Quando as pessoas observam que as “crianças trans” tendem a ter traços autistas e que as crianças com diagnóstico de autismo (principalmente meninas de nascimento, mas também meninos) estão maciçamente super-representadas na população que é encaminhada para avaliação e tratamento para disforia de gênero, a resposta de muitas pessoas trans (e aliados) é que é uma espécie de desumanização e negação de poder alegar que pessoas autistas não podem ser transgêneros, não têm o direito de buscar a transição de gênero ou que podem ser vulneráveis a serem exploradas pelo sistema de saúde transgênero. Mais recentemente, essa alegação surgiu novamente em crítica a um artigo recente da autora de Harry Potter, J.K. Rowling, onde entre muitas outras coisas, ela nota o enorme aumento no encaminhamento de crianças a clínicas de gênero, incluindo um número desproporcional de crianças autistas, para explicar sua reticência em endossar as posturas políticas dos movimentos transgêneros modernos.
Esta é a minha resposta como uma mulher autista, que já foi uma criança autista, que é lésbica com experiências de disforia de gênero e que já quis fazer a transição para o sexo masculino.
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Reconhecer nossa vulnerabilidade à predação social e a sistemas culturais que não entendemos porque não foram feitos para nós não é ofensivo. Como pessoas autistas, é a chave para reivindicar nossa autonomia como um tipo específico de pessoa com deficiência. Frequentemente, não reconhecemos nossas limitações em referência a sistemas sociais maiores, não porque sejamos “muito estúpidos” (ou seja, cognitivamente ou intelectualmente limitados), mas porque temos sistemas de valores diferentes de pessoas neurotípicas e instituições hierárquicas construídas para seu benefício. O autismo é uma deficiência invasiva de desenvolvimento [link posto pela tradutora] e é uma forma de ser. Não é apenas ser uma “pessoa normal”, sem várias capacidades ou habilidades psicológicas clinicamente definidas. É uma diferença em todos os domínios da vida e, como uma deficiência que causa diferenças em nossa percepção social e sensorial, é também uma deficiência que causa diferenças no que queremos e nos preocupamos
Tanto aqueles que exibem uma “preocupação” condescendente com as pessoas autistas quanto aquelas que ingenuamente defendem nosso direito de fazer o que acharmos adequado não percebem esse componente de ser autista. Não é que sejamos meramente vulneráveis porque estamos perdendo partes de nosso aparato de tomada de decisão ou de habilidades sociais. Não é que estamos apenas sendo injustamente negados ao que queremos fazer, e nosso autismo é imaterial, apenas uma desculpa para a negação.
É que não somos reconhecidos como tendo desejos, apenas “necessidades especiais”. É que não nos fornecem habilidades para saber o que queremos, ou que pode ser diferente do que as pessoas ao nosso redor desejam. É que nunca nos contam como conseguir o que queremos de maneira segura e saudável, ou até que existe uma maneira potencialmente segura e saudável de conseguir. É que somos considerados automaticamente patológicos e vazios de experiências internas como pessoas autistas. É que não recebemos nenhuma ajuda para aprender a navegar nossas profundas diferenças em relação aos outros e para navegar sermos privados de recursos sociais e networking de uma forma que não nos diga para apenas encobrir e lidar com isso. É que a maioria das pessoas que dedicam suas vidas para “nos ajudar” não se preocupa com nenhuma dessas coisas, apenas que podemos ser treinados para agir de uma forma que não perturbe a vida de pessoas neurotípicas.
Dado este contexto, me insulta muito mais insistir que ter autonomia nos torna de alguma forma invulneráveis à exploração do que perceber corretamente que somos de fato um povo intensamente vulnerável. Por natureza de nossa deficiência, estamos sempre à margem dos recursos sociais e das redes sociais, e o exercício de nossa autonomia, infelizmente, muitas vezes nos coloca ainda mais fora da aceitabilidade social e da proteção social, em vez de nos proteger materialmente das consequências de viver uma vida autista autorrealizada. Poucas pessoas autistas estão preparadas para isso quando começam a tentar tomar decisões “verdadeiras ao ser” na adolescência.
