Como o patologizante patriarcado atravessa e apaga mulheres neuroatípicas, fazendo de nós as principais vítimas da histeria.

Sou autista e gosto de coisas bem explicadas. Sendo assim, começo esclarecendo alguns conceitos usados ao longo do texto. Neurotípico ou típico é o indivíduo cujo encéfalo apresenta uma estrutura típica, de conexões neurais típicas — é como nós, os neuroatípicos, chamamos todos aqueles que não “têm” autismo, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, dislexia. Neuroatípico, neurodiverso ou atípico é o indivíduo que “têm” essas síndromes de desenvolvimento do sistema nervoso central (SNC). Falo têm entre parênteses pois nossa comunidade acredita que não temos síndrome nenhuma, nós somos assim: somos autistas, TDAH, disléxicos. Nossos cérebros são organizados de maneira diferente e processamos estímulos nervosos de maneira diferente. A comunidade médica e neurocientífica só nos entende como sindrômicos porque o padrão de desenvolvimento encefálico é neurotípico; e, não cabendo na neurotipicidade, somos doentes.  Neurotipicidade é o comportamento normativo, socialmente aceito, de produção profissional e cultural, de aprendizado, de comunicação e de expressão social. Por sua vez, neuroatipicidade é o comportamento esperado de pessoas neurodiversas.

Nesse texto, abordarei os efeitos da socialização feminina sobre mulheres autistas, partindo de minha experiência pessoal, mas estendo minha solidariedade às irmãs neuroatípicas não-autistas ou que apresentam outra(s) neurodiversidade(s) além do autismo. Sei que também lhes cerceiam a liberdade de ser quem são e que, assim como eu, adoeceram por isso. Quero elucidar que não se fala em autismo leve ou autismo severo; somos categorizados em três níveis de acordo com nossas habilidade cognitivas e de comunicação — sendo o nível 1 aquele em que não há atrasos significativos no desenvolvimento cognitivo ou grandes dificuldades para sermos independentes, e o nível 3 aquele em que o indivíduo não apresenta comunicação verbal e é quase inteiramente dependente de um cuidador. Ademais, não se fala em Asperger, esse termo é eugenista, higienista, capacitista e faz alusão ao nazista que categorizou autistas em “servem à sociedade” e “devem ser mandados a campos de extermínio”. Por fim, os parâmetros de diagnóstico são defasados, e um autista ser não-verbal ou não acompanhar a curva de aprendizado de alunos neurotípicos não significa que ele não tem habilidades cognitivas bem desenvolvidas — ele tem, só não temos as ferramentas para entendê-las ainda.

Conquanto o autismo e outras síndromes de desenvolvimento são pouco compreendidas e as informações sobre elas, altamente técnicas e pouco acessíveis, finalmente temos algumas referências de autistas na cultura popular: o Sheldon de The Big Bang Theory, o Sam de Atypical, o Shaun de The Good Doctor, o Adam de Adam. Não entro no mérito de estes serem todos atores neurotípicos fazendo personagens quase caricatos de tanto estereótipo infeliz — esse não é o objetivo do meu texto. Quero ressaltar que esses personagens são todos masculinos por três motivos: há uma prevalência de autismo na população masculina mundial, as mulheres autistas são subdiagnosticadas ou recebem diagnósticos incorretos, o modelo de diagnóstico de autismo é padronizado de acordo com o comportamento de homens autistas nível 2 ou 3.

A comunidade neurocientífica entende essa disparidade entre as populações autista masculina e feminina como resultado do “efeito protetor feminino”, conjunto de características genéticas que impediria ou diminuiria o desenvolvimento do autismo em mulheres. Desde a década de 1980, quando o psiquiatra Luke Y. Tsai da Universidade de Michigan – Ann Harbor propôs essa teoria, vários estudos têm apoiado suas conclusões: fêmeas parecem compensar as perdas genômicas (genes deletados) associadas ao autismo de maneira comportamental ( escolha subconsciente) ou utilizando proteínas e outros caminhos metabólicos para suas sinapses (inconsciente e independente de vontade). Todavia, já é sabido que o autismo se manifesta de maneira diferente nos sexos (Hull et al. 2020, inglês): os parâmetros para diagnóstico de autismo é baseado em dados coletados de meninos autistas.

Mais do que admitirmos que o autismo se expressa de maneira diferente em homens e mulheres, é preciso que a comunidade neurocientífica tenha coragem de admitir que os cérebros de machos e fêmeas não são divididos de forma maniqueísta, eles são moldados dessa forma, de maneira antinatural, de maneira cultural. Por isso, afirmo que a histeria é uma ferramenta masculina de tortura feminina: o adoecimento mental sistematizado por Freud no século XIX mas descrito por médicos e filósofos desde a antiguidade clássica só é exclusividade feminina por causa da socialização violenta a que somos sujeitas. E, pertencendo ao campo mental, suas principais vítimas hão de ser aquelas psicologicamente vulneráveis.

