Eu sou a mente viva que você não consegue descrever
na sua língua morta
o substantivo perdido, o verbo que sobrevive
só no infinitivo
as letras do meu nome estão escritas sob as pálpebras
da criança recém-nascida.*

(Adrienne Rich, La extranjera)[1]

N. T.: epígrafe traduzida com base no poema em inglês.


Há cinco anos eu escrevi um texto questionando o uso do “A” em palavras como “corpa”, pensando esse uso não com base na motivação legítima de parte das mulheres que ele provoca, mas nas implicações mais profundas do uso da língua e no risco de gerarem-se mudanças que fiquem apenas na superfície. Hoje, o uso do “E” desbancou qualquer outro. Diante dessas condições, eu claramente prefiro o “A”, porque o “E” é um invisibilizador de mulheres como sempre foram (e são) os usos linguísticos patriarcais. Esse “E” surge no contexto da dissidência sexual e da necessidade de nomear a experiência transgênero, mas apaga as mulheres, assim como o faz a própria corrente que teoriza sobre tal experiência, o pós-feminismo. Se nós mulheres queremos transformar a língua, ou melhor, deixar de usar uma língua que nos nega, não é optar pelo “E” o que vai possibilitar concretizar esse desejo político e genuíno. A reflexão das feministas acerca da língua patriarcal e a importância de nós mulheres nomearmos nossas próprias experiências são de longa data. Gostaria aqui de apresentar algumas dessas reflexões, em especial aquelas que provêm do feminismo radical e do feminismo da diferença, juntamente a alternativas para nos livrarmos dos usos linguísticos patriarcais.

Primeiramente, é fundamental esclarecer uma questão já muito conhecida: a língua é um espelho da cultura, e vice-versa, ambas se intervêm mutuamente. Por isso, analisar a estrutura da língua androcêntrica é muito esclarecedor para desvendar a estrutura da cultura patriarcal. Quero começar com uma teórica da linguagem muito visitada por mim: Patrizia Violi, semióloga italiana cuja perspectiva é a diferença sexual[2]. A autora analisa as estruturas das línguas faladas no mundo e conclui que todas são androcêntricas. Por quê? Porque todas elas têm a diferença sexual feminina inscrita em suas estruturas, mas sempre de maneira negativa. Isso pode ser representado e sintetizado pela seguinte equação: feminino é igual a não masculino, e masculino é igual a humano. Quer dizer, se as mulheres quiserem se identificar com o humano, precisam vincular-se aos homens; caso contrário, ficam projetadas numa esfera do não humano. Isso não deveria nos surpreender, já que sabemos que o mecanismo fundador da civilização androcêntrica é a negação da diferença sexual feminina.

Prefiro falar de diferença sexual em vez de corpo sexuado, porque esse último corre o risco de ser reduzido a uma mera categoria biológica. Quando nos referimos a diferença sexual, estamos aludindo ao corpo como fonte significante, à impossibilidade de separar o corpo da palavra, sendo o corpo, então, tanto biológico quanto semiológico (criador de signos, de significados), e, portanto, se a cultura patriarcal se empenha em nos negar, isso se deve ao fato de que, ao mesmo tempo, nega a ordem simbólica da mãe (conjunto de signos com seus significados), que foi tecida ao longo dos séculos com base na experiência livre das mulheres[3]; quer dizer, nega outra possibilidade de criar cultura e sociedade, de nos relacionarmos com nós mesmas, entre nós e com o mundo. Junto a isso, ao não reconhecer essa diferença, que é primária, que é um fato irredutível, instaura uma cultura unidimensional que deixa de fora a multiplicidade da vida e a diferença como princípio da existência.