Acredito que quase todas as pessoas autistas ficam traumatizadas com as consequências de viver neste mundo e com o que os outros nos fazem. Os médicos geralmente não reconhecem que crianças e adultos autistas podem ser traumatizados, que existe até mesmo algo para traumatizar. (Por que mais eles se sentiriam tão confortáveis nos dando choques, nos acorrentando ou nos alimentando com água sanitária?)
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Acho que, por não sermos neurotípicos, muitas vezes lutamos para entender por que uma pessoa neurotípica se sentiria bem em nos excluir, ou talvez até mesmo qualquer pessoa. Muitos de nós, pessoas autistas, temos pouco impulso de fazer essas coisas e, se o fizermos, raramente teremos o poder social para tornar alguém que cortamos de nossas vidas desempregado, incapaz de ter acesso a cuidados médicos, alimentação, moradia e assim por diante. Mas as instituições neurotípicas são estabelecidas, de cima para baixo, para criar hierarquias de valor com diferenças materiais extremas entre o topo e a base. Elas são configuradas para estratificar as “pessoas dignas” e as “pessoas indignas”.
Pessoas autistas são quase universalmente consideradas “indignas” nesses sistemas e, até onde conseguimos obter favores deles, devemos consentir em nossa exploração: entrar em uma transação em termos neurotípicos, onde podemos obter algum tipo de valor fornecendo um “benefício” para este sistema de recursos hierárquicos que não é feito de acordo com nosso sistema de valores ou para nós de qualquer maneira. Isso é comum a todas as pessoas marginalizadas. Mas geralmente é particularmente comovente para pessoas autistas, que lutam para encontrar uma comunidade em qualquer grupo social de seres humanos. Não existe “outro lugar” para nós, não existe “casa”. Estamos presos, como dizem, no “planeta errado”, e a nave foi destruída.
A ideia de que o exercício de nossa autonomia nos protegeria deste mundo em vez de nos tornar mais vulneráveis porque nos recusamos a fazer transações corretas ou nos recusamos a fornecer um benefício é totalmente absurda. Nossa autonomia é perfeitamente compatível com nosso contínuo ostracismo e exploração social. Geralmente coexiste com nosso contínuo ostracismo e exploração social.
Nas aulas de habilidades sociais — ou apenas no mundo selvagem — você não é ensinado a lidar com o fato de que todos irão odiá-lo por ser você. Você é ensinado a ser outra pessoa. Você não é ensinado sobre sua autonomia nativa. Você aprende como colocar as mãos aqui ou aqui, como escolher entre ações que são condescendentes e ridiculamente normais. Você não é ensinado a assumir responsabilidades de uma maneira que você entenda, que seja harmoniosa com seus próprios valores e os dos outros. Você é ensinado a se responsabilizar por sua anormalidade.
Então me perdoe se eu não acredito por um segundo que sistemas médicos impessoais e bem financiados que foram construídos a partir de experiências médicas em crianças e adultos intersexuais (os pesadelos causados por John Money na Johns Hopkins) ou experimentação psicológica em crianças de comportamentos aberrantes (A UCLA, onde o torturador behaviorista de crianças autistas Ivan Lovaas experimentou com crianças em não conformidade de gênero ao lado do terapeuta de conversão George Rekers) tem em mente o bem-estar das pessoas autistas tal qual elas próprias definem.
E me perdoe se eu não acho que as clínicas de consentimento informado[, locais onde se realiza transição de gênero em pessoas apresentando sintomas de disforia de gênero,] têm em mente o bem-estar das pessoas autistas tal qual elas próprias definem. Esses lugares estão mais interessados em hormônios de estampagem de borracha, enquanto se protegem de responsabilidades legais, do que em ajudar adolescentes e adultos autistas, que têm uma maneira intrinsecamente diferente de entender as normas sociais de gênero, navegar a enorme complexidade que é interagir com a fixação social mais fundamental do mundo neurotípico como alguém que sempre e automaticamente falhará.