Dos muitos homens típicos que já me violaram quero falar dos psiquiatras. Já fui diagnosticada com transtorno de depressão severa, transtorno de ansiedade generalizada, transtorno bipolar, transtorno de personalidade borderline, transtorno esquizofrênico. Recusaram-se a me testar para autismo e a me diagnosticar autista porque eu “olho nos olhos”. Completamente ignoraram meus inúmeros sofrimentos advindos do meu desajuste social, da minha hipersensibilidade a luz e som, da minha seletividade alimentar, da minha irritabilidade. Enfiaram-me antipsicóticos e estabilizadores de humor cujos efeitos colaterais não compensavam os terapêuticos e com um sorriso desdenhoso me perguntavam “mas o remédio te acalmou, não?”. Sim, os remédios sempre me acalmaram: nas 6h por dia que eu conseguia passar acordada eu não tinha forças para pensar. Mas também não escapava de um sono tumultuado, ansioso, angustiante, desesperador de 18h seguidas.

Desde a mais tenra idade me tolheram as estereotipias, obrigaram-me a não me mexer de forma estranha e a não repetir palavras e números, constrangeram minha comunicação não-verbal até que ela não existisse mais, forçaram-me a ser dócil e amigável, proibiram-me de me zangar, de me debater. Tomaram minhas coleções porque eu não podia ser desorganizada. Se tenho uma dicção impecável e olho nos olhos de meu interlocutor é porque tive professores e familiares dizendo-me que tinha de fazer amigos, e minha personalidade normal não era aceitável, não era agradável para meus colegas. Se consigo repetir palavras e números internamente ao invés de externá-los é porque tive professores e familiares chamando minha ecolalia “inconveniente”. Se consigo mascarar meu autismo e posso ouvir que “não pareço autista” é porque me acostumei à privação de todo comportamento que me traz alívio mental. Minha primeira ideação suicida foi aos 8 anos de idade.

Mulheres autistas também são mais vulneráveis às diversas formas de violência contra a mulher. Os parâmetros de socialização da neurotipicidade são confusos, cheio de nuances. Pessoas típicas não comunicam suas expectativas com conversas, com relacionamentos. Elas se aproximam e falam, como se isso fosse simples; como se eu, nós não precisássemos de contexto da fala, motivo da conversa e o que a pessoa espera do diálogo. Quando um tio se aproxima de uma menina autista, passando a mão em seu corpo e pedindo discrição, não há razão para ela diferenciar isso do beijo molhado que a tia lhe tasca na bochecha e os pais lhe obrigam a aguentar para não ser mal-educada. Quando meu primeiro namorado me convenceu que sexo era a premissa de todo relacionamento amoroso eu não soube comunicar meus limites, mal soube demarcá-los; se meu namorado me dizia que sexo era o parâmetro de socialização daquele contexto, por que eu duvidaria? Por que eu diria não? Por que eu não cederia? Eu já havia cedido a tantas outras convenções sociais neurotípicas.

A dificuldade de se articular, de se expressar, de saber impor limites — de se permitir impor limites sem ferir a conduta social típica — nos é corriqueira. Somos obrigadas a aguentar muitas violações para mascarar nosso autismo. Por conseguinte, a violação sexual, a manipulação psicológica, a violência física são só mais alguns inconvenientes que devemos aguentar. Por vezes penso que a neuroatipicidade num mundo típico é enlouquecedora, mas ouso dizer que é a neurotipicidade cobrada de nós que nos adoece e nos suicida. Quando profissionais da saúde mental nos negam o laudo de autista eles nos condenam a um Abu Ghraib mental, nos condenam a uma vida em que não podemos existir tal como somos. A prevalência de homens autistas na população mundial é nosso atestado de loucura e de morte. A cruel ciência que não nos reconhece, não nos estuda, não nos enxerga e não nos ouve nos relega à frustração de processos psicoterapêuticos que nos são ineficazes e de excessos medicamentosos.

É preciso que a comunidade neurocientífica tenha coragem de admitir a realidade, os especialistas não aceitam mulheres autistas. Somos cuidadoras, somos as mães abandonadas de filhos autistas, somos as professoras de “escolas especiais” — somos as que assistem os deficientes, não podemos ser as deficientes assistidas. É preciso que a comunidade neurocientífica tenha coragem de admitir que nós, fêmeas autistas, temos mais facilidade em mascarar o autismo e em compensar nossos comportamentos deficientes porque a sociedade demanda isso de nós. E é preciso que a comunidade neurocientífica tenha coragem de admitir que nós, mulheres autistas, somos todas histéricas, cheias de transtornos mentais que se confundem com o autismo e abrem brechas a outros diagnósticos por causa da patologizante pressão social em favor da neurotipicidade.