consentimento
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Sexo sem consentimento é estupro, e isso é de comum acordo entre mulheres feministas. Mas o que é consentimento, e a partir do que essa frase é colocada? Como podemos reivindicar coerência política entre nossa teoria e nossa prática (o que dizemos e o que fazemos) quando na grande maioria das vezes temos dificuldade de responder a essas perguntas? Como podemos respeitar o consentimento do qual falamos se não sabemos o que ele é?

Defino aqui a concepção de consentimento sexual pela aquiescência plena, ativa e consciente de um ato sexual presente, motivada por um desejo próprio livre de coerções pessoais e/ou culturais. O que isso quer dizer?

– Aquiescência aqui é definida pela manifestação de acordo, anuência, permissão: a grosso modo, o dizer sim.

– Tal aquiescência deve ser plena pelo fato de não haver espaço, dentro da ideia de consentimento, para ambiguidade, hesitação ou desconforto; o que quer dizer que sim que pode ser um não é sempre não, e que a ideia de consentimento sexual ambíguo é uma contradição.

– A característica ativa atribuída aqui significa que a manifestação de acordo deve manter-se contínua durante toda a duração do ato sexual em si, ou seja, o consentimento não é uma concordância pontual a partir da qual se deduz outras concordâncias, e se rompe a partir do momento em que qualquer outra sensação que não a de conformidade seja manifestada.

– Concordar sob qualquer influência que impeça a consciência plena do ato sexual e suas implicações não é consentimento. Ou seja, a embriaguez e o entorpecimento por quaisquer substâncias são características incompatíveis com consentir de fato. Da mesma forma, consentir sob uma condição que não é verdadeira também não é consentir (por exemplo, mentir que não tem namorada, quando tem, para transar com uma mulher, é invalidar qualquer manifestação de consentimento que ela dê — é estupro).

– A colocação do ato sexual enquanto presente se dá pelo fato de que o consentimento restringe-se apenas àquele ato sexual específico, e não a quaisquer atos sexuais posteriores. Na prática: manifestar vontade de transar uma vez não significa que tal vontade se estende a transar outras vezes — a relativização desse quesito é o que fundamenta o estupro marital ou o estupro entre namorados.

– Se a concordância não vier de um desejo próprio de satisfação sexual, não é consentimento, o que quer dizer que concordar em transar para agradar ao próximo não é consentir e qualquer motivação que seja centrada no outro e não em si mesma não é sinônimo de consentimento.

– Coerção pessoal é toda e qualquer forma de pressão de uma pessoa ou um conjunto de pessoas sobre outra, que pode ser praticada de várias formas. Se uma pessoa diz não pelo menos uma vez antes de dizer sim, ela não consentiu (ceder não é querer e convencimento não é consentimento). Se uma pessoa é forçada a praticar qualquer ato sexual, ela não consentiu. Se realiza o ato sexual sob ameaça ou manipulação, não é consentimento. Se um conjunto de pessoas cria uma situação de pressão, não é consentimento (começar um ato sexual entre si manifestando uma expectativa de que a pessoa participe é coerção, por exemplo, a partir do momento que essa expectativa pode ser lida como cobrança).
E, principalmente: se o patriarcado não ensina mulheres a dizerem não, o consentimento só é possível se criamos situações propícias a ele. O “não” deve ser pensado antes do “sim”.

– A questão da coerção cultural ultrapassa a relação específica entre a pessoa e sua parceira e diz respeito ao que a sociedade nos impõe desde a infância. Coerção cultural é um conjunto de práticas familiares e educativas que nos faz crer que tal prática é a única via natural ou necessária, ou seja: qualquer prática compulsória (penetração, por exemplo), dotada de caráter político normativo sobre a pessoa que concorda não é passível de ser consentida plenamente. Isso não quer dizer que somos seres totalmente desprovidos de autonomia, mas sim que um gosto pessoal por uma prática não anula o caráter político da mesma, e que nossas escolhas não são desprovidas de influência social. Problematizar coerção cultural é seguir a lógica de que compulsoriedade não é consentimento. Dessa concepção, vem a teoria feminista que relaciona qualquer ato de penetração peniana-vaginal como estupro; mas é importante que se procure saber mais sobre esse assunto antes de criticá-lo, pois sua complexidade não cabe nas poucas palavras desse texto. Falo mais sobre isso aqui.