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Não acho que a maioria dos clínicos de gênero tenha o entendimento básico do que significa ser autista e o que isso significa por si só para sua compreensão de gênero e sexualidade. O que J.K. Rowling disse em seu artigo — um relato direto dos fatos — é muito, muito menos insultante para mim do que o que Diane Ehrensaft — uma das principais “especialistas” nos Estados Unidos em casos de transgêneros pediátricos — publicou em uma revista sobre autismo. Em uma carta para o editor de 2018, lendo um material notavelmente new age sobre as Crianças Indigo, ela escreve que gosta de chamar as crianças transgênero autistas de “Crianças com Duas Hélices Arco-Íris” [se referindo ao DNA de crianças autistas, o qual ela considera algo como naturalmente LGBT] e nos declara “livres” das restrições de gênero como indivíduos “mais criativos”. Este artigo termina com uma anedota sobre uma criança autista de oito anos com uso limitado da linguagem, que começa a falar, fazer contato visual e se relacionar mais apropriadamente com a equipe da clínica após sua transição social por sua família. Ehrensaft pondera, “O gênero poderia ser um aliviador para os estressores do autismo?”
Ela não é a única a pontificar sobre as mudanças mágicas que uma transição de gênero traz para as crianças autistas. Norman Spack (o primeiro clínico nos EUA a usar como drogas supressoras da puberdade agonistas de GnRH em crianças com disfunção de gênero) afirma em um artigo de 2012 com coautoria e revisão por pares (artigo este que não passa de insultos sobre insultos, no Journal of Homosexuality) que em sua experiência clínica os sintomas de diagnósticos de comorbidades — incluindo “problemas de competência social” — “diminuem e até desaparecem” com o tratamento de gênero. No mesmo documento, esta passagem aparece:
Embora a questão de saber se a disforia de gênero é simplesmente um sintoma de um transtorno do espectro do autismo tenha sido levantada por médicos de saúde mental no campo, sentimos que vale igualmente a pena questionar a validade de um diagnóstico de autismo entre jovens transexuais, particularmente daqueles diagnosticados com transtorno de Asperger. Talvez o constrangimento social e a falta de relacionamentos com colegas, fatores comuns entre os pacientes de Asperger/Transtorno de Identidade de Gênero, seja o resultado de uma vida inteira de sentimento de isolamento e rejeição; e talvez os padrões de comportamento incomuns sejam simplesmente um meio de lidar com a ansiedade e a depressão geradas por viver em um “corpo estranho”, como descreveu um paciente.
Será que pessoas autistas trans — que legitimamente protestam contra as principais organizações de autismo que se concentram em uma “cura” para o autismo em vez de acomodações respeitosas para nossas diferenças e necessidades médicas — sabem que médicos de gênero muito bem conectados, muito respeitados e muito poderosos estão afirmando que transição de gênero cura os sintomas do autismo? Será que as pessoas trans autistas — que discutem corretamente as implicações de negar que alguém pode ser autista e ter uma identidade de gênero variante — sabem que é um debate clínico ativo se sua deficiência e todas os seus sofrimentos são “apenas” resultado de ter vindo de alguma forma no “corpo errado”?
Se não sabem, eles deveriam saber que é assim que os médicos estão percebendo os problemas gerais que as crianças sob seus cuidados estão tendo: não como resultado de uma deficiência para toda a vida, estigmatizada, mas eminentemente suportável, mas como resultado de uma falha mística de gênero que pode ser corrigida clinicamente. Que essencialmente, a deficiência “desaparece” desde que terceiros não percebam mais um problema com a conformidade da criança às normas de gênero. O fato de uma menina autista de alguma forma ser transfigurada em uma criança não autista durante a transição ou, mais provavelmente, o comportamento autista de uma menina autista é inadequado para ela quando menina, mas não para ela quando menino. Que a “prova” da eficácia da transição pediátrica e do padrão de felicidade de uma criança autista é o quanto a criança deseja participar da sociedade neurotípica nos termos da sociedade neurotípica.