É claro que a negação da nossa diferença vai se dando de muitas formas (nos estuprando, nos matando, nos objetificando), e a língua é uma dessas formas, que opera no nível simbólico, mas seu papel, como o de tudo o que é simbólico, é fundamental, dada a importância que ela tem para a espécie humana, em comparação a outras espécies que habitam o mundo[4]. Voltando a Violi, ela nos diz que essa negação se fixa na estrutura profunda da língua, não na superfície, mas pode ser observada nessa última. Com superfície linguística, quer dizer, por exemplo, o paradigma dos gêneros gramaticais. Nele justamente se aplicam as mudanças linguísticas que provêm de diferentes tendências do feminismo ou daquelas que promovem uma linguagem não sexista: o -e é parte disso. A negação da diferença feminina nos gêneros gramaticais se expressa através do predomínio do masculino e da absorção ou “inclusão” do feminino nele; assim, dizemos “os alunos”, “os adolescentes”, “o Homem” etc., absorvendo as mulheres nessas expressões. Como eu disse anteriormente, a língua é espelho da cultura, e vice-versa.

Mas o -e também não está visibilizando o feminino, ao contrário, também o absorve (o “inclui”). Em espanhol [N. T.: assim como em português], o -e é um morfema que expressa um predomínio do masculino: estudantEs, professorEs, pescadorEs, doutorEs etc. No entanto, a questão principal para Violi é sair dessa superfície. Porque, uma vez que a negação da existência das mulheres se inscreve na estrutura profunda da língua, nenhuma mudança feita na superfície afetará essa profundidade; e mais, o sistema da língua, tão flexível, vai incorporar essas modificações sem que elas afetem sua lógica interna, que continuará sendo androcêntrica. E qual é essa estrutura profunda? A autora pontua que é a organização fundamental do significado ou do sentido. E esta se localiza no limite entre corpo e palavra, cuja relação é indissolúvel. Ou seja, na organização semântica profunda firmam-se todas as dimensões do sentido que têm a ver com a experiência vital de ter um corpo, que é sexuado: as percepções, as sensações, as pulsões, as emoções, as intuições, os sonhos, o inconsciente, a sexualidade, entre outras. Todas essas dimensões são parte da linguagem e são capazes de simbolizar a experiência ou de semiotizá-la, ou seja, de significá-la, transformá-la em palavra.

Foi no limite entre corpo e palavra que se fixou, há séculos, a diferença feminina de modo negativo. Poderíamos dizer que, nesse processo nefasto para nós mulheres, o feminino, entendido como sentido livre de ser mulher, se transformou em “gênero”, em um estereótipo codificado pelo regime patriarcal[5]. Porque o gênero para nós é isso: a absorção de nossa diferença no masculino, nos transformando no seu limite negativo e em sua condição de existência[6], o que o patriarcado vem chamando, falaciosamente, de complementaridade, mas que as pensadoras da diferença denominam regime do uno [N. T.: régimen del uno é a expressão usada pela autora][7]. Violi aponta que houve um corte histórico entre a estrutura profunda do significado e a experiência das mulheres. Essa quebra pode ser explicada com a própria origem do patriarcado e observada na própria origem de cada vida que nasce; relaciona-se à perda de autoridade feminina[8], da mão da dominação de nossos corpos.

A filósofa italiana da diferença sexual Luisa Muraro afirma que aprendemos a falar no útero, e isso é, precisamente, a língua materna[9] — arrebatada pelo conhecimento com poder[10] e institucionalizada pela educação formal. A pensadora descreve essa aprendizagem desde quando habitamos a vida intrauterina e escutamos as vozes do exterior, principalmente a do corpo que nos carrega. Dessa maneira, nascer, sair do útero para o mundo se deve ao impulso de querer aprender a falar, nos diz a autora, porque, assim como precisamos do ar para respirar e conseguir viver, também precisamos dele para os órgãos da fonação funcionarem e para conseguir falar; no início, são os primeiros sons e balbucios da fala, inclusive o choro. E é a mãe quem nos amamenta e fala conosco, canta para nós, sussurra ou conta histórias. À medida que crescemos, ela vai nos mostrando o mundo: para cada coisa há uma palavra correspondente, um nome. E montanha É montanha. Confiamos plenamente no que ela diz. O desejo primário da palavra cria um vínculo relacional com a mãe, e essa relação se baseia em confiança. Essas são a língua materna e a ordem simbólica da mãe (a ordem simbólica é a língua que falamos, segundo María-Milagros Rivera[11]).