Na prática, o consentimento é dado por palavras ou ações que indiquem tal aquiescência, e elas são imprescindíveis: o que quer dizer que na ausência delas, o consentimento não foi dado.Não podemos deduzir consentimento do silêncio, da apatia, da indiferença, da obediência, da dúvida, da ausência do não.

Uma concepção definida de consentimento sexual é crucial para um feminismo responsável e coerente, tanto com vítimas de abuso/estupro quanto com nossas companheiras, namoradas, ou qualquer mulher com a qual nos relacionemos. Em qualquer relação sexual o consentimento é soberano: nada está acima do consentimento mútuo, pois ele é indispensável para a integridade física e emocional das mulheres.Mulheres feministas que se relacionam com mulheres e não problematizam consentimento acabam recaindo em práticas abusivas e reprodução de padrões heterossexuais; práticas essas que também são compulsórias, e extremamente nocivas.

A solução, no que diz respeito ao consentimento, é simples: fale. Pergunte. Converse com a pessoa com a qual você quer transar, mesmo que seja uma relação casual. Nunca coloque suas vontades acima da integridade emocional e física da pessoa com que você se relaciona. Preste atenção nos sinais. Não os ignore. Se uma mulher não te olhar nos olhos, enrijecer, te afastar, pare imediatamente. Se ela disser não sei ou demonstrar qualquer dúvida, não faça mais nada. Na dúvida, respeite o não que não foi dito.

E respeite seus próprios sinais também. Se você não tem certeza de que quer estar ali, então assuma que você não quer. Porque é melhor não ter feito sexo do que ter feito sem estar com vontade. E lembre-se: ninguém tem direito de te cobrar, não importa o que você tenha dito ou feito. Ninguém tem direito de envergonhar ou chamar de conservadora por não querer fazer sexo (com uma ou mais pessoas). Ninguém tem o direito de impor suas vontades acima da sua integridade física e emocional. Ninguém tem o direito de colocar seu valor à prova a partir do que você faz ou não na cama. Ninguém tem direito de colocar sentimento como moeda de troca para sexo. Ninguém tem direito de te chantagear emocionalmente pra transar. Ninguém tem o direito deduzir que você consente algo por você ter consentido em outro momento, por você ser adepta de relacionamentos não-exclusivos, por nada. Ninguém tem o direito de utilizar discursos sobre opressões para te forçar a fazer sexo. Ninguém tem o direito de te diminuir. Ninguém pode colocar absolutamente nada acima do que você quer e sente no que diz respeito a sexo.

A heterossexualidade compulsória nos ensinou que a responsabilidade pelo consentimento é de quem dá. Na prática, se a pessoa não disse não, o problema é dela. Precisamos começar a atribuir essa responsabilidade a nós mesmas. E isso não é apenas sobre sexo: qualquer relação que se trava entre mulheres deve contar com uma preocupação mútua com o que a relação significa emocionalmente para a outra — essa é a raiz do cuidado, a noção de que nossas vontades e as vontades dos outros não são nunca mais importantes da integridade emocional e física dos outros e nossa, respectivamente.

A militância pelo consentimento precisa se aprofundar mais do que frases liberais e rasas como consentimento é sexy. Reduzir toda uma militância pela saúde feminina a uma questão sexual ou não é completamente improdutivo, porque não é sobre isso que estamos falando quando bradamos pelo consentimento. Devemos pensar consentimento não por ele ser sexy ou não, mas porque somos feministas, somos coerentes, somos lésbicas cuidadosas.

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