Não posso fingir que isso não é ridiculamente desrespeitoso para as pessoas autistas, ou que não é um apagamento total de nossa experiência como seres humanos. Para esses médicos de gênero, o fato de uma garota poder ver o mundo de uma maneira diferente e se preocupar com coisas diferentes e, assim, lutar em um mundo que não foi feito para ela não importa de forma alguma, exceto talvez como uma “jornada” simbólica que ela possa seguir ao lado de seus médicos maravilhosamente progressistas e afirmativos. O que “autismo” é para eles é um problema de ajustamento social particularmente grave e inconveniente que pode ser corrigido à força por meio de modificações corporais, caso uma criança ou adulto autista perceba corretamente que não consegue performar gênero corretamente e isso está causando problemas para eles. Eles estão mais interessados - como em uma longa história de “tratamentos” abusivos e até mortais para o autismo — em corrigir o problema para eles do que para a pessoa autista. Como é conveniente para pessoas neurotípicas, tanto o comportamento incongruente de gênero quanto a falta de conformidade social desaparecem quando você modifica clinicamente uma criança para se parecer com o outro sexo.
Não consigo sentir nada além de nojo ao ler que o “aumento de contato visual” é um sinal de que uma criança autista precisava de intervenção médica no processo íntimo de navegar e negociar seu desenvolvimento sexual e de gênero. Não posso confiar que esses médicos não estejam dando por falta grandes partes das experiências de seus pacientes autistas, se é isso que eles têm tanto prazer em relatar como uma transformação positiva e sua justificativa para perturbar e vigiar os corpos das crianças. O que eles pensam das pessoas autistas e daqueles que não estão em conformidade com o gênero, se eles estão tão dispostos a acreditar que existir como uma pessoa com uma deficiência estigmatizada é na verdade apenas um diagnóstico equivocado para a condição pseudocientífica de ser um homem no corpo de uma mulher, ou vice-versa?
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Demora muitos, muitos anos e um pouco de sorte e apoio para a maioria das pessoas autistas entender completamente e chegar a um acordo sobre como seu autismo os afeta e os diferencia tanto das pessoas neurotípicas individuais quanto da sociedade neurotípica em geral. Leva anos — muitas vezes até a idade adulta, especialmente para aqueles que foram abusados por um modelo médico ou para aqueles que passaram décadas sem diagnóstico — para entender as diferenças entre os aspectos sociais e não sociais dessa deficiência.
Leva anos para não explicar todas as suas angústias e dificuldades pelo fato de ser um “retardado”.
Eu ainda não conheci uma mulher autista ainda que não tivesse extrema dificuldade em integrar suas diferenças autistas a valores relacionados a um senso mais amplo do eu que inclui qualquer versão de si mesma que ela usa para navegar em um mundo no qual os valores das mulheres são simultaneamente invisíveis (uma vez que ela não tem direito de determiná-los ela mesma) e sofrem infinitas implicâncias (pois é importante que ela obedeça aos outros).
Em um mundo como este, por que não seria difícil para as pessoas autistas saberem quando estão sendo enganadas ou exploradas enquanto participam de comunidades trans ou buscam atendimento de saúde para transgêneros? Pessoas autistas — especialmente aquelas que dependem de cuidadores ou sistemas de saúde para cuidados básicos, bem como aquelas que dependem da boa vontade de suas famílias, empregadores ou instituições de benefícios de bem-estar para permanecerem tão independentes quanto possível — têm que continuamente comprometer o que querem apenas a manter a aceitabilidade suficiente para se comunicar com o mundo exterior; imagine fazer coisas como “fazer um amigo”, “ir ao médico”, “encontrar um emprego”.