Quando a mãe não está presente, sempre tem alguém que ensina a língua em seu lugar[12], geralmente outra mulher. É importante lembrar que, muitas vezes, essas experiências de nascimento e criação estão cheias de dor e abandono, estão partidas na vida de muitas e de muitos, porque nascemos em um mundo patriarcal, no qual a capacidade das mulheres de dar a vida — justamente aqui está o corte de que Violi nos fala — é usurpada e institucionalizada, transformada em serviço para os homens e seu regime simbólico, baseado na violência, na desconfiança, no monológico. Isso implica que nos separem de nossa origem e de nossa genealogia, e, portanto, ficamos expostas às operações de negação dos homens, a ter que nos significarmos em relação a eles e a assumir suas fantasias/perversões como próprias. Sim. A língua materna é usurpada ao mesmo tempo em que é usurpada a autoridade da mãe na cultura patriarcal. A mãe é deslocada pelo Pai, por sua palavra, sua lei e sua tradição de pensamento misógino e falocrático[13]. A maternidade é arrebatada para ser codificada como uma “instituição de vanguarda” da cultura patriarcal, junto à heterossexualidade compulsória, explica Adrienne Rich[14], escritora estadunidense, lésbica e feminista radical. A relação da mãe com a filha sofre intervenção do patriarca; é o vínculo genealógico primário em que o Pai irrompe para arrebatar das mulheres a força criativa, a palavra.

Dessa forma, nos fragmentam entre corpo e palavra[15], fazendo com que aprendamos por meio do ensino estabelecido uma língua alheia, a androcêntrica, que nos nega e macula desde sua estrutura mais profunda, e nos obriga a nos sentir incluídas no sujeito pseudouniversal Homem. Mercedes Bengoechea, linguista feminista espanhola que estuda a teoria linguística de Adrienne Rich, pontua que nós mulheres temos duas saídas nefastas diante do uso dessa língua: o silêncio ou a alienação[16]. O silêncio, não como impossibilidade das mulheres, mas como uma impossibilidade da própria língua, portanto, representa nossa resistência a não querer falar uma língua que nos nega ou não nos interpreta. A alienação (confusão e desequilíbrio) surge quando não resta outra opção para sermos escutadas a não ser usar essa língua e ter que perceber e organizar os elementos do mundo de maneira androcêntrica e misógina. Nem a mudez nem a alienação são saídas para nós. Ficar sem língua própria é impactante[17], porque impõe o não poder codificar (às vezes, sequer conseguir levar ao plano da consciência) nossas experiências internas.

Tratando-se de uma usurpação, muitos elementos da língua do Pai são nossos, mas, havendo sido historicamente roubados, aparecem cheios de mentiras e tergiversações sobre nossas vidas. O roubo sempre vai acompanhado de mentiras. Pensemos, por exemplo, no fiar histórico de nossos territórios, como diz Nadia Rosso, linguista feminista mexicana, em que a língua materna das mulheres do nosso continente foi arrebatada pelos homens estupradores europeus; e nos lembremos de todas as mentiras que têm circulado sobre sua colonização. Nesse sentido, Adrienne Rich explica que a cultura patriarcal se fundamenta e perpetra sobre a base de grandes silêncios sobre nós, que se expressam em vazios léxicos, quer dizer, na ausência total de um termo para nomear determinada realidade (a inexistência de palavras para a experiência da maternidade e da sexualidade livre das mulheres), em parcelas (corpo e mente; amor e política, entre muitas outras), falsidades (revisemos o repertório ginecológico e o ocultamento de suas torturas para com nossos corpos, isso para dar apenas um exemplo), desqualificações e deformações sobre nossa experiência[18].

Mary Daly, teóloga estadunidense, lésbica e feminista radical, diz que a palavra “glamour” era parte da ordem simbólica das bruxas e expressava seu poder sobrenatural (“feitiço mágico”), mas, na atualidade, “o poder do termo é mascarado e afogado” a ponto de transformar-se em um nome para revistas de moda, que objetificam o corpo feminino[19]. Ou observemos o paradigma léxico das línguas patriarcais em que as palavras femininas ou dirigidas às mulheres sempre têm conotação pejorativa e estão associadas a um duplo sentido sexual (“cachorra” em vez de “cachorro”). Esses grandes silêncios se referem à já descrita relação fundamental com nossas mães e a outros três que se desprendem disso: o silenciamento de nossa história e e das nossas genealogias, o das verdades de nosso corpo sexuado como fonte de significante e o dos laços entre mulheres, colocando especial ênfase no da existência lésbica (a própria palavra lésbica para muitas é quase impronunciável)[20].

