O que conecta estupro na guerra, violência doméstica e assédio sexual?

Tarde da noite eu encaro os rostos das mulheres do YPJ, a organização militar Curda com apenas mulheres, enquanto elas desenrolam bandeiras em Raqqa. ISIS não se foi completamente. Tudo ainda é complicado. Elas confrontaram nossos piores pesadelos. Elas sabem o que estão fazendo. Em entrevistas essas jovens mulheres nos dizem que estupro é uma maneira planejada de destruir uma cultura, e que é isso que soldados do ISIS estão fazendo com as Yazidis. Elas dizem que gritam de felicidade quando vão para a batalha porque sabem que, de acordo com a interpretação do Islã pelo ISIS, ser morto por uma mulher significa que o soldado não vai para o paraíso.

Veja, se você aguentar, os relatos das mulheres Rohingya que foram estupradas em Myanmar. De novo, estupro está sendo usado sistematicamente para destruir uma cultura. Foi usado nos Balcãs também. Sempre foi usado.

Homens estupram mulheres velhas, e estupram menininhas na frente das mães. Em alguns casos eles estupram com armas e barras de metal. Mulheres moribundas são estupradas. É sobre poder, não sexo.

Nós somos advertidas para não generalizar. Nós temos que ser sempre específicas sobre a violência masculina. “Nem todos os homens”, devemos dizer, caso alguém fique chateado. Nós não devemos conectar a horrenda violência de zonas de guerra com qualquer coisa mais próxima de nossos espaços seguros, nossas casas e jardins. E, além disso, nós não devemos conectar o que acontece em lares britânicos — duas mulheres assassinadas por semana* — com nossas próprias vidas, porque dessa maneira talvez perceberíamos que não podemos viver plenamente nessas condições.

Paralisar-se pelo medo do que homens fariam encolhe nosso mundo. O que, claro, é o que se revelou por todos os relatos de abuso e assédio nas redes sociais com a tag #metoo, relatos que ilustram as incontáveis maneiras que mulheres vivem vidas mais estreitas em antecipação à violência masculina. Parte meu coração ver que é o mesmo, ou pior, para jovens meninas hoje. Eu gostaria muito de um dia de folga disso tudo, mas tanta ficção, TV, e tantos filmes, são sobre assassinatos de mulheres. Um feminicida da vida real — Bertrant Cantat, o músico que bateu em sua namorada Marie Trintignant até a morte — é a capa de uma revista francesa essa semana. Os editores dizem que talvez isso tenha sido um momento ruim. Claro, esse é apenas um incidente isolado. Não tem nenhuma conexão, nos dizem, com nenhuma outra coisa.

Eu não devo ligar os pontos. Deus me livre de me tornar reducionista no assunto violência masculina! Não, eu devo ser sofisticada e desinformada. Eu devo falar dos melhores: homens que são bons. Nós devemos colocá-los do nosso lado.

Bem, não. Cai na real. Essa estratégia falhou. Sem uma análise da palavra com “p”, patriarcado, nós continuamos sem poder para muda-lo. Ou a) homens são naturalmente agressivos por causa da testosterona, mulheres são criadoras passivas, e isso é biologicamente determinado,ou b) existe uma estrutura de poder em ação aqui que pode ser desafiada.

Eu vou escolher b) porque eu sou otimista. O conceito de patriarcado é abrangente e universalizante, é trans-histórico e transcultural. Você não pode falar de mulheres como uma classe, dizem os materialistas, os pós-estruturalistas, os anti-feministas. Seja mais específico sobre os graus de diferença, e fale da interseccionalidade. Fale de classe e raça. Sim, o faça, mas nós também temos que entender e reconhecer que os escritos de Marx nunca poderiam e nunca irão absolutamente explicar a subjugação das mulheres.

Sem um entendimento do patriarcado, estamos empacadas. É tudo relativo, mas podemos concordar sobre alguns aspectos da sociedade patriarcal e nos colocarmos num espectro entre Islândia e Iêmen (de acordo com alguns índices o melhor e pior país para mulheres viverem). Esses aspectos são: falta de poder formal ou no Estado (mulheres sem representação no governo); tratamento negativo da sexualidade feminina; mulheres sendo mais suscetíveis a abuso; ou serem mostradas na mídia e cultura popular de forma muito limitada. Assim podemos ver que algumas sociedades são mais patriarcais que outras. O choque é que as chamadas sociedades avançadas escolhem o patriarcado: veja a eleição de Donald Trump.

É muito mais fácil e reconfortante, então, não ter uma teoria universalizante sobre violência masculina e poder e conivência feminina, porque a maioria das mulheres não é separatista. É mais fácil ser protegida pela bondade dos homens bons. É mais fácil escrever porcarias sobre sexo ser moeda de troca. É mais fácil correr para os papais que empregam as mulheres que minimizam abuso sexual e intencionalmente se confundem sobre consentimento. É mais fácil e mais lucrativo ser conivente com a misoginia do que não ser. Não pensar é mais fácil do que qualquer outra coisa.

Viver, mesmo com todo o meu privilégio, em uma cultura relativamente rica e livre é fingir que o que acontece diante dos meus olhos, na verdade, não acontece; e o que acontece com outras mulheres em outras partes do mundo, ou de fato aqui na rua, não é parte de um sistema. A resposta é que, porque reconhecê-lo é horrível, então não faremos isso?

Nós podemos, ao invés disso, nos confortarmos com a ideia de que o patriarcado é algo que feministas antigas falavam há muito muito tempo atrás e nós somos melhores agora.

Eu ouço que algumas pessoas agora estão “acordadas”**, e acho assustador que os problemas que encaramos não estão sendo nomeados mais especificamente. Até que eles possam ser, nós não estamos “acordados”, estamos em um estado que acontece quando a dor desliga o corpo por completo. Em coma.


Tradução de Glitch do texto de Suzanne Moore para o The Guardian

** O termo woke (acordada/o) atualmente está sendo usado em inglês para falar de pessoas que estão “ligadas” ou “atentas” às opressões e à realidade sociopolítica atual.


*Seguem os índices brasileiros da violência masculina contra mulheres:

O Brasil tem, em média, 13 mulheres assassinadas por dia

Mais de 500 mulheres são vítimas de agressão física a cada hora no Brasil

Taxa de feminicídios no Brasil é a quinta maior do mundo

Mais dados sobre feminicídio no Brasil