Eu não acho que pessoas neurotípicas entendem ou se importam que quando eu falo ou escrevo seja sempre com um esforço semelhante ao de uma segunda língua. A linguagem — seja verbal ou não verbal, com toda a extensa simbologia do mundo neurotípico — nunca chega a ser outra coisa senão “tradução” para mim. Como alguém com um perfil de habilidades de Asperger que estudou intensamente o mundo neurotípico durante anos, tenho a oportunidade de traduzir de uma forma que permite que os outros me entendam pelo menos parte do tempo. Muitas pessoas autistas mais afetadas vivem no mundo que dá a “autismo” seu nome, onde ninguém se importa em fazer a tradução para nós e somos deixados totalmente sozinhos.
O filósofo do século 20 Ludwig Wittgenstein (que, talvez não por coincidência, provavelmente era autista) estava obcecado por questões sobre o significado da comunicação. Sobre se a linguagem de alguém poderia fazer algum sentido, sobre o que significaria falar sobre algo escondido de todos os outros ou talvez até de nós mesmos. Em uma passagem famosa debatida veementemente, ele escreveu: “Se um leão pudesse falar, não seríamos capazes de entendê-lo.”
Muitos resolveram a questão colocada por esta declaração afirmando que, pelo amor de Deus, um leão é um leão e nada tem a dizer.
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A transição de gênero me atraiu porque estava envolta na noção farsesca de que havia alguma versão de mim e do meu corpo que finalmente poderia falar diretamente. Eu nunca entendi muito bem toda a história de Adão e Eva como uma criança autista — só não coma! — mas se realmente houvesse uma maçã da serpente para os autistas, ela consistiria nesta promessa: que haveria um mundo onde o vidro e a névoa se dissolviam, em que nós não estávamos cobertos por um lodo repulsivo e desajeitado feito de nossos próprios desejos de entender, que em vez de nossas palavras e mãos passando sobre a pele de todos ao nosso redor, poderíamos fazer aquela mágica que todo mundo pode e segurar o coração de alguém em nossas mãos.
Fui enganada porque, como muitos autistas lutando, queria que o problema fosse eu. Porque então era consertável. Eu iria deixá-los levar meu único corpo (que era um entrave sensorial) para me converter em uma dessas antenas abençoados que as pessoas normais eram, recebendo e enviando todas essas mensagens como estrelas cadentes brilhando através do vácuo desimpedido do espaço. Sem que eu fosse fêmea e sem as Dificuldades que Não Deveriam Ser Nomeadas, eu poderia enviar qualquer mensagem que eu quisesse para quem eu quisesse e ela seria recebida, eu poderia ser gregária, importante, sexualmente atraente; minha vontade e autonomia não seriam sufocadas por 60 quilos de carne rechonchuda e cheia de coceira com sobremordida e mãos frouxas.
Quando me imaginava como homem, não me imaginava como a maioria dos meninos de infância com quem consegui me enturmar, que ceceavam, se repetiam e tropeçavam nos próprios sapatos. Eu me imaginei como um músico que era absolutamente magnético, me imaginei como um escritor com um legado, me imaginei dizendo aos outros que eles eram estúpidos e que podiam ir se foder. Imaginei ser capaz de segurar uma bola de futebol sem deixá-la cair, ser capaz de fumar maconha sem ter enxaqueca, ser capaz de falar sem chiar ou deixar escapar um pouco de baba.
Achei que finalmente seria um ser humano sem constrangimentos e nada que pudesse me fazer sofrer no banheiro entre as aulas. Eu pensei que quando eu dissesse “não”, outras pessoas ouviriam. Eu entraria em qualquer mundo místico que Ehrensaft nomeia, feitos de mensagens e significados, onde cada torção de palavra e peça de roupa dizia algo, conectado por um fino filamento de volta àquele Necronomicon cheio de runas de simbologia social. E isso faria sentido.
Eu me tornaria um leão, não um gato doméstico. E o leão falaria. E nós o entenderíamos.
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É uma narrativa neurotípica de que isso é o que a transição pode fazer por você, porque é o que a transição de outra pessoa faz pelas pessoas neurotípicas. Uma transição de gênero é mágica porque decodifica o leão. Ele decifra a esfinge. A pessoa autista deve estar mais feliz agora, porque a pessoa neurotípica está mais feliz agora. (E quem tem déficit de empatia?)
Mas se eu aprendi a ter medo de alguma coisa enquanto autista, não foi de meus próprios neuroticismos e fixações, mas das chamadas “pessoas normais”. Esqueça o arco-íris de dupla hélice: ser uma pessoa autista é como se seu DNA fosse um ônibus escolar convertido em casa móvel rodando pelo mundo gloriosamente pintado com spray, enquanto o mundo inteiro tem uma associação de moradores. Eu entendo por que as pessoas autistas que se consideram transgênero veem a “preocupação” como a estupidez intrometida do mundo neurotípico. Eles não estão errados. Mas ela existe ao lado de outras estupidezes mundanas e brutais intrometidas, como financiamento de doações, salvadorismo progressista e complexos de Deus em psiquiatras.
Compreender e resistir ao que o mundo neurotípico nos comunica sobre nosso valor não se faz protestando contra eles em sua própria linguagem. Eu sou uma mulher autista e como muitas outras mulheres autistas estou cansada de não apenas me tornar mais palatável, mas também de traduzir minha existência para algo inteligível para os de fora, que são homens e não autistas. Feministas radicais dão por falta de um desses; transativistas e aliados dão por falta do outro. Mas eu sou irrevogavelmente diferente de ambos.
Quando você é autista, você aprende apenas uma estrutura simbólica. Não é sua, mas é o único meio que você terá para se comunicar com alguma complexidade. Mais sinistramente, torna-se o único meio que temos para nos comunicarmos conosco, o único meio que podemos usar para trabalhar em torno das partes silenciosas e confusas de nossos corpos e mentes. Eu estou com fome? Nem sempre é óbvio. Para fazer a pergunta, encontro-me traduzindo, mesmo quando sozinha.
Minha fantasia sobre leões e homens era que qualquer que fosse o mundo em que um leão vivia e tudo o que ele tivesse a dizer, ele não precisava traduzir, especialmente para si mesmo. Quando um leão diz algo, ele não para e pergunta se ele quis dizer o que disse ou quem o está dizendo. Quando um leão olha para o poço e vê seu próprio reflexo, ele não precisa reconciliar nada. O leão não precisa falar para se compreender. Um leão é feito de dentes, sangue e garras e o leão simplesmente faz.
Eu não uso o simbolismo do transgenerismo para explicar as pequenas lacunas e incongruências que são meus problemas com gênero, com meu corpo sexuado, com sexualidade. Não é apenas uma linguagem nascida de neuroses e regulações neurotípicas, mas é sempre e para sempre fundamentalmente uma tradução.
Como uma mulher autista, passei toda a minha vida evitando esses fatos duais, tanto no meu tempo pensando em mim como trans quanto tentando entender tudo isso depois: eu sou meu corpo e não sou meu corpo. Porque eu falo, mas não entendo. Porque eu entendo, mas não falo.
Vou, inevitavelmente, sempre ter que traduzir para falar e entender. No entanto, minha autonomia requer que, no fundo, eu deva respeitar a comunicação nativa de meu próprio corpo e mente. Eu me recuso a usar a força ou coerção para fazê-lo falar, interromper seu silêncio, confabular histórias em seu nome, falar por ele usando suposições que ele não pode confirmar ou negar. Tenho que ficar em paz com o fato de que às vezes os espaços em branco do meu corpo ou os cantos redigidos da minha mente não dizem nada. Tenho de aceitar o fato de que a tradução é sempre imprecisa, que algo está sempre além daquela constelação de símbolos e palavras. O corpo autista e a mente autista têm seus próprios limites e me recuso a acreditar que o exercício de minha autonomia requer quebrá-los.
Não sei se J.K. Rowling sabe disso. Espero que você saiba.
Esta é uma tradução de um texto escrito para o blog Destroy your Binder. Você pode ler o original aqui.
Sou autista, trans e definitivamente não concordo com 90 por cento do que você falou. Mas é isso, cada um com seu cada um.
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