Adrienne Rich traz, como saída, falar uma língua comum das mulheres, baseada em nossa experiência comum. Luisa Muraro e María-Milagros Rivera pontuam a necessidade de falar em língua materna sem a mediação dos tecnicismos nem do sujeito falsamente universal do conhecimento com poder, a partir do qual se erguem as disciplinas, artes e ciências. Falar em língua materna, então, se refere à relação direta entre a coisa e a palavra que a nomeia, exatamente como aprendemos em nossa primeira infância. Língua comum e língua materna são, afinal, a língua (do mesmo modo que a história das mulheres é, afinal, a história da humanidade[21]). Por sua vez, Patrizia Violi enfatiza a importância de falar em primeira pessoa para que as mulheres fixemos no discurso uma diferença feminina autônoma, e não complementar do masculino.

Todas as pensadoras resgatam os espaços que consistem em tomar consciência e tomar a palavra como prática política, porque neles as mulheres podemos falar a partir de nossa experiência (faço a necessária ressalva de que falar a partir de nossa experiência é o oposto de falar a partir da ideologia, mesmo quando esta é feminista[22]); podemos criar ordem simbólica e encontrá-la incorporada em nossas vidas “aqui e agora”; podemos descobrir nossas antepassadas e reconhecer nossas contemporâneas. Assim se mudam a língua e o mundo, porque, como pontua Rich, “no simples fato de tornar-se mais consciente de sua situação no mundo, uma mulher pode sentir mais do que nunca como entra em contato com seu inconsciente e seu corpo”[23]. Nas palavras de Violi, entra em contato com as dimensões profundas da linguagem e do sentido.

Portanto, mais do que “inventar” uma nova língua, trata-se de descobrir e recuperar a que nos pertence[24], o que implica, entre outras ações, renomear aspectos de nossas vidas, descobrir expressões perdidas no tempo e também ressignificar palavras tergiversadas, devolvendo a elas seu étimo. Para Adrienne Rich, será trazer à luz os conteúdos dos grandes silêncios a partir dos quais o patriarcado emerge como civilização. Para Audre Lorde, poeta negra, lésbica e feminista radical, será navegar nas águas profundas, escuras e remotas de nós mesmas para nos revelarmos em uma poesia, que não é um luxo, mas uma necessidade de sobrevivência[25]. Mas essa sobrevivência não é somente “continuar vivendo”. É, como diz Mary Daly, “viver além”, além do primeiro plano dos pais, que é superficial, violento e mentiroso; mortífero, cruel e depredador. É atravessar todas as suas camadas para chegar além do fundo de nossos desejos genuínos. Como podemos interpretar nessas pensadoras de nossa genealogia, nem tudo é patriarcado[26], por isso é tão importante encontrar as verdades de nossos corpos, de nossas relações e de nossa história. Pensar que tudo é patriarcado é ficar presas ao primeiro plano superficial dos pais, analisando, pensando e fazendo política a partir desse lugar. E, como sabemos, graças a Audre Lorde, “as ferramentas do senhor nunca vão derrubar a casa-grande”, ainda que se apresentem vestidas de feminismo[27].

