o foco na mutação da concepção da norma e, especialmente, das normas de gênero e sexualidade. No Brasil, a vida das mulheres indígenas é amplamente afetada pela frente estatal “democrática” que atingem a fronteira indígena. Essa frente, sempre colonial, irremediavelmente intrusiva e interveniente no restante da aldeia do mundo, tenta entregar com uma mão o que já retirou com a outra, se esforça para oferecer antídotos, na forma de direitos, para conter a ação do povo envenenado que ele ocasionou. Falta o entendimento do abismo que existe entre “cidadania” como massa de indivíduos formalmente habilitados a direitos e a organização comunitária e coletivista da vida, a consequência de suas ações é quase inevitavelmente perturbadora com respeito ao tecido das relações e sistema de autoridade da aldeia do mundo.

O contexto brasileiro, dada tamanha diversidade, tem perspectivas e posições múltiplas das mulheres dos movimentos indígenas, inclusive no que se refere a identificação com o feminismo. Apesar de algumas lideranças indígenas como RosimeryTeles, Valéria Paye Pereira Kaxuyana e Maria Gavião (2018) nomearem o movimento das mulheres indígenas como feminista, outras lideranças como Lindomar Terena (2017) criticam a atribuição desta categoria ocidental quando se trata das mulheres indígenas. Por isso, é tão importante e necessário abrir o diálogo através da diferença, ao invés de taxar a forma de resistência das mulheres indígenas como “atrasada”, compreender as possibilidades múltiplas de narrativas, estratégias de lutas e realidades que termos como “movimentos de mulheres indígenas” e “organizações de mulheres indígenas” podem ocultar. Independente desta classificação, as mulheres indígenas brasileiras estão elaborando sobre seus processos de desigualdade relacionadas ao menor prestígio das mulheres nas sociedades indígenas, a violência conjugal, às violências que sofrem diante da sociedade não indígena, entre outros. O que falta para o todo do movimento de mulheres, de suas várias correntes, na verdade, é um diálogo mobilizado pela alteridade, em especial entre mulheres em pé de equivalência, para assim ser possível construir saídas imagináveis através de sujeitos múltiplos, ou seja, uma coalização de mulheres defendendo o mínimo comum. O único universalismo positivo é um universalismo dos problemas e das questões, que todos têm de resolver em concerto. É apenas sobre essa base que o reconhecimento de valores comuns pode adquirir sentido.


[1]Podemos dizer que o feminismo descolonial é um conjunto de produções de várias áreas, frentes, são práticas, reflexões, movimentos antes subjugados pela supremacia das abordagens de cunho ocidental hegemônicas, mas que agora se levantam e aparecem. Feministas negras, indígenas, lésbicas, feministas não acadêmicas, de movimentos comunitários e populares, grupos historicamente ausentes da academia formal, têm produzido reflexões críticas e têm um papel fundamental na crítica das epistemologias eurocêntricas, modernas e ocidentais, e na apresentação de outros conteúdos de reflexão. Isso significa muito, pois dito de outro modo, o descolonial remete à repetição do padrão colonial até os dias atuais, agora, no entanto na forma de uma colonialidade moderna, aliada ao Estado moderno. A colonização está superada, segundo o entendimento das teorias descolonias, mas a colonialidade continua e está presente na subjetividade. Ou seja, a colonialidade está presente no racismo, no sexismo, na sociedade de classes; está presente na morte de jovens negros, nos estupros e no feminicídio, nos baixos salários pagos e na pobreza das mulheres negras, na perseguição e morte de mulheres lésbicas e homens gays. É um feminismo empoderador porque é um modo de fazer e pensar que nos dá um novo direcionamento. Em especial, não se trata apenas de um campo teórico, pois nele se movem diferentes grupos, saberes e fazeres. Trata-se da ruptura epistemologia e política com o feminismo estatal, institucional, branco e heterossexual, para fazer uma leitura feminista desde o contexto específico de cada uma delas, com suas experiências, conhecimentos, necessidades e visões de mundo. Dessa forma, o sujeito do feminismo, a “mulher”, a mulher generalizada a partir da mulher branca, heterossexual de classe média não existe mais. Criticar e questionar o feminismo hegemônico é escancarar a existência de muitas outras identidades feministas, as feministas negras, as feministas lésbicas, as feministas dos movimentos populares, do feminismo comunitário, as feministas indígenas, é criticar um feminismo dominante defendendo que a matriz de dominação é mais ampla e complexa que apenas a dominação de gênero, e essa não pode ser tomada de modo isolado.

[2]É importante ressaltar que não existe uma literatura específica sobre a violência de gênero no movimento indígena, tanto que uma publicação tão importante quanto o Relatório do Conselho Missionário Indígena sobre Violência contra os Povos Indígenas do Brasil, publicado em um caderno desde 1993, não contém dados sobre violência específica sofrida por mulheres indígenas (CIMI, 2011).