Preciso começar de imediato afirmando que até agora, no momento em que escrevo, março de 2020, não temos respostas minimamente tranquilizadoras sobre como vamos sair da pandemia de Coronavírus. E “sair” não é nada parecido como sair de qualquer maneira, sem nenhum cuidado, custe o que custar e quantas custar, sair é de fato agir durante todo esse processo com coragem e responsabilidade. Nosso presente e passado sempre foi sádico e genocida com apenas uma pequena parcela da população, castas superiores de canalhas vão ultrapassar essa crise como vencedores, muitos deles, com ainda mais dinheiro do que entraram (fluxos de informações, poder e polícia são variáveis-chaves no jogo e eles estão nos derrotando repetidamente). Outros, muitos outros vão morrer, não só aqueles do “grupo de risco” para a doença e o grupo de risco da vida real? (eu fico me questionando como é que se define grupo de risco sem analisar fatores como infraestrutura, renda, sexo, como se a doença matasse num não-espaço e todas essas características pudessem deixar de ser levadas em conta). Como conjecturar a chegada do vírus numa favela que não possui saneamento básico, carente de serviços de saúde de qualidade e com superlotação? Devastação? Extinção?
As medidas para o combate ao vírus terminam acentuando desigualdades que acometem os grupos sociais mais precarizados: mulheres, pessoas racializadas, periféricos. As mulheres que estão em isolamento social estão mais suscetíveis a violência doméstica; a deixar de lado sua própria saúde em detrimento do cuidado com o outro (mãe, pai, sogra/ desempenhando um papel de mãe não de filha); a administrar as angústias, ansiedades, educação e entretenimento dos filhos; a ter mais tarefas domésticas, mesmo com a companhia dos maridos em tempo integral; mulheres sempre são as cuidadoras, empáticas, positivas, movimentadoras, maternais, mas nada disso é da essência ou da feminilidade, é fruto de uma construção violenta patriarcal que persiste em nos definir e são agravadas por contextos como esses, de pandemia. As mulheres que vão morrer vão virar estatísticas nos jornais, vão virar números — suas existências serão reduzidas ao nome do vírus e esquecidas como fatalidade de uma pandemia.
Quando tudo isso pode ser evitado. Evidências de surtos anteriores de doenças já nos revelaram e alertaram que mulheres e meninas enfrentam vulnerabilidades específicas. No surto de Zika (2015–2016), as mulheres enfrentaram barreiras significativas aos cuidados de saúde devido à falta de autonomia sobre sua própria saúde sexual e reprodutiva, acesso inadequado a serviços de saúde e recursos financeiros insuficientes. Durante o surto de Ebola da África Ocidental (2014–2016), as mulheres foram mais propensas a serem infectadas devido aos seus papéis predominantes como cuidadoras e profissionais de saúde. Os efeitos econômicos do surto de Ebola, por exemplo, levaram a riscos exacerbados de exploração sexual para mulheres e crianças. Hoje, a pandemia de coronavírus já está causando um impacto significativo nas mulheres nos seus meios de subsistência; no aumento da carga de trabalho não pago/ invisível; no aumento da violência doméstica; na diminuição dos cuidados com a saúde sexual; no aumento da ansiedade, tristeza e solidão; apenas no pós-corona vamos de fato poder mensurar todos os estragos.
A carga das tarefas domésticas em casais heterossexuais já é majoritariamente realizada por mulheres — numa situação normal de patriarcado sem pandemia — os homens continuam na situação confortável de “ajudar” em vez de compartilhar a louça, a faxina, a água nas plantas, as crianças, a comida, muitas vezes partilhando apenas das contas. Essa situação já é extremamente degradante para mulheres sem o agravamento do vírus. As mulheres que antes da pandemia já gastavam 95% a mais de tempo com afazeres domésticos do que os homens (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos) agora se vêm numa sobrecarga ainda maior, estamos na quádrupla jornada de trabalho. Estudos após estudos alertam que, é decisivo para o sucesso na carreira da mulher a divisão igualitária de tarefas, tanto que, a maioria das mulheres CEO tem mais chances de serem divorciadas[1] (Yodanis, 2005).
As mulheres são tipicamente as responsáveis pela saúde, pelo entretenimento, pela educação e em momentos de crise, ansiedade e pânico, ou seja, agora, o peso desses papéis é bastante esmagador, não sobra tempo além. Algumas vozes descrentes vão questionar essas colocações e contestá-las com: mas elas também estão em casa, então elas também têm mais tempo? Quando na verdade, nem sempre essas mulheres estão mesmo em casa, e aquelas que não se podem dar o direito de parar e continuam trabalhando? Ou mesmo aquelas, que mesmo estando em casa precisa realizar um home oficie? A verdade é que cada caso é um caso, mas numa situação de pandemia a gente pode refletir em relação a sobre(carga) das mulheres nos perguntando: Quem vai cuidar dessas pessoas? Não me venha com exceções, elas sempre existem. Mas, nessa situação encontramos inúmeras, milhares de mulheres isoladas em casas com muitas pessoas e ainda assim realizando o maior de tarefas sozinhas.
O tempo lhe é ainda mais roubado pelas imposições de uma sociedade da produtividade. As pessoas estão isoladas e continuam exaustas exatamente pelo fato de estarem presas a um modelo que alimenta o capital. É extremamente doentio pensar que mesmo numa quarentena, mesmo quando o mundo é obrigado a parar, refletir, pensar no outro, as pessoas que mais podem parar não param. Mesmo numa quarentena as pessoas tentam ser altamente positivas e altamente produtivas com suas listas de filmes, de exercícios, de receitas, de projetos, de livros tudo voltado para o acúmulo de conhecimento e de conteúdo que, de acordo com esse ideal é importante para o “ócio criativo”. É direito da mulher poder nesse momento de isolamento social usufruir do seu ócio, mas será possível? Ou será que essas listas só confirmam a distância que existe entre os sexos, as classes, as raças? Eu acredito que quem defende esse ócio criativo disfarçado de nova produtividade, ou é neoliberal; ou é homem; ou é jovem; ou é branco. Ou seja, esquecem que essa acumulação não é inteiramente real ou viável para mulheres (mulher heterossexual casada, a mulher-mãe, a mulher-cuidadora da mãe). Quando algum “espertinho” manda uma mensagem dizendo que William Shakespeare e Isaac Newton fizeram alguns de seus melhores trabalhos durante a peste negra já me vem na cabeça uma pergunta óbvia. Eles tinham filhos? E se tinham, a responsabilidade do cuidado era deles? Para aquelas com responsabilidades de cuidar, é improvável que um surto de doença infecciosa lhes dê tempo para terminar uma listinha de 25 filmes, quanto mais escrever um livro ou desenvolver uma teoria. Uma pandemia amplia todas as desigualdades existentes mesmo que os políticos insistam que não é hora de falar sobre outra coisa senão a crise imediata.
A realidade das pandemias é agravada com o estresse, consumo de álcool e dificuldades financeiras fatores importantes na vida dos casais heterossexuais que potencializam cenários de violência de gênero. E essa realidade não é uma novidade para os estados e a OMS, outros surtos e vírus também fizeram o número de violência doméstica crescer, mas mesmo assim se insiste que não é hora de falar que mulheres estão morrendo por serem mulheres. As mulheres vão continuar a morrer concomitante com a pandemia, então é preciso ter um preparo especial e continuidade nas políticas públicas de proteção e enfartamento dessas violências. Até porque no pós-pandemia pode ser que seja tarde demais para algumas de nós. As epidemias são inevitáveis e a tentação de argumentar que gênero é um problema lateral, uma distração da crise real, deve ser resistido. O que fazemos agora afetará a vida de milhões de mulheres e garotas no futuro do surto. Por isso, nas redes sociais a frase “Mulher, ficar em casa não significa ficar calada” faz parte de uma das campanhas virtuais contra a violência doméstica, outras iniciativas como essas devem partir do poder público.
Se o presente nos foi roubado, futuro não-tangíveis nos aguardam. Fazendo um exercício imaginativo de nos colocar, através de uma viagem no tempo, no cenário do pós-coronavírus como vocês visualizam a vida das mulheres? Depois de uma economia global parar por um semestre, a recessão vai governar, o desemprego vai comandar, a fome vai reaparecer e as mulheres vão sofrer com o desmantelamento das políticas sociais de forma violenta e implacável. Esse futuro pode nos obrigar a voltar a desempenhar papéis que por muitos anos nós lutamos para não mais fazer, esse vírus pode roubar não só nosso tempo e espaço, mas todas as nossas conquistas. Dentro deste contexto triste, cruel e sanguinário fica claro que o vírus não é democrático, só seria se vivêssemos numa sociedade quase perfeita, não é o nosso caso. É preciso ficar atento àqueles que vão mais morrer: mulheres, precarizados e desamparados. Por isso, não se pode fechar os olhos pra a energização das desigualdade de sexo pelo novo vírus.
[1]Divorce Culture and Marital Gender Equality: A Cross-National Study.