A radicalidade dessas reflexões se manifesta porque todas vão até a raiz: a raiz da língua, ou seja, até a estrutura profunda do significado; a raiz das palavras para devolver-lhes seu étimo; a raiz do patriarcado para desmontar a estrutura de sua civilização e das instituições que a abrigam; a raiz de nossos corpos, quer dizer, até o nossa diferença sexual como fonte significante, com seu clitóris (que diferencia o prazer da reprodução) e sua capacidade de ser dois[28] (quer a exerçamos ou não); a raiz de nossa história e a de nosso nascimento, isto é, saber que nascemos do corpo de outra mulher. É muito diferente essa prática política da teoria que considera que tudo é construção discursiva ou que a linguagem é um fim em si mesmo, e se apoia em performatividades de múltiplas cores, que produzem grande efeito especial, mas muito pouca consistência existencial. Usar o “E” (ou o “X” etc.) é parte desse mesmo jogo e, por isso, aprofunda a ignorância sobre a nossa vida e sobre as autoras que, com consideráveis custos para si mesmas, trabalharam para que o mundo fosse um lugar mais habitável para nós.

Mas não se pode confundir, porque refletir sobre a linguagem é algo que nos convoca, sobretudo em tempos de “E”, de “X”, de “@”, ou seja, em tempos quando só importam as formas. Como eu disse no começo deste texto, o “E” nesse momento se sobrepõe aos outros morfemas de gênero. De resto, o “E” nos exclui, ainda bem. Porque, como diz Carla Lonzi[29], estivemos, durante milênios, excluídas da História oficial dos homens: aproveitemo-nos dessa diferença! Da mesma forma, Virginia Woolf exclama que não quer estar nem nas estantes empoeiradas das bibliotecas nem dentro das portas fechadas das igrejas[30]. Muitas não queremos ser incluídas, queremos ser livres dos estereótipos femininos, codificados pelo regime patriarcal e reproduzidos por suas rígidas instituições (amor romântico, casamento, papéis consagrados da família, entre outras); queremos tirar da nossa exclusão a potência política e transformadora de que precisamos para descobrir nossa ordem simbólica e sua língua materna, ligadas por todas aquelas que têm criado esse sentido livre de ser mulheres. Por último, parte de nosso orgulho descansa em não nos sentirmos responsáveis pelo desastre da cultura patriarcal, cuja decadência também se deve à língua que a representa, a androcêntrica.

A discussão nas instâncias de poder pós-patriarcal acerca dos gêneros gramaticais se sustenta na ignorância sobre a história das mulheres, o pensamento livre das mulheres (uma ignorância que precisam manter, sem dúvida), então as universidades e as instituições alardeiam que um manual de linguagem inclusiva é uma saída muito progressista, mas por acaso não se trata da sofisticação do mesmo fundamento patriarcal de sempre, do mesmo modus operandi que absorve a diferença sexual e reinstala o regime do uno[31]? Se o pensamento livre das mulheres fosse estudado, fosse lido, tivesse sua genealogia conhecida, homens e mulheres poderiam ao menos identificar os disfarces que o regime do uno usa. Como falei, o uso do morfema “E”, em um ato renovado de androcentrismo, tenta nos aglutinar dentro de uma suposta neutralidade que não existe, porque não existe na vida, já que não existe no corpo e, portanto, não existe nas palavras. É a maneira, perspicaz e absurda, como o poder, patriarcal e agônico, tenta disfarçar a representação linguística de seu sujeito masculino, fingidamente universal, supostamente neutro. Mas, como diz María-Milagros Rivera Garretas, a língua materna não mente[32], e, então, todos os neutros terminam revelando um masculino hipócrita e covarde, com seu limite negativo em feminino.

A ato de abandonar o uso do gênero gramatical supostamente universal e neutro e inscrever o significado livre de nossa diferença sexual feminina na língua deve ocorrer de forma autêntica em nós por tudo o que foi explicado nesse texto; só assim se expressará naturalmente na superfície da língua, removendo a recursividade infinita de seu sistema. A língua é um órgão vivo, pertence a quem a fala, e quem a fala, mulher ou homem, está ligada(o) a seu corpo sexuado. Suas transformações não ocorrem por decreto de lei[33] nem por arbitrariedade ideológica ou porque devamos ser politicamente corretas(os), porque isso que parece transformação só está afetando o plano normativo da linguagem. As palavras revelam nossas necessidades, desejos, emoções etc., unidas(os) à nossa diferença sexual, que é contrária à identidade[34].


Referências trazidas pela autora

[N. T.: Disponibilizamos aqui os links dos PDFs em português das referências 14, 25 e 30. Se você quiser contribuir com mais algum PDF, deixe um comentário avisando!]

[1] Ver Adrienne Rich, Galaxias de mujeres, Madrid, Sabina editorial, 2020. Traducción de Arantxa Azurmendi Muñoa, Carmen Oliart Delgado de Torres y Ana Mañeru Méndez.

[2] Ver Patrizia Violi, El infinito singular, Madrid, Cátedra, 1991.

[3] Ver Luisa Muraro, El orden simbólico de la madre, Madrid, Editorial Horas y Horas, 1994.

[4] Ibid.

[5] Ver María-Milagros Rivera Garretas, Nombrar el mundo en femenino. Pensamiento de las mujeres y teoría feminista, Barcelona, Icaria, 1994.

[6] Ver Patrizia Violi, Op. Cit., 1991.

[7] Ver María-Milagros Rivera Garretas, Op. Cit., 1994.

[8] Autoridade de ‘augere’, que significa ‘fazer crescer’; não quer dizer autoritarismo, que é patriarcal. Ver Librería de Mujeres de Milán, No creas tener derechos. La generación de la libertad femenina en las ideas y vivencias de un grupo de mujeres, Madrid, Horas y Horas, 2004.

[9] Ver Luisa Muraro, Op. Cit., 1994.

[10] Ver María-Milagros Rivera Garretas, La diferencia sexual en la historia, España, Universitat de Valencia, 2005.

[11] Ibid.

[12] Ver Luisa Muraro, Op. Cit., 1994.

[13] Ver Luisa Muraro, Op. Cit., 1994.

[14] Ver Adrienne Rich, “Heterosexualidad obligatoria y existencia lesbiana (1980)”, Sangre, pan y poesía, Barcelona, Icaria, 2001. [Em português, Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. PDF aqui.]

[15] Ver Luisa Muraro, Op. Cit., 1994.

[16] Ver Mercedes Bengoechea, Adrienne Rich: génesis y esbozo de su teoría lingüística, Ayuntamiento de Alcalá de Henares, 1993.

[17] Com leituras mais recentes, me dou conta de que nunca ficamos sem língua própria, a língua materna sempre está aí, o que acontece é que não a vemos, porque deixamos de dar autoridade à mãe. Ver María-Milagros Rivera Garretas, Op. Cit., 2005.

[18] Ver Mercedes Bengoechea, Op. Cit., 1993.

[19] Ver Mary Daly, Gyn/Ecology. The metaethics of radical feminism, Boston, Beacon Press, 1978, p. 8.

[20] Ver Mercedes Bengoechea, Op. Cit., 1993.

[21] Ver María-Milagros Rivera Garretas, Op. Cit., 2005.

[22] Ver Librería de Mujeres de Milán, Op. Cit., 2004.

[23] Ver Mercedes Bengoechea, Op. Cit., 1993.

[24] Ver María-Milagros Rivera Garretas, Op. Cit., 2005.

[25] Ver Audre Lorde, La hermana, la extranjera, Madrid, Horas y horas, 2003. [Em português, Irmã outsider. PDF aqui.]

[26] Aprendi que o patriarcado nunca ocupou a vida inteira de uma mulher lendo María-Milagros Rivera Garretas.

[27] Ibid.

[28] Ver María-Milagros Rivera Garretas, Op. Cit., 2005.

[29] Ver Carla Lonzi, Escupamos sobre Hegel, Buenos Aires, Editorial La Pléyade, 1978.

[30] Ver Virginia Woolf, Un cuarto propio, Madrid, Sabina, 2018. Traducido en femenino por María-Milagros Rivera Garretas. [Em português, Um teto todo seu. PDF aqui.]

[31] Ver María-Milagros Rivera Garretas, Op. Cit., 1994.

[32] Ver María-Milagros Rivera Garretas, Op. Cit., 2005.

[33] Ver Luisa Muraro, Op. Cit., 1994.

[34] Ver María-Milagros Rivera Garretas, Op. Cit., 2005.


Tradução do texto La “E” nos excluye y menos mal, de Andrea Franulic, escritora lésbica, linguista e feminista chilena. Texto em espanhol